sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Benigno

Havia uma mulher que desenvolveu uma gravidez imaginária. Sentia o bebê se mover em seu ventre há quatro meses. No médico para o pré-natal: nada no ultrassom, nenhum batimento cardíaco. Encaminhada ao psiquiatra, descartou os tais remédios que, segundo o Google, prejudicariam o seu bebê. Num torpor onírico,  aguardava o parto sem ansiedade. Desentendera-se com o pai do rebento, que se negara à conclir o quartinho, o teto, coalhado de estrelas fosforescentes. A criança chutava como um jogador de futebol: o enxoval todo em blue, segura de ser um menino. Isolada no 708, gerava a cria à revelia da ciência, de Deus, da covid 16. O chá de bebê a distância, realizado pelas poucas amigas. Presentes aportavam via correio. Um móbile de bichinhos desinfectado com álcool em gel  emitia luzes coloridas e sonidos de carrossel. A circunferência da barriga atrapalhava na hora de passar as fraldinhas que com ternura repousavam ao lado dos sapatinhos de tricô (tecidos e retecidos por ela), em três gavetas. A montagem do armário concluída sozinha, após arrebentar a mão do eterno noivo com um martelo. Fora difícil remover o sangue dos ursinhos de pelúcia. Engraçado é que nunca tinha sonhado em ser mãe. Mas desde a pandemia, a dispensa do emprego, o basta no noivado, os vídeos de autoajuda em looping, a maternidade a tomara inteira, preenchia desvãos. Sua vida, de fato, nunca fora tão significativa. Sentia-se cada dia mais forte e confiante. Estava certa de que seria uma mãe excepcional. Que filho não teria todo orgulho do mundo de ter ela como mãe? Os dezessete anos sobrevividos no abrigo. A espera frustrada, o sufocado rancor, a angustiada resignação. Às vezes, duvidava um tanto de si, mas acariciando o ventre, como descrer do filho que nascia em si? Sim, ele poderia contar incondicionalmente com ela. Ela nunca nunca nunca o abandonaria. Seria a mãe mais perfeita que podia conceber. A mãe sonhada, aquela que nunca tivera para amar ou que um dia a amara. 

Tricotando casaquinhos de lã, esperava a bolsa romper.

Tiresias

Havia uma homem que afirmava ter nascido num corpo alienígena. O seu era um outro. Soterrada numa forma masculina estava a mulher que fatalmente era, invisível a olho nu. De alguma forma, contudo, antes de isso se revelar inequivocamente para si, evidenciava-se em trejeitos, no fino timbre da voz, em movimentos sinuosos das mãos. Sua delicadeza atiçava desejos aprisionados. Como um cisco, uma farpa, um corpo estranho e incômodo que está no outro e dói em nós,  atraía cáfilas de machucadores. Seu problema não era local, mas geográfico, deslocava consigo para onde fosse. A hostilidade do pai em casa, as surras aos urros no colégio, a saliência da cúria da igreja, a violação a caminho do rio, no campo de futebol. Sua vida pontuada por fugas:  do interior, dos vigilantes noturnos, dos fregueses violentos, do amante casado, do vício, do amor. E também daquele Deus que a negara três vezes. Agora retornava reconstituída: imagem e semelhança de si. Seu nome, ela quem lhe dera, cívil e não de batismo. Grace era sua graça. Vinha para enterrar a tia-avó que a criara antes que se recriasse a si mesma. Os hormônios que trazia na bolsa davam o arremate ao conjunto de intervenções a bisturi, botox, próteses de silicone,  e garantiam que o reflexo externo correspondesse ao interior. A cerimônia no cemitério pobre, os irmãos não ousavam se aproximar. O caixão branco, de virgem, a tia descia em glória com o lábio leporino que a impedira de casar. De olhos baixos, cravava as longas unhas no braço. Dissimulava reza, não daria o gosto de a verem chorar. Cumpridos os ritos, pagou o pároco vesgo que zombava dela quando menina. Estranho isso: na sua memória, apenas vestidinhos imaginários de chita, como quem se traveste de uma nova história.

A cidadezinha a quilômetros do aeroporto, saindo agora, às 23h, na capital. Dispensou o convite das primas envelhecidas, embarcou no ônibus e partiu, mas não foi muito longe. O rádio anunciava o breakdown: a ponte fechada isolava a cidade do coronavírus. Desembarcou do ônibus sob o olhar de uns caraminguás, e veio arrastando a mala da rodovia à estradinha de barro sem vacilar nos saltos altos. Uns vendedores de milho, um cão estendido ao ocaso. Entrou num boteco e lhe serviram uma água da torneira. Informou-se da direção e entrou na rua principal sob os olhares das casas, de uma vendinha, um salão de igreja caiada de verde, um posto de saúde aos pedaços, uma porta de garagem escrita Correios, a pequena agência do Banco do Brasil.

Ilhada nesse extremo nada,  hospedara-se desde então num quartinho de pensão e o dinheiro minguava. Na sexta prometeram no telefone, abririam a agência para saques. A tevê restrita a um canal. Concurso das deusas da Beleza, cobras entrelaçadas em cópula no mundo animal feito bastão de Eustáquio. De posse da bolsinha cruzou o passeio. A farmácia sem seringas e agulha, camisinhas coloridas morango e hortelã. Como podia repor seus hormônios trazidos na frasqueira? O posto fechado desde a expulsão do médico cubano, a tevê com notícias da capital. A rádio alternava calipsos e sertanejos, sem perspectivas de abertura.

 Os pelos retornando na cara. A voz recuperando o grave. Nessa manhã, do café nem o café: o líquido gostava à cevada e cuspe. Os olhares inóspitos de faroeste. Os frangos se embriagam, atiçam uns aos outros, há sempre um armado de faca. 

Ela roubou a faca de pao e leva a consigo. Cobriu o azul da barba  com o xale, à espera da abertura da estrada, quitar a pensão e partir, antes da eclosão de Hyde, seu inimigo.










 Acordou parada no meio do nada. 

gênero de pessoa que era. Era daquelas que transcendem, nao permanecem. Havia uma ponte, era daquelas que nao querem, necessitam atravessar. O que era estar presa no meio do nada, para alguém confinada num corpo estranho, inimigo. Presa numa estrada no meio do nada, a pensão caiada de azul. A fobia de voo, a longa jornada de volta. O enterro da tia avó que a criara. 30 horas Para-Sao Paulo. Era diretora numa escola. Nesse lugar matavam gente. A ponte interditada. Ela permanecia ilhada nesse extremo nada. Hospedara se numa pensão e o dinheiro minguava. Na sexta prometeram no telefone, abririam a agência para saques. A tevê restrita a um canal. Concurso as deusas da Beleza, cobras entrelaçadas em cópula no mundo animal feito bastão de Eustaquio. A farmácia sem seringas e agura. nao podia repor seus hormonios. O posto fechado desde a expulsao do medico cubanos. Os pelos retornando na cara. A voz recuperando o grave. Os olhares inóspitos de faroeste. Cobria o rosto com o xale, a espera da abertura da estrada, quitar a pensão e partir, antes da eclosão de Hyde, seu inimigo.

Primavera

Havia uma mulher que se alimentava de flores. Como morava em cidade, era complicado se alimentar. Tinha um paladar exigente, dificil de se satisfazer. Esgotado o menu urbano, tocava para o interior. Todo esse trânsito a enfastiava. Recorreu a floricultura próxima de casa. Cada planta exigia uma composição distinta de solo, às vezes em etapas distintas da vida. Identificou se profundamente com as glicínias. As xxx lhe pareceram arrogantes. Bromelias soberbas em seus vazinhos. Tinha simpatia por rosas. Eram simples, belas, pouco exigente nas relações. 

peixe homem apaix

Havia um homem que se apaixonou pelo melhor amigo. Ele não sabia, mas o amava. Jogavam futebol no clube aos sábados de manhã. Se entusiasmados num lance, se abraçavam e se beijavam sem pudor. Antes a esposa de um vinha assisti-lo. A namorada do outro eram muitas. O suor no campo saia no chuveiro. A nudez de um era conhecida do outro. Invejavam o condicionamento fisico um do outro. E muitas vezes treinavam juntos na academia. Cerveja no bar do Manuel com os camaradas. Sentia-se pressionado na firma. Quem não tinha problemas com o supervisor? O carro enguiçado, quem ia socorrê-lo? Era sempre convidado para costela assada por 4 horas no fogo baixo, uma especialidade. O outro trazia a nova namorada, cujo nome a esposa não fazia mais questão de memorizar. Divergiam bastante no futebol, as discussoes acaloradas, pareciam urros do truco, desapegados de argumentos, gostavam da voz grave um do outro. O outro quebrou o dente numa briga, chegava a uivar com a raiz partida do canino, nem se lembrou de recorrer a esposa 

Labia / Esperma

Havia um homem que fornecia esperma para clínicas de fertilização. Não fazia isso por altruismo, mas por necessidade. O fluido vendido pela qualidade do doador.  Ao preecher o questionário, vinha a hora de engambelar a moça. Seguindo a lógica do perfume, caprichava na exibição do frasco. O pai de origem alemã, a mãe, relações internacionais. Arranhava, oui, o francês. Natação desde criança. Turbinava a ficha para valorizar o produto. Se bem cotado pela técnica, recebia mais. Ser jovem, bonito, saudável, não mais o suficiente. Os dotes exigidos na triagem, cada vez maiores. A mulher, como somelier de sêmen, só faltava provar. O dinheiro era bom, valia a pena. Menos de dez minutos, recebia em euros. O visto vencendo, onde arranjar em espécie? Já tinha dado o sangue naquele país, aliás vendido, e nada. Para porra do esperma, pagavam mais. Quanto custa um green card em ml? Me fale um pouco mais sobre você, perguntava a técnica, preechendo os dados. Concluindo Direto, em Berlim? O cartaz na parede: "Povoando o mundo, realizando sonhos." Ele em verdade, não mentia. Era um cara duro, cada qual oferece o que tem. Seu talento para farsa vinha da convicção. Se a mãe era cafetina, por que não um pai alemão? Suas relações, via de regra, não deixavam de ser internas e internacionais. Na pensão onde se hospedava, aprendera com os haitianos os termos mais chulos em francês. Expulso da faculdade falsificando TCCs. Nas enchentes da quebrada, ou se aprende a nadar desde cedo ou se morre afogado. As costas largas, o sorriso sexy, quem podia duvidar? Ela ia checar as redes sociais, esmiuçar o seu histórico em tempos de perfis fakes,  pós-verdade, teoria da conspiração? Ele
Se tiver prazer no que faz, nunca terá que trabalhar na vida. 

Morava numa pensão de moços, desde que descobriram q vendia ttcs na faculdade. A grana curta q recebia com atendente numa academia não dava conta do pf diário. Era jovem, alto, belo e saudável, mas não o suficiente para valorizar seu produto. Por isso, mais q mentir no questionário, reinventou se. Escondia a calvicie de gerações, o câncer dos avós, a hemofilia. Se quisessem, eles que examinassem seu dna. Sempre lera bastante, no buraco de onde saira, lhe dera um vocabulário q permitia flanar na sociedade. A imaginacao advinda desde o abandono do pai, fizera dele um bom farsante. Sabia assimilar com velocidade, era mestre na arte de simular. Turbinou o currículo acadêmico nas redes. Seu xxx era invejável, quase um CO de multinacional. Na coleta dispensava o porno usual. A geneticista desconfiada da lábia. 

Uarii completo

Havia uma mulher que foi achada vagando na floresta. Foi encontrada por nativos de uma comunidade indígena. Via-se nos olhos que não era dali. Indagaram nos arredores se alguém perdera uma loura, magra, sapatos altos e organdi. Vasculharam sua bolsa em busca de identificação. Deram com uma brochura barata de Sidney Sheldon, repleta de anotações miúdas ao pé da página. Nada que qualquer um deles pudesse compreender. Era época de cheia, nem os garimpeiros se arriscavam por ali, quanto mais turista. Infestada de mosquitos, sem os paetês arrancados por curumins curiosos,  só fazia se abanar, um olhar aturdido para os lados do rio. 

A mais velha da aldeia cansou daquilo, arrastou-a consigo como quem se apossa de um traste inútil. Demorou acertar-se com a rede, por fim, enganchada, dormiu a eternidade de um dia. 

Acordou faminta. Não estranhou a comida: sorria para todos agradecida. Warii a achou feia. Os homens que tinham saído de canoa na chegada, voltaram em duas semanas sem resposta, mas pelo menos tinham conseguido a troca pelos bens. As chuvas voltaram mais forte, desalojando ribeirinhos. Informados da intrusa, nem sinal de fumaça dos agentes da Funai. 

Nessa época, já tinha se apegado muito às crianças. Vivia com duas ou três no colo, outras enganchadas, nas ancas secas. Os cabelos longos, agora ondulados. Parecia uma Iara desbotada.

Cogitaram levá-la à vila próxima. No rádio contactariam a capital. Concordava? Ela aquiescia no gesto surdo das mulheres da aldeia. Amanhã, sem falta, acertavam. O amanhã sempre adiado, virou um futuro provável do qual ela não mais trataria.

As garças, no ar graciosas, quedavam desengonçadas no chão. Ela, quando apertava a Birkin no peito, o ar era todo de garça. As duas índias que tinham batido nela, agora riam de sua cara rosada de cauim. Já nessa altura atendia por Gootagi. E  começava a ganhar a confiança de Warii. 

Como se lembrando a todos que viera de fora, ela tirava a brochura da bolsa e lia em silêncio. Mas as crianças queriam também a história, então ela lia para elas. As mulheres sentavam em volta. Warii, de longe, vigiava. Nada daquilo fazia sentido, a estranheza que era a sua voz. Ela então ficava quase bonita. Passado tempo, do nada se cansava e metia o livro na bolsa.

Nos meses que se seguiram, nem sombra de avião vindo do norte.  Nenhum helicóptero de busca. Sem internet, celulares, drones nessa época, as chamadas só de DDD. Um bugre ofereceu-se para levá-la de canoa à vila. Em conselho com as mulheres, decidiu ficar. Antes de partir, entregou-lhe a bolsa com a capa arrancada do livro. Dentro, ela rabiscou uma mensagem. Warii atento, cisudo,  não queria o governo ali. O bugre pegou a bolsa e a mensagem. Depois daquilo, nem notícia. 

Se naqueles meses de cheia já se fazia entender com as mãos, breve dominava a língua de passarinho das crianças; e se fez mestra no ralar da mandioca. O cabelo aparado pelas companheiras. Gootagi, tinha perdido o olhar desmaiado, a palidez do corpo de tanto rolar no margem do rio das Piacambas

Ainda ia lendo aquelas páginas de amor impossível. E a gente toda já recitava a trama confusa de cor. Tinham todos muito gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender. De uma hora para outra ela acertava de um jeito diferente muito dela que passava então a ser o modo de se fazer dali para frente. Esse prazer em ensinar o que não sabia agradava muito Warii

O Sidney Sheldon de treslido já se tinha desfolhado inteiro, ficado amarelo. As páginas soltas que a conectavam com remoto antes, lidas em desordem, embaralhavam  tempos e espaços. Um personagem morto renascia no capítulo seguinte jurando vingança pela traição ainda não sofrida, o desfecho trazia uma revelação cujo mistério era sabido de todos.

Os anos fizeram em frangalhos o vestido da chegada. Aqueles sapatos que emprestava para as moças exibirem na vila sumiram sem rastro. Por esse tempo já era possível ir e vir da reserva. Ninguém reportava mais seu caso, sua presença nem fazia espanto. Quando as autoridades estiveram ali, mal repararam nela.

A índia velhíssima caiu doente, Gootagi cuidou dela. Desde que chegara ninguém mais tinha partido, como se a morte a evitasse. A velha que não a temia, tinha visto os avós erguerem a grande oca central, a chegada dos brancos, o insubordinado subir e recuar das águas. Queria um fim antes que não houvesse mais destino para seu espírito. 

Gootagi cuidou dela mais que pode, mas ela a expulsava de perto. Acharam-na, depois, no fundo da rede: o corpo diminuto, esvaziado, parecia caber na palma da mão. Os avós de seus avós a tinham levado dali.

Então, num fim de tarde Gootagi se acertou com Warii e foram viver juntos. Foi na semana que leu pela última vez o que restara daquelas páginas distantes, a impossível história. Fez questão de dar uma para cada um de presente. Warii pescou um jaú de não caber nos olhos de tão grande e a vida seguiu adiante. 

Logo estava grávida. A barriga larga de seu filho com Warii. Para ele, ela nunca tinha sido Gootagi, ou o outro nome segredado, mas continuou sendo. Era de repente bonita, não como as outras, mas calma, redonda, descansada. A barriga dava saltos. 

Faltando pouco mais de um mês, a velha a visitou em sonho e lhe contou que a morte a procurava e a criança. A médica da aldeia confirmou o prognóstico. Não, ali faltavam recursos, não viveriam.

Mas ela estava decidida. Ia fazer do seu modo. Já se lembrara de tudo, do nome perdido, de vagar na escuridão e dar com a estrela, imensa, e o urutau manda-lua pousado, longe, à direita do rio, cujo canto expulsou o setestrelo do medo, do desespero e da morte. 

Warii devolveu-lhe os sapatos. Ele os tinha enterrado para que não tivesse como voltar. Queria agora que se fosse? Pela primeira vez tinha medo. 
Mas a outra ficara lá trás, esquecida, não era quem era. E quando a velha veio, no derradeiro sono, vê-la, ela aceitava partir?

E tudo sucedeu conforme tinha que ser, sorte e azar misturados, sem sobrepeso de partes: a vida só, plausível. E se passaram anos.


Como é possivel aquela ausência forasteira? Ela tinha ido e deixado seus gestos e o jeito do fazer de tudo, a história lida passada de boca em boca. Warii se lembrava dela como algo que não se capta. Ela também dera sentido ao que antes não fazia. 

O avião monomotor desceu em rasante na aldeia. Finalmente tinham achado jeito de posar. Dentre os agentes da FUNAI, Jagigi, agora Joaquim, intérprete. Desceram do avião o piloto, dois gigantes ruivo-alaranjados e a mulher pequena, muito magra, os cabelos brancos tinham sido louros, a bolsa na mão de Gootagi. 

Ela tirou de dentro a mensagem. Então o bugre cumprira a missão. Disseram o nome a Warii, pois desconheciam i verdadeiro. Eles a buscavam. Mas ela agora, no Guajupiá. Não entenderam. Ele os levou para lá onde ardera, há dez anos, a grande fogueira. Jagigi precipitou-se: onde dorme em repouso, de volta sob a terra. Compreendiam?

A velha em desespero não queria acreditar. Queriam o corpo. A mulher e os homens se abraçam. Warii não aceitou que a fosse levada a parte alguma. Discutiram entre si, selvagens. Pegaram as páginas, recuperadas, devolviam agora, levasse-as, não precisavam mais, tinham ficado todos com a voz, o jeito, o gesto cativo de Gootagi.


Deram partida no voo. Warii viu o avião subir espantando as garças. Os meninos saíram de dentro da mata, aborrecidos de terem pedido o espetáculo do avião. O mais novo, correu para Warii. Tinha seu nariz, sua boca, os ombros que seriam os do pai. Sua cor não ficava clara, os olhos azuis de Gooagi.


Fosso / O anao

Havia uma mulher que se apaixonou por um anão. Encontrara-o numa sexta, o carrinho lotado da feira, das compras que levava para sogra. Ele deu  passagem para que entrasse. Sabia que residia no 27o, pois lhe pedira que apertasse esse número no elevador. Ela desceu antes. O apartamento da sogra era no fundo. Premeu a campainha e deixou as compras. Está tudo bem? Tudo bem, disse a velha numa voz vascilante. Não esquecesse de desinfectar os pacotes, a alface fresca, para o dia. Pela porta indagou se a amiga morava no 27o. Ela confirmou. Uma hora dessas subiria para ver como estava. 

Em casa interfonou. A velha demorou a atender. Tinha feito bolo, ela aceitava? Sim, o anão ali desde novembro. Empresário ou logista, coisa assim. De meias palavras. Dividiam o sinal do wifi, que pagava em dia. As crianças. 



Sem constrangimento algum, pediu que apertasse o 27o andar. . A gravata azul, nenhum constrangimento na voz grave. Sentia se util e excitada.







 Havia uma mulher que se apaixonou por um anão. Encontrara-o numa sexta, o carrinho lotado da feira, das compras que levava para sogra. Ele deu  passagem para que entrasse. Sem constrangimento algum, pediu que apertasse o 27o andar. Sabia que residia no 27o, pois lhe pedira que apertasse esse número no elevador. A gravata azul, nenhum constrangimento na voz grave. Sentia se util e excitada. 

Looping

Havia um homem que sofria de narcolepsia. Qualquer emoção mais intensa era nocauteado por um sono violento que podia durar minutos ou horas. 

Tornou-se recluso, metódico e de hábitos arraigados. Refugira-se numa quitenete assimétrica legada pelos pais, sua torre de marfim erguida nos anos 50,  de 60m2. Para viver, traduzia livros técnicos: purificadores de água,  aspiradores robôs, aquecedores elétricos. Os arquivos chegavam em pdf editável e eram despachados no mesmo email. Antes da covid-19, já exercia sem dor o isolamento social. A descoberta dos estóicos fizera sua existência suportável. Defendia-se da instabilidade constante do mundo com o escudo da apatia. Assim, teria alcançado o nirvana por vias da indiferença ao próximo. Por se manter a distância, amava só a si mesmo; por isso há anos não tinha crises.



A pandemia não mudara em nada sua rotina. O prédio ruidoso o aborrecia sem arranhar sua existência invitro; até a mudança de um casal para o apartamento ao lado estilhaça-la.


O sofá, as estranhas luminárias,  a mesinha de acrílico, o saco de boxear. Assistiu-os chegar pelo olho mágico. O vizinho era grande, todo braços e músculos. Ela, magra, de franhinha sexy: pareciam recém-saídos de um reality show. Giraram a chave. Bateram a porta, ele achou que voltaria ao silêncio, pré-reforma e marteladas, troca de fios e papéis de parede. Dali a dias: seu inferno pessoal.

A discussão começou às treze. O tom alto, não aos berros, para mais se fazerem ouvir. Ela tinha que se fazer respeitar, flertando com todos assim! Ele era trouxa? Ela retrucou que estava louco. Drogado, tinha ciúmes, inventava complôs. Não era boba, não aceitaria mais isso. Ligaria para o pai. 

As paredes originais substituídas na década de 80 por placas de dez cm não davam conta de barrar o som. Subitamente, ele, a quem não atingia a fúria do mundo, se via exposto. O homem ameaçou esganá-la, ouviu-a recuar, o homem correu e esmurrou forte a parede. O quadro da mãe tremeu no prego, e ele caiu no sono.

Acordou horas depois no tapete. A sala no escuro. Nenhum barulho que não fosse o som abafado da novela nos vizinhos. Abriu a porta, o corredor vazio. Certamente a polícia partira há muitas horas. Não queria pensar no crime, amanhã os burburinhos no corredor. O trabalho atrasado sobre a mesa, tomou o café e o continuou.

No dia seguinte, nem um ruído indistinto no andar. Estranhou a calmaria. A monotonia da quarentena exigia que se vivesse a vida alheia. Era cedo. Almoçava religiosamente as 12. Às 13h, reiniciou-se a discussão. 

Não era tolo. Ela flertando. Estava louco? Chamaria o pai. O horror daquilo, o atingiu em cheio. Não estava morta, nem ele preso. Ele tivera uma premonição daquilo. Um deja vu. O outro ameaçou esganá-la. Ela se recostou na parede. O soco dele estremeceu o quadro. Agora a pegara pelo pescoço, e ela implorava pela vida. Estendeu a mão para alcançar o interfone, mas lhe veio o sono, caiu.

Despertou na madrugada. O prédio em frente imóvel, a impressão de estar diante de uma fotografia só era traída pela intermitente luz de um abajur numa janela. Nenhum carro na madrugada. O vírus pora o mundo em suspensão. 

O andar calado, se tivesse havido morte, ainda aquele silêncio? A louça no escorredor, seca, ele não a guardara. Apanhou um comprimido vencido, tomou um e se deitou.

No email, chegaram novos trabalhos. Em dez anos nunca se atrasara com a tradução. O armário repleto de latas. Fizera estoque para um mês. Preparou uma sopa. Metade foi para geladeira. Então ouviu um princípio de discussão. Eram 13h no relógio. Foi tomado imediatamente por uma vertigem. Era questão de segundos. Lançou-se no sofá e desmaiou.

Acordou e não era noite. Havia uma movimentação tranquila nos corredores. Com um copo recostado na parede, os vizinhos pareciam mortos. Apanhou o interfone. A campainha soou abafada e, de repente: alô. Era a vizinha. Ele pôs o fone no gancho. Estaria enlouquecendo?

A vida social desde cedo em escombros. Um rol de especialistas e o veredito unânime: o hipotálamo falhava no processar das emoções. A decisão acertada do litígio com a vida, do exilio, da segura solidão. Tudo que não servia para nada se o final terminaria por enlouquecer! Não, decidiu, mais nenhum exame. Mas se não fosse isso? Se zombassem dele? Impossível: os anos renovaram a vizinhança, nenhuma intimidade com ninguém do andar. 

Todos os dias amanheciam iguais na quarentena. Dispôs a cadeira diante da parede e esperou. A discussão começou pontual às treze horas. 
Apanhou o interfone e ligou para portaria. Alô, disse o homem. Estão se matando 706, sussurrou tenso. Não consigo escutá-lo, repetiu o porteiro Poderia falar mais alto?! O homem esmurrou a parede. A mulher não conseguia gritar. Quer que eu mande alguém ai? Perguntou o porteiro. Alguém em sua casa? Não! Ia dizer, mas teve medo e desmaiou. 

Talvez fosse o vírus. Tinha sido infectado e não sabia. Talvez estivesse em coma, entubado e em decúbito dorsal. Feito esses filmes ruins que no final tudo, só um sonho, o cara estava morto e o público é traído. Beliscou-se, ciente de que, sonhando, sentiria o beliscão. 

Faltando 5 minutos, colocou a cadeira e esperou. E se ligasse agora, alertando-a?

Alô. Ele disse. E antes que pudesse dizer, fuja daí, ele vai te matar; ela respondeu: Não posso falar agora. Desligou. Flertando no prédio? Acha que sou trouxa? Esbravejou o marido do outro lado, agora, mais violento. Colocou as duas mãos, rápido, no ouvido e desabou.

O salto mortal do rapaz do prédio em frente. A desratização do andar levantou uma névoa que botou um pó fino na superfície dos móveis. O sumiço do anão anunciado em cartazes de procura-se. Tais eram os eventos que antecederam a entrada de sua existência naquele looping temporal. Vistos a distancia, eram inegáveis prenúncios de caos. 

O instinto já gasto de autopreservação emitia inequívocos sinais de "fuja para a floresta." Uma parte aleijada dentro de si, sussurrava para que salvasse a moça. Como um centauro indeciso entre suas duas naturezas, não procurava mais explicações, mas um sentido para aquilo. Sabia, por exemplo, que a ação de ignorar não afastaria o problema, que o que sucedesse aos outros, também o atingiria. 


Sentado diante da parede esperou. A poltrona inclinada, ao menos se livraria dos hematomas, do mal jeito das quedas. Havia retirado os quadros, afastado móveis, a parede nua como uma tela de projeção, um teatro. Se empenhado, era possivel ver o desenrolar da cena, precisa, sem variações: "somos joguetes do destino lhe diria Shakespeare, Hamlet, ou ambos. 

O soco na parede, depois a enforcá-la. Este era o novo normal. A gente se adapta a tudo. Esperou que ela sufocasse, mas de repente o marido a largou. Dava-lhe tapinhas no rosto e implorava, acorde. Então num solavanco ela tinha um acesso de tosse. E vivia. Comovido, desmaiou. 

Às 15h20, de pé, era tempo de botar ordem na vida. Reduziu à metade do tempo habitual à tradução do manual de aquededor a gás e  à de um minifrigobar. Colocou roupas na máquina, recolheu o lixo da casa e aventurou-se, paramentado de escafandrista, até à lixeira do andar. De volta à cozinha, seguiu passo a passo às instruções que traduzira para elaboração do mais perfeito café feito numa máquina italiana, e sentado frente à parede cogitou ligar para o moça.

As três tentativas anteriores, era sempre o marido atendia. Fingiu duas vezes ser um entregador de pizza equivocado com o número. Desligar, como fizera a primeira vez, poderia desencadear uma tragédia. Ouvia-o socar com energia o saco de areia.

No espelho do banheiro, um homem magro, alto e pouco atlético. No confronto com o outro, a ameaça do soco já o poria para dormir. No tempo do dr. Freud, para o seu problema só cocaína. Por isso, apreciava tanto tomar café. Quem sabe um dia, ao acaso, não daria com o grão da cura.

As 13h06 ele socava a parede. Às 13h12 ela sobrevivia. Depois, ele engendrava um monólogo que evocava perdão, justificava-se com a pressão que sofre um delegado, a morte recente do pai. Beber era uma forma de sobreviver à pandemia. Não compreendia? Ele só batia por que amava. Ele pedia um abraço, ela cedia, ele forçava um beijo, depois sexo. Ele chegava até aqui e desmaiava. Cada não dela o mortificava. Depois do terceiro pare, reiniciavam os tapas. Ela evocava Deus. Era o seu limite.

Antes das treze, já estava furioso. Impossível que os apartamentos em volta ninguém reagisse. Sentia-se impotente, indignado, profundamente triste. E com medo: da dor, da morte, do desamparo da justiça. Temia tocar a campainha e desmaiar de espectativa. Não tinha amigos, provas, nada. Se enviasse à polícia a mensagem antes da agressão, que faria com ele essa polícia que protege os seus? Se contasse a alguém, o estranho, quem acreditaria nele? Os intensos sentimentos tomando-o. Cada dia suportava os mais intensos sem adormecer.

Com os dias, venceu a longa sequência do estupro. Pelo celular ela tentava falar com uma amiga. Ele a flagrava e, ameçando-a, destruía o aparelho. Depois a algemava, no sofá,  apoiava o pé na sua cabeça se vangloriando em voz alta. Então ela encontrava a arma. E se ouviam três tiros. Neste instante ele desmaiava. Impossível saber o desfecho. Morria ele, ela, ambos? Me espere, dizia consigo. As traduções todas por fazer. Não tinha cabeça para aquilo. Como foi possível viver tanto tempo sem sentir?

De repente, quando tudo fazia sentido, o casal sumiu. Ligava o interfone para ninguém atender. Um dor insuportável se apossou dele. Dormia e despertava em ciclos de minutos. Sua mãe ligou de Londrina. Estava bem? Ele tentou simular a apatia, a frieza antiga, mas já não podia se conter: disse que a amava, e ao pai, queria conhecer os sobrinhos, sentia falta do irmão. Com alegria, viram-se na câmera, espantados todos de não o verem dormir. E prometeram se reencontrar em breve, o pai se recuperava agora em casa. Tudo daria certo. 


Estava no banho quando ouviu as vozes exaltadas. Então voltaram. Nao cabia em si de tão feliz. Aquela guerra conjugal o apaziguara. Terminava de calçar os sapatos quando ouviu o primeiro tiro,  já havia girado a chave quando soaram o segundo, o terceiro e fez silêncio. Então diante da porta, no corredor,  tocou freneticamente a campainha sem desmaiar. Quem abriu foi ele, ela estava logo atrás. Com toda a força que tinha desferiu-lhe um soco que o fez recuar. Ele estendeu a mão:  Vamos! E um tanto atônita, ela foi com ele. Entraram no elevador, ele premeu o térreo.  A luz fluorescente piscante tornava tudo menos real. 

Acho que quebrei minha mão ao bater no seu marido.

Ele não é o meu marido.  É um ator.


Quer dizer que vocês estavam encenando todo tempo?

Com transição ao vivo para cinco países. Você não sabia?

Não.

Ouviu os tiros? Ele podia ter te matado.

Eu sei, disse. E aquele engano era de repente, fascinante. E você sabe quem sobrevive no final?

Acho que nós dois, disse sorrindo. E apertou o botão de volta para o andar.

Volta / Filha morta

Havia uma mulher que recebeu a visita da filha morta. Preparava o jantar na cozinha para o marido que chegava tarde, a campainha tocou, era a falecida. O vestido branco da primeira comunhão não realizada. Os cabelos castanhos em cachos pareciam mais longos, as unhas pintadas de rosa, no mais era a mesma que há um ano se fizera enterrar entre lírios. Os sapatos de verniz sujos de terra. Do cemitério até a casa, no mínimo três horas. Então é por isso que os enterramos com sapatos, pensou a mãe, para o caso de voltarem. 

Ela não parecia suada ou exausta. Os olhos pretos, o nariz, a boca desbotada.  o celho tenso, certa arrogância herdada da família do marido e que morria com ela. A mãe abaixou e a beijou no lado esquerdo do rosto. A menina permaceu impassível. Ninguém na rua, de testemunha. Pôs a menina para dentro e trancou a porta.

No quarto azul,  os olhos vítreos das bonecas vigilantes, os vestidinhos dispostos no cabide, meias dobradas na gaveta. Nenhum indício aparente de esquecimento. No batente da porta do armário, ainda as marcas de crescimento e datas. Não, não encolhera ou ganhara nenhum centimetro. 

Sentadinha na cama, girou a engrenagem da caixinha, a bailarina girou na ponta dos pés ao som da Puer Elise. A mãe esperou a gargalhada. Lembrou os rodopios estusiasmados. A menina, entretanto, devolveu a caixinha para o fundo da gaveta.

O porta-retrato no colo do pai, a fita verde no cabelo e a blusinha da Minnie, ela o achou caído no chão. A mãe constrangida, a mão se apoiava no ombro do marido ante o fotógrafo antipático. A menina o colocou de volta na penteadeira, para em seguida constatar com as pontas dos dedos que o pó já cobrira a superfície do móvel. 

A mãe desviou os olhos, ante a censura silenciosa da menina. Ia dizer: o quarto vive fechado, Dedé de volta com os filhos, para Paraíba, as coisas da casa todas para ela, que só na última semana, à revelia médica, desprezara na privada metade dos comprimidos que a sedavam demais para demanda dos dias. E papai andara bebendo um tanto demais. Ela sabia o que era o AA? Não, não era desleixo, descaso, esquecimento. Compreendia? Queria dizer tudo, mas se lembrou dos cinco anos curtos demais, breves, incompletos. A filha que morrera na ilusão de Papai Noel. 

O carro com perda total se fora da garagem. Como se converte o dano irreparável em números? Para isso existia o Ahmad que se reiventara de amante, depois a marido, depois a pai, e agora teria que se desinventar, assim como ela em ex-mãe, ex-pai... Ex futuro casal? Não sabia. Não iam bem. Não queria ter essa conversa dificil com a filha. As crianças precisam de estabilidade, constância, um lar. Por isso as caixas de papelão na garagem, a inquietavam. Que a filha ficasse longe da garagem, com seus gases tóxicos, asfixiantes. Teve medo que a menina fosse lá. Então propôs: e se fizessem brigadeiro?

O achocolatado na pia, a lata do leite condensado no lixo, para que a menina não se cortasse. O fogo baixo, agora as mãos untadas com manteiga para enrolar em bolinhas. 

A menina indiferente ao granulado, não mais se animava a ajudar a mãe. Não quis rapar o fundo da panela com a colher de pau. A rádio sintonizada transmitia a previsão do tempo. Pancadas de chuva previstas logo para o começo da noite. Nara Leão cantando Roberto. Ela dava notícias da tia no Canadá, as mãos em chamas de chocolate. A menina quieta, limpou duas vezes o nariz com o dorso da mão, duro olhar endereçado à mãe. 

Lá fora a tarde caía serena. Mas a freada brusca de um Ford em frente arrancou a mãe do torpor. Os olhos buscaram a filha, asfixiada para sempre pelo air bag. Aproximou-se para beijar, por trás, o topo da cabeça da menina, que recuou.

Agora na sala, a menina contemplava a tela da tv sintonizada no Nickelodeon. Bob permaneceu acuado embaixo da poltrona mole, num rosnar agudo que se confundia com choro. Já não buscava, como antes, o colo da menina que, sem se animar com O show da Luna, se apossara do cortador de unhas que a mãe largara na mesinha de centro.

"Deixe que eu faço isso para você", disse a mãe apanhando com delicadeza a mãozinha da menina, deixando curtas as unhas que pintara de rosa, sob as quais havia um pouco de terra. A menina se entregou sem resistência. A mãe, simulando o que fizera por semanas com as bonecas da filha, colocou-a no colo e passou a pentear seus cabelos, mas sem a energia de antes, pois temia que se desprendessem no pente. 

A menina se deixou cuidar, sem resistir como antes, quando corria para o pai que concluía o serviço. Não, não sentia qualquer ciúme daquela filha que os unira pela gravidez inesperada sem a qual os fortuitos encontros não dariam no pai e na mãe que a filha concebera, e que fizera, com que ela e ele se amassem para além daquela atração canina que tinha feito com que arrebentassem, numa só, noite três camisinhas. 

Então, enquanto a penteava, disse para si em voz alta: "Estão grandes, é preciso cortar as pontas." Principiou, em seguida, a cantiga com que a embalava em bebê, colocou-a contra o seio, resistindo ao impulso de amamentá-la. E a menina foi se reclinado aos poucos, até adormecer. Ela, então, a pegou no colo e subiu as escadas rumo ao banheiro. 

Na banheira, em temperatura morna, ela  lavou com ternura suas costas, rosto, braço, peito e o ventre que nao geraria filhos. Depois a secou com uma grande toalha vermelha. Mas antes, cortou com cuidado seus cabelos.

A menina parecia entorpecida, talvez pelos comprimidos macerados na massa de brigadeiro, a não ser que fingisse, essa outra morte, menos definitiva e dolorosa que a outra.

II

A casa tinha todas as luzes acesas quando o marido chegou. Lá fora desabava um aguaceiro de há séculos que o deixara ilhado na praça central. Nenhum retorno da esposa para seis ligações perdidas. A tevê ligada, o rádio alto, na cozinha. Uma fôrma completa de brigadeiros. Desligou os aparelhos e constatou que o cachorro, apavorado com os raios, tinha urinado embaixo da poltrona. Chamou pela mulher, mas não obteve resposta. Haviam conversado sobre a mudança de casa para julho, ela concordara com tudo. No banheiro, assustou-se com as mexas de cabelo espalhadas no piso. Abriu sobressaltado o box com a banheira, ao vir a tesoura num canto. Mergulhou os dois bracos no fundo da água escura, para constarar que a esposa não estava lá. Seguiu pelo corredor para o quarto, o pequeno Bob no encalço, o fez quase tropeçar. Calma rapaz, disse, apanhando-o nos bracos. A filha morrera, mas o cão sobrevivera intacto ao acidente. Ainda assim o amava, como se fosse um apêndice, uma extensão, uma parcela de um amor nao resgatável. Ele trabalhava no mercado financeiro, seu pensamente vinha em binário e senhas alfanuméricas. 

No quarto da filha que evitara há um ano encontrou a esposa espremida na cama da filha, embalada numa grande toalha vermelha. Seus batimentos tiveram um pico, digamos, de 20 porcento, ou melhor, de x para x. Ela tinha os cabelos aparados até a raiz. Estava entorpecida, não morta, não daquele jeito simulado que fazia quando ele desejava sexo, ou a catatonia de antes, estava serena, quase feliz. Ele descalçou os sapatos, tirou a calça e a camisa molhada, e se espremeu na cama, junto com ela. Ela despertou e perguntou, oi, querido, que horas são? É cedo. Eu cortei o cabelo. Eu sei, ele disse. Eu gostei. Obrigado, ela disse. Depois adormeceram.






 

Trama Melidrama

Havia uma mulher que perdera a memória. Confinada no pequeno apartamento, levava o dia a regar plantas, alimentar o casal de periquitos, acompanhar sua novela preferida. Seu marido chegava tarde, impacientava-se facilmente, reservando-se ao ato protocolar de medicá-la. 

O passado em branco, ele dizia, era um mal menor diante das convulsões diárias que a cirurgia de epilepsia estirpara por completo. A saliente cicatriz recoberta pelos longos cabelos não a deixava duvidar. O bom é que não sentia saudades dos pais, da infância, dos anos de namoro ou da felicidade matrimonial. Ausentes todas as memórias, lamentava não ter escapado do incêndio um porta retrato que fosse, seu lindo vestido de noiva que tinha ardido em chamas. Então rezava, timha um vasto repertório de orações. 

Por que o presente não bastava, vivia com intensidade o lacrimoso drama de Amarguras do coração. Carmen Laura largara o convento para viver seu amor impossível com Dilhermando Montenegro. Mas sua terrível sogra caolha mandara sabotar o carro aos oito meses de gravidez. A criança nascera linda e saudável, contudo, devido a pancada, Carmen se esquecera do amado e da filha. A sogra a sequestrara, então, forjando-lhe uma nova existência com um outro que fingia ser seu marido. Sua filha crescia agora num orfanato dirigido por freiras carmelitas, replicando o destino da mãe. Dilhermando, inconsolável em sua viuvez, a tudo ignorava. Pensara em se matar, mas devoto à Nossa Senhora das Candeias, abandonou a carreira de escritor e agora se arriscava no Corpo de Bombeiros, onde ingressara na esperança de que um incêndio fatal desse fim à sua vida. 

Ela tinha uma alma a um só tempo trágica e fantasiosa. Tudo que ouvia lhe parecia tão real que chegava a antecipar as falas, reconhecer lugares, o desfecho de cenas. Ai podar suas comigo-ninguem-pode com uma tesoura enferrujada que dispencara do andar de cima, as lágrimas corriam desidratando-a enquanto assobiava Pixinguinha. Solidários, Rose e Jack mais se agitavam na gaiola. 

Se a cada dia mais romântica, o marido assumia uma frieza glacial. Como tinham se conhecido? Onde o primeiro beijo? A data do casamento? Tudo o irritava; e pior: era surdo para os sofrimentos de Carmen Laura. Calava a esposa com comprimidos, e desprezava Armaguras do coração. - Mas quem ainda escuta radionovelas?

Ela adormecia no sofá e não o via sair trancando a porta. Nem a comida deixava que fizesse. O cardápio, sempre o mesmo. As quentinhas lhe davam indigestão.

As viradas surpreendentes de Amarguras contrastavam com sua vida sem emoção. Um incêndio no 809, Dilhermando acionado. O destino aprontando das suas, o unia de novo à Carmen, para separá-los novamente quando ambos desmaiaram asfixiados entre chamas. Desperto, vagou à procura da amada em cada ala do hospital. Pressionando a mãe, esta por fim confessou que mantinha Carmen em cativeiro, mas, quando ia revelar o nome do cúmplice, sofreu uma síncope que lhe paralisou metade do corpo, impedindo-a de falar. O capítulo terminava com Dilhermando abandonando os bombeiros e voltando a escrever. Precisava não só localizar Carmen, que perdera a memória, mas alertá-la de que seu "esposo" era, na verdade, um assassino. 

O comprimido dado pelo marido, agora ela cuspia na pia. Rose e Jack estavam presos, mas juntos na gaiola. Já tentara puxar assunto com os vizinhos, que a ignoravam. Não sentia conforto algum no coração, cada dia mais amargurado. 

A voz de barítono de Dilhermando aticava-lhe desejos pouco cristãos. Agora que dona Fernanda não lhe pagava, o sujeito tentaria se livrar das provas de seus crimes. Por isso, usando de seu talento literário, o fiel Dilhermando se empregou numa rádio e passou a produzir Amarguras do coração. Tinha ele esperanças de que a pobre Carmen reconhecesse sua história, vencendo as mentiras e as drogas ministradas por seu algoz. Rogava que, por mais difícil que fosse, acreditasse no amor. "Resgatei nossa filhinha do orfanato das Carmelitas, estamos esperando por você. Não deixe que ele a mate."

As cenas dos próximos capítulos prometiam emoções avassaladoras. A mocinha se deixaria enganar mais uma vez? Ficaria à espera de seu eterno amor? 

As lâmpadas quebradas emitiram faíscas quando ele acionou o interruptor. A mulher não atendeu ao seu chamado. Não era possível mais viver assim!  A rotina diária de recolher os fósforos, de trancar a porta, os vizinhos alertados de um possível surto. Não a amava, mas quem poderia condená-lo?

Rose e Jack, livres da gaiola, espreitavam congelados sobre o rádio pré-histórico: se girasse o botão, um samba-canção, de Dolores Duran, As rosas não falam, de Cartola? As plantas nos vasinhos tinham sido cortadas até a raiz. Meu Deus, ele pensou, antes da picada nas costas e do reclame das mulheres do sabonete Araxá: "onde ela achou uma tesoura de podar?"

Ermitao Narcolepsia

Havia um homem que sofria de narcolepsia. Medo, entusiasmo, amor, o que lhe descompassasse o coração, nocauteava-o imediatamente violentíssimo sono que podia durar minutos, horas. 

Tornou-se um sujeito recluso, metódico e de hábitos arraigados. Ora, labora, repetia. Traduzia livros técnicos: purificadores de água, robôs aspiradores, aquecedores elétricos. Os arquivos chegavam em pdf editável e devolvidos na rede. Vivia nesta bolha

 de modo q sua misantropia antecipava esse despudor de contato q a covid viera condenar. Antes, sua rotina consistia nas



Um rol de especialistas e o veredito: o hipotálamo falhava no processar das emoções. A vida social desde cedo em escombros, a decisão acertada de exilar-se  nos 75m2 legado pelos pais. O ar alheio, distante, indiferente, adquirido ao longo dos anos no exercício da apatia. O horror ao contato, anterior ao coronavirus. A descoberta reconfortante do estoicismo necessário à sua sobrevivência invitro. Tudo se perturbou com a mudança do casal para o apartamento ao lado. O sofá, as estranhas luminárias, a mesinha de centro, ele viu desfilar pelo olho mágico. O sujeito grande, todo braços e músculos. Ela, pequena, de franhinha sexy; pareciam participantes de reality show. Assistiu-os desfilar diante pelo olho mágico. Giraram a chave. Bateram a porta e se iniciou seu inferno pessoal.

Se antes fora perturbado pelo abrupto período de obras, marteladas, raspagem de taco, papel de parede; instalados, não durou a ilusão de um futuro silêncio. Ledo engano, as brigas começaram à uma, e espantou por tamanha violência. 

Apaziguados.
Não misantropia estoicismo reclusão. 


Espolio


de  julgava viver num looping temporal. O inicio se dera com a desratização, o salto da janela no prédio em frente, o sumiço do anão, a locação do apartamento rente ao seu, despejando a paz.   Isso começara pouco depois da Covid que confinara quase todos os moradores do seu prédio. Não que a quarentena tivesse alterado de algum modo sua rotina. 

ANJO

Havia uma mulher que praticava eutanásia. Trabalhava como técnica de laboratório, agora, num hospital de elite, desses que exigem dois ou três idiomas. Por isso tinha acesso a alas, enfermarias, centros cirúrgicos, UTIs. Abreviava existências inoculando bactérias resistentes coletadas em seringas de insulina. Tinha uma bela coleção de patógenos que cultivava numa frasqueira que denominara Redenção. Escolhia com terna objetividade os internados que mereciam a paz, com atentas investigações nas redes sociais. Examinava meticulosamente a vidas exibidas na tela do seu i7. Família, afetos, relações sociais ou de trabalho, nada lhe escapava. Não descriminava ninguém por crença, cor, idade. O olhar clínico para fotografias festas, viagens, passeios ao sol. Dispensava selfies por imprecisas: a insidiosa retratação não de como se é, mas de como deseja ser visto ou como gostaria de ser. Aliás, aborrecia-a essa imprecisão verbal: não somos, estamos, pensava. E valia o agora, o que nos tornamos, esse eu mensurado menos pelas escolhas, que pela ação. Não caía nos discursos, na esparrela das frases feitas. Não se deixava enganar, por exemplo, pela simulação de felicidade. Simular era o não ser. Tinha horror a utopias, hipóteses, abstrações. Seus eleitos, era o termo que usava "eleitos", preenchiam determinados requisitos tabulados no Excel. Às vezes, inspirada, elaborava gráficos pizza. A "passagem" se dava por meio de uma picadinha macia no pulso esquerdo. Houve casos que por meio de gotinhas. O diagnóstico não permitia suspeita. A existência de bactérias resistentes depõe contra instituições de prestígio. Enfermidades são fontes perenes de lucro. Casos assim eram sempre abafados. Ela própria erguera as paredes de sua casinha na periferia à base de infartos, tumores, queimaduras, uma série de complicações. Neste rol de misérias, a morte era o desfecho inevitável. Por que adiá-la em casos de patológica desconformidade do ser e seus atos? Liberava (outro termo seu) os hipócritas da nefasta encenação do que não eram, nem aspiravam a ser. Defensores da família adúlteros, patriotas entreguistas, mestiços racistas, moralistas devassos, representantes públicos defensores de interesses privados e pessoais, pastores destituídos de fé, professores descomprometidos e inaptos, intelectuais obtusos, caridosos oportunistas, mecenas mercenários, líderes populistas anti-povo, artistas subversivos domesticados, migrantes xenófobos, progressistas conservadores, liberais do bem alheio, banqueiros filantropos, delinquentes policiais, anarquistas sedentos de poder. Não se julgava uma assassina porque, embora assumisse um critério moral - a incongruência, a incoerência, no seu rígido código de princípios não admitia por sua parte qualquer vacilação. Jurara combater doenças, o nocivo, o danoso. Sabia que os hipócritas eram um câncer a ser extirpado, caso contrário, expandindo seus braços ate a metástase. Desde o princípio da pandemia do corona vírus não se sentia muito bem, num estado aflitivo. Testou positivo, mas não apresentava sintomas. Passou a frequentar nesse período, a grupos negacionistas de vacina, desfilava em carreatas onde militantes se resguardavam em seus carros, com máscaras, munidos de álcool gel. Fazia coros no hino nacional expelindo perdigotos. Longe das alas, tornava a se sentir mal. Seu compromisso de salvar vidas, amenizar sofrimentos, paradoxalmente se opunha aquela forma de expurgo coletivo. Não se sentia bem esses dias, temia ter se contaminado do mal que combatia, os sintomas de hipocrisia eram evidentes.

Dança

Havia um homem do apartamento ao lado que dançava balé. Era casado e tinha uma esposa, também bailarina. A filha de quatro anos, com saia tutu eles exibiam no elevador, além de um enlaçar de bracos, entrecruzar de olhos e roçar de lábios que não deixava dúvida de que eram de fato apaixonados. Isso espantava a todos a quem sapatilhas e colãs eram inerentes de homossexuais. Confinados na pandemia, davam piruetas que faziam tremer lustres no 409. Não adiantava exigir que andassem na ponta dos pés. As meninas encantadas com a vizinha frozen, as mães mortificadas por seu corpo macérrimo. Ninguém ali nunca estivera num balé e os odiavam. Ligavam O lago do cisne e grasnavam reclamações. Ele descia com máscara, malha ou shorts curtíssimos, porteiros e vadios faziam piadas. Reservaram então o salão de festas interditado a aglomerações. Ele e a esposa ensaiavam lá. As crianças podiam assistí-los seguros a distância. O gêmeos do seu Acácio paralisados, as bocas abertas em uníssono silêncio. O pai não queria nada daquilo. A mãe só fazia chorar. Os meninos, que eram ambos, enfrentaram a todos, apaixonados. Eram péssimos em matemática, física, biologia. Nenhum gosto por carros, que seria da oficina mecânica? O pai não deixava. Bateu neles. O casal em rodopio, imbatíveis no plie, no padedeux. Se fosse tango, foxtrote, forro, aceitável, aquele pacote de sexo entre as pernas. Os meninos faziam par no quarto. O pai quebraria ambos na porrada. 

Diana fotografa

Havia uma mulher que fotografava homens nus. Tinha predileção por homens poderosos. Não tinha interesse sexual qualquer por nenhum deles, interessava-a como projeto. Sem que soubesse, ela os caçava e submetia-os a sua vontade, seduzindo-os e obrigando-os a se desnudarem diante de sua lente fria, objetiva, multiangular. Não tinha pressa, para alguém cujo diafragma batia a velocidade de mil frames por segundo, o tempo era uma abstração vulgar a qual só os mortais estão sujeitos. A ideia viera-lhe depois de assistir na universidade uma palestra sobre Leni Rafstaun. Ela errara na glorificação daqueles corpos, refém/tributária/ degenerando-os à estatuária quando deveria-os reduzi-los à carne nua /descarná-los com pretensão às víceras o que almejava a transcendente.   Interessava-lhe captar a essência que emanavam: a agressiva virilidade traduzida em pelos e músculos, a arrogância do olhar de quem não só se julga autossufuciente, mas superior, o poder expresso num movimento de quadril, em punhos, na pressão da mandíbula, no elevar de um maxilar. Interessava-lhe, particularmente, os predadores sexuais, de dentes serrados, proeminentes pomos de Adão, coxas contraídas, lábios finos, a inexorável paixão por seus membros. Cada sessão uma luta, ora rounds brutais de vale tudo, ora de esgrima.
Era uma mulher belissima. Em suas fotos flagrava o empenho em seduzí-la, a crescente frustração de se verem rejeitados, abruptos gesto de agressão, a petulacia, assomos infantis.

 Trabalhava em escala suas exposições. Reduzia os poderosos a dimensão de polaroids. Sublinhava o grotesco em pb, e os modos tribais em cores vibrantes como espécies animais. Ao refletir sobre suas obras dizia-se uma arqueologa, paleantologa, uma antropologa, pois mostrava o primitivo daquelas especies naos instintas, os machos fossizados, escavacoes desses mamutes em lagos de pixe, o degelo de especies extintas da antártica. Desnuda-los nao ao mode dos bustos hregos, a iconografia servil do poder, a glirificacao do falo nas revista de expoete, luta e musculacso era literalmente por a nu o que nao se sustenta. 

Pássaros

Havia uma mulher que acreditava que sua vida não era real. A verdadeira é a que vivia nos sonhos. No exíguo jardim da casa de muros baixos, ela cultivava rosas amarelas. No varal dos fundos, se enlaçavam ao som da rádio AM, seu taierzinho azul marinho, as saias rodadas de bailão. De segunda à sábado, as folgas eram quinzenadas, vendia perfume num shopping no centro. Estava sempre exausta. O companheiro, entregador da rapi, a pegava de moto às dez. E dormiam enganchados numa cama de viúva, simbióticos, como um búfalo e um passaro. 


Sua casa dava para um resto de mata atlântica, de onde saiam pássaros
 que capturava na câmera do celular.

 Despertava no quarto ao lado do marido, célebre matemático, cuja apneia determinara a separação de corpos, não das almas, unanimemente discordantes. Chefiava um departamento no campus, era dos que traziam equações para casa.  Nessa outra vida, ela tinha dois adolescentes, altos, magros, lógicos, dos quais se fizera eficiente mãe sem desejo e vocação. Não eram duas, mas uma: o nome igual, a idade, o olho estrábico, mãe e pai comuns, ambos amados e mortos.  Só as vidas bifurcadas, a partir não sabia de quando nem por quê, ou o fato de aqui canhota, lá, destra. Incompleta, por sua vez, em dupla existência.

O relógio biológico emitindo ondas de alta frequência anos a fio, o marido desfuncional não captou. Na casa impecável, toda ao gosto do marido, de repente se sentia fora de lugar. O flagrante enjoo dos perfumes, e

Submersa na banheira, a, a emitir ecos, o escritório ao fundo restrito aos homens.

 Desconfiava que o marido tinha uma amante virtual. O companheiro disléxico sempre preso em maracutaias. A vida almiscarada resumia-se a pagar boletos e esperar o baile nos finais de semana, se calhasse, o sol em Praia Grande. O jantar burocrático a dois num restaurante fino sem paixão. Os garotos programaram 232 canais na tv a cabo, e comunicaram o intercâmbio no Canadá para dali a uma semana. A memória de uma, na outra. Na dupla jornada da existência, qual a vida real? Qual o sonho?

Resolveu buscar apoio profissional.
O psiquiatra a peso de ouro e o recém formado que atendia no SUS unânimes na prescrição de sedativos. Entorpecida, vagava o dia entre dois mundos. 

Descrente do zodíaco, consultou uma cartomante. O carro, a roda da fortuna, o valete, a estrela. Despachou os filhos para Montreal.  Rompeu a união com anúncio dume que tinha comprou uma Canon 60d e saiu fotografar pássaros no Jardim Botânico. Um ornitologo profissional curtiu seu Instagram e começaram a trocar mensagens. 



Na mostra dos classicos de DePalma de cinema reviu Vestida para matar. mante. Na Pinacoteca do Estado, nada que a atraísse. 
.



Deu um basta no eterno noivado, as contas na perfumaria, raspou poupança e embarcou 






à espera de condições ideais, as inúteis ovulações na hipótese sempre adiada de um bebê. Estava 









A memória de uma, na outra, embaralhavam-se, sem se concluir qual a existência real? A consulta no analista revirando ainda mais as cartas: que outra coisa fazer se não tornar ambas as vidas mais reais.

 sem sentido na casa s filhos que não careciam mais dela. A flagrante fragrânciasO almiscarado 


















Despertava nos longos braços de Paloma. Foram amigas, antes de se entenderem almas gêmeas. Os filhos frutos de uma dupla gravidez, nasceram com os olhos verdes do doador comum. Infernizavam a vida das mães





 almas bipartidas compactuado um mesmo ser

Atavicas

num amor disléxico que beirava à maternidade, 

Oija

Havia um homem que resolveu fazer a brincadeira do copo. Improvisou a tábua ouija na superfície da mesa da cozinha.  O tédio ou a incredulidade o instou para o experimento. Aquela invocação dos mortos, os amigos de colégio tinham lhe contado, faziam sempre na casa de praia. 16 anos passados, ainda se encantava com essas lendas urbanas. 

Isolado em quarentena só fazia se aborrecer com seriados americanos. O apagão no prédio pusera seu apartamento à luz de velas,  e a penumbra dava o clima ideal.

O copo virgem pegou no fundo do armário. Rabiscou com uma caneta marcador o alfabeto em dois semicírculos, embaixo um Sim e Não para respostas breves e entre os dois Adeus, para encerrar a consulta. O indicador sobre a marca nadir, recitou o Padre nosso, convocou os mortos e esperou. 

O som de um carro, lá embaixo, no cruzamento, furando o sinal. A descarga da privada num apartamento distante, o latido abafado de um cão. Sem tirar o dedo, tentou mais três vezes a oração e a pergunta: alguma alma presente?

Silêncio. Apagou a luz e foi dormir. Acordou com um barulho na cozinha, de posse de uma vela, na ponta dos pés, cruzou a sala. A irmã terminava de enxaguar os pratos, se quisesse, tinha ainda cerveja na geladeira. Ele abriu e estava lá. O barulho da torneira no banheiro. Só mais um minuto, pediu a esposa, fechando a porta. O filho saiu de trás do sofá com o velocípede. A mãe na porta, ralhou com o neto. Vamos, é tarde, hora de dormir. O pai no canto da mesa, rabiscou um peixe num bloco de notas. Bonito? Ele concordonou com a cabeça. O pai só sabia desenhar peixes. Sente-se, que que há com você? Ele se sentou de frente para o pai. A esposa o ocupou a cadeira da direita, a irmã, à esquerda estalou os dedos. Na próxima eu jogo, disse a mãe recortada à porta, e se voltando para o breu do quarto: Se eu tiver que ir aí, eu te mato. Puseram os quatro o indicador na fundo do copo. A chama amarela trepidou um pouco, projetando a sombra dos quatro, enquanto a irmã puxava a reza. Se houver um espírito presente, bata três vezes na mesa? Ana perguntou. Ele ouviu um, dois, três. Ótimo, disse o pai se voltando para ele: quer começar? Ele, mudo. Deixe que eu começo, pediu a irmã. Vou me casar com Paulo? O copo se moveu. Não. E voltou ao centro. Puxa! E com outro? Não, repetiu. O sorriso gasto da dentadura da mãe. 




avivara a memória.




 A noite, ele tinha trocado há muito pelo dia, portanto, zero a chance de pegar no sono. Além disso, secara a última garrafa de vodka, sem saco agora para explodir porcos no Angry Birds. Se recordava: primeiro a reza, depois o chamado.

O dedo na marca nadir, o copo deslizaria? A irmã que era boa de oração, ele mal lembrava o padre nosso. Sentiu, de repente, saudades dela. 13 anos da mudança para São Paulo e a promessa sempre adiada de buscá-la. Ela envelheceu com os velhos - que foram se apagando entre o alzheimer e o parkinson -  e ele acabou num casamento às pressas com Ana. Depois, o acidente de carro, a perda do filho. Com o seguro e a indenização, quitaram o apartamento. A esposa, de remorso, se matou na banheiraAgora, todos falecidos, talvez até a irmã. Aliás, o que não lhe faltava eram mortos  a invocar. 

Respirou fundo e tossiu. O indicador na superfície, a oração veio inteira sem necessidade do Google.

Mas o copo não se mexeu.




 ressentidos. 

remoto passado sem registro fotográfico.


 13 anos sem se falarem, atenderia? Tudo por conta do sítio. desde a partilha da mãe da qual não abria mão de um centavo. Culpa dele o alzheimer dos pais?


 



 Nos EUA, mais evoluídos até na capitalização da mentopsicose denominam de tábua Oija, e podem adquirí-lo por um valor módico em supermercados. O subdesenvolvimento do Brasil exige menos, uma mesa pode servir a prática, basta grafar em semicírculo um alfabeto, um sim e um nao nas extremidades para convocar espíritos. Necessária tao somente a virgindade do copo. Pousa-se o dedo na base invertida, reza-se o Padre Nosso para convocar os espíritos a quem se faz perguntas. Trata-se de uma pratica coletiva o que favorece que um ou outro do grupo faça às vezes dos mortos e com destreza deixe deslizar sobre a mesa emitindo mensagens. O blackout do prédio e as velas instou a prática, forma de vencer o tédio, estando ele só. Teve, contudo dificuldade para lembrar a oração, que resgatou com facilidade no celular. 

diversos inicios

Pandora. Havia uma.mulher que remetia caixas a desconhecidos com presentes desconcertantes. 

Havia um homem que fazia delivery de drogas para prefios de luxo

Havia uma mulher que.mantinha em cativeiro uma velha no quarto de empregada.

Havia um casal de velhos que contraiu covid juntos

Havia um homem que prodizia video de desafio para internet.




Havia um homem que era cobaia de testes para novos medicamentos. O dinheiro permitia lhe complementar a renda. 

Havia uma mulher que praticava eutanásia. Trabalhava como enfermeira num hospital de elite, desses q exige dois ou três idiomas. Assim timha acesso a diversas alas.

Havia um homem que invadia computadores dos amigos.

Havia uma mulher que assaltava fazia uber.

Havia um homem que doava esperma para clinicas de fertilizacao

Havia um homem que parou de comer. O resultado, como nao podia deixar de ser foi uma gradual e drástica mudanca de peso 

Havia uma mulher que decidiu certo dia abandonar a familia. 


Havia um homem que guardava a mãe congelada num freezer. 

Havia uma mulher que achava que seu vizinho matara a esposa

Havia um homem viciado em pornografia. O fato de ser um padre complicava as coisas. As tentacoes...

Havia uma mulher ouvia vozes que a mandavam fazer coisas.

Havia uma mulher que achava que o marido havia sido abduzido por alienigenas.

Havia uma mulher que acreditava que sua vida era falsa. A r é a que vivia nos sonhos. 

Havia uma mulher que tinha tesao por anões.

Habia um homem que encontrou objetos pre historicos no quintal de casa.

Havia uma mulher que envenenava a filha. 

Havia um homem que gostava de se cortar.

Havia um homem que decorou todos os nomes da lista telrfonica.

Havia um homem que estava perdendo a memoria.

Havia um homem que cultivava leveduras na geladeira.

Havia uma mulher que se apaixonou por seu pastor.

Havia a mulher que odiava os filhos. 

Havia uma mulher que criava perfiz falsos. 

Havia um homem que produzia fakenews

Havia uma mulher viciada em compras.

Havia um homem que se apaixonou pelo melhor amigo. 

Havia uma mulher que recuperou a audicao. 

Havia uma mulher que nao enxergava cores.

Havia uma mulher que colecionava bombas.

Havia uma mulher que matava animais de estimacao. 

Havia uma mulher que fotografava homens nus.

Havia uma mulher que seguia desconhevidos. 

Havia uma mulher que construu uma bomba.

Havia um homem qie odiava pessoas negras.

Havia uma mulher que lia o destino na borra de café

Havia uma mulher que praticava eutanásia.

Havia uma mulher que odiava sua vida. Mudava de vida a cada tres anos.

Havia uma mulher que comia terra.

Havia um homem que encontrou a mulher perfeita. Ela era casada com outro e nao sabia que o amava. Eram perfeitos um para o outro.

Havia um homem que tinha de javis diariamente.

Havia uma mulher obsecada por corridas.

Havia uma mulher que nao sabia como tinha engravidado.

Havia uma mulher que falsificava dinheiro.

Havia um homem que matava por dinheiro. 

pandora

Havia uma mulher que enviava presentes a desconhecidos. Eles desembarcavam diante da porta dos apartamentos com postits escritos à mão. Ao desatarem o embrulho, os contemplados eram surpreendidos por algo banal, mas estranhamente necessário. O pequeno filhote de angorá de pelos cinzentos pôs vida nos olhos da criança triste; e a mãe, mais do que o pai (que tinha seus peixes num aquário), montou um instagram exclusivo para suas estripulias. O cupom intransferível de ilimitadas guloseimas, na Confeitaria Delícia, adoçou a vida anêmica de Isolda, para inveja da família. O delicado diário rosa com cadeado, confessor de sonhos, planos e segredos da filha adolescente, virou obsessão para mãe super-protetora. 

Sem data festiva e aparente intensão, cortava à tesoura o rubro papel, embalava a caixa branca, e arrematava o pacote com laço de seda esmeralda.  Os embrulhos distribuídos entre os habitantes do edifício, exilados neste período de parademia. O binóculo, a calça jeans dos sonhos, o portarretrato de coração, o wisky 50 anos, a lingerie provocante, o vibrador em forma de coelhinho. Os presentes mais singelos deflagravam catalismos inimagináveis. 

Para alegria da mulher, o gato assassinou os peixes ensandecendo o pai que adiou o ódio: o filho doente de amor e asma pelo gato. A glicemia nas alturas, não resistia ao bolo de doce de leite, nozes, castanhas e chantilin. Arrebentado o cadeado, a revelação do abuso da caçula botou o pai na cadeia. Nenhuma foto feliz para o portarretratos do casal evidenciou o apodrecimento do amor. Os dez anos de sobriedade zerados no primeiro gole de whisky. A lingerie sexy, ele experimentou no grande espelho do banheiro, depois sob o palitó na festa de debutante da filha. Com o binóculo, esmiuçava a rotina da vizinha, seu closet atulhado, sua barriga negativa, seu marido tatuado. O jeans, uns números a mais, a motivou ao regime restrito à gordura e proteína animal. Menos doze quilos, a cintura não fechava, apelou ao jejum intermitente, a uma dieta à base de anfetaminas e diuréticos. A calça, como se encolhesse, insistia em não servir. Por fim, na deep web perdeu de vez o gosto pelo jeans, mesmerizada por Nóri, digital influencer com receitas práticas de bulimia. A senhora do 619 redescobriu um mundo de fantasias com habbit, ergométrico e em seis velocidades. O marido, pacato pintor de paredes, não sabia como arranca-la daquele aliciante mundo de espelhos, devolvê-la para insatisfatória rotina cotidiana. 

Afundada no sofá em frente da televisão de tubo, ela sonhava bonecas russas. A tarde correra exausta com o recortar, encapar, enlaçar outros regalos desconcertantes: um terço de prata, um quebra-cabeça branco de duas mil peças,  um exemplar em francês de Bartlebly, um narguilé importado, a pata de um macaco. O interfone tocou. Empilhou todas as caixas, para não perder a viagem e desceu esbaforida com todos os embrulhos na mão

A espectativa diária de um mal maior tomara o edifício e 

Silenciar




Havia uma mulher que começou a perder os sons da casa. Lavava louça quando o som da água parou, só ouvia o tilintar de pratos e talheres. Outro dia, o latido desesperado do chiuaua sumiu, terça, não despertou com o choro da bebê; até à troca do taco do andar de cima esteve indiferente. No otorrino para os exames: o tímpano, o martelo, a biforna. O labirinto em caracol dava voltas. Receitado um medicamento para cerume, teve a mesma eficiência de um colírio. Não há registro do fenômeno em literatura médica, disse o doutor afastando o otoscópio. Pegou a bolsa, estendeu a mão. Vida que segue. 

No iletrado ouvido, contudo, sons iam-se de repente, isolados de outros. O toque do interfone com as compras, o grave do marido pedindo a toalha. O choro de birra da filha no berço. Um dia, ao passar roupa, sumiu do rádio aquela canção do Roberto. 

Removidos os gritos e hipéboles da vizinha, que não só a apaziguavam, a integravam ao desespero feminino universal, sentiu-se um tanto mais solitária.

Havia, contudo, algo de positivo na seletividade de sons. O ronco do marido ao lado, os resmungos e rompantes da filha adolescente, as chamadas de telemarketing. Sons partiam, outros ficavam sem ter clareza de o porquê. O bom é que logo se adaptou àquilo, entendendo-o não como um fardo, mas um dom. Uma manhã achou que o aspirador de pó estava um pouco demais, e eliminou o ruído. Noutra, uma discussão entre vizinhos foi silenciada, bem como as queixas de saúde da sogra, da mãe, o ruídoso noticiário da tv. Descartou, enfim, as gotas inúteis no ouvido para se fazer guru de si mesma. Iniciada na prática do silêncio, fundou um novo método zen:  o mutismo.

No curso dos dias, desabilitava os ecos dos corredores, o zunzum das crianças, o bater de portas, louvores e melismas que, desafiando a audição divina,  escalam dez andares do prédio e penetravam sem dó seu sagrado lar. Na mesa, experimentou calar as bocas, o sorver das sopas. Ao amamentar, apenas o leve som da sucção de sua bebê, o leite fluindo até seu pequeno estômago.

Uma noite, o horror: o silêncio absoluto e apavorante no breu. Ouviu o correr do sangue, o bombear da aorta, o crescer ciciante dos cabelos. Sentiu-se tonta, solta, sem coordenadas. Se pisasse no chão escorregaria, cairia, nauseada. Estendeu a mão apoiando-se no peito do marido e escutou a arritmia. O cateterismo às pressas evitou o infarto fatal, o dobrar de sinos, as ladainhas, o choro, os pêsames sussurrados, as roldanas descendo, o flap das pás de terra sobre o caixão.

Anichada no sofá com as filhas, o marido e a chiuaua, assistia a um filme de super herói enquanto isolava os efeitos sonoros que sabia feitos artificialmente com chocalhos, lixas de madeira, mixers, máquinas de lavar. O avô do herói disse que grandes poderes trazem grande responsabilidade. Ela, que sentia ter abdicado um pouco de si ao se fazer mãe, pensou em quantos não salvaria com o dom que mantinha em segredo num misto de calado orgulho e exasperada inconsciência. 

Uma voz interna vinha às vezes recriminá-la, fazê-la sentir-se mal consigo mesma. Mas dentro de um número infinito de vozes, essa era apenas mais uma. Ela tinha escolhido a sua própria, e por que tinha poder, ela a silenciou 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

CINZA

Havia uma mulher que não enxergava cores.  Não via o mundo, entretanto, em preto e branco, mas em complexas variações de gris.

No labirinto da cidade, o mais comum era se perder: placas, semáforos, sinais luminosos, uniformes, fachadas de led e neon, Rosa, amarelo, lilás eram indistintos; invariáveis o vermelho, o azul, o verde e o marrom, se restritos a um só tom. Acreditava em formas, volumes, texturas. As frutas, se não provadas, indefinidas; por isso, para ela o sabor era um dos atributos da verdade. Um admirador lhe dera flores, ela mostrou-se imune ao presente, à sua pele bronzeada, aos olhos que não sabia azuis. Conceitos abstratos como bem e mal eram para ela inconcebíveis. Fúria e entusiasmo, similares no modo, de complexa apreensão. 

Quando a professora estrábica a convocava para o quadro-negro, suas frases eram curtas, diretas sem adjetivos ou advérbios. Nas aulas de desenho, a zebra, um equino em retalhos. O arco-iris, um facho de luz entre terra e céu. Na prova de Biologia, definiu a camuflagem como o dom da invisibilidade animal. O camaleão: uma esfinge de impossível entendimento.

Imune a maniqueísmos, achou-se completa no Direito. Sua percepção desencantada, estoica da existência a levou à juíza. A certeza opaca no julgar, toda fundamentada na intencionalidade, nunca na intensidade dos atos. Suas sentenças eram precisas, apartadas do colorido das paixões. 

Não que lhe faltasse sensibilidade. Amava Kafka. Sentia-se, de algum modo, aquele estrangeiro de Camus: o mar e o sol em altíssimo contraste como as letras na página. Lamentava que a vida fosse como um teatro de sombras feito de recortes superdimensionados: mãos simulando platônicas ilusões projetadas de feras. Preferiria um mundo de ideias claras, reais, objetivas. 

Não era insensível ou indiferente a paixões. Aprendera tudo sobre poesia nas fotografias de Cartier-Bresson, de Vivian Maier, de Sebastião Salgado,  A existência se fazia mais real nos filmes de Carl Dreyer e de Orson Welles. O teatro de sombras feito com as mãos a encantava, ali uma metáfora do poder da criação humana. O amor de sua vida era uma acrobática gata siamesa a quem batizou Minerva.

sábado, 25 de julho de 2020

LOOPING

Havia um homem que sofria de narcolepsia. Qualquer emoção mais intensa era nocauteado por um sono violento que podia durar minutos ou horas. 

Recluso, metódico e de hábitos arraigados, ocupava uma quitenete assimétrica de 60m2. Para viver, traduzia livros técnicos: purificadores de água,  aspiradores robôs, aquecedores elétricos. Os arquivos chegavam em pdf editável e eram despachados no mesmo email. Antes da covid-19, já exercia solitário isolamento social. A adoção do Estoicismo fizera sua existência suportável. Defendia-se do caos do mundo com a apatia: o nirvana alcançado por vias da indiferença ao próximo. Por se manter a distância, amava só a si mesmo; por isso há anos não tinha crises.

A pandemia não mudara em nada sua rotina. O prédio ruidoso o aborrecia sem arranhar sua existência invitro; até que houve a mudança do casal para o apartamento ao lado.

O sofá, as estranhas luminárias,  a mesinha de acrílico, o saco de boxear. Assistiu-os chegar pelo olho mágico. O vizinho era grande, todo braços e músculos. Ela, magra, de franhinha sexy: pareciam recém-saídos de um reality show. Giraram a chave. Bateram a porta, ele achou que voltaria ao silêncio, pré-reforma e marteladas, troca de fios e papéis de parede. Dali a dias: seu inferno pessoal.

A discussão começou às treze horas. O tom alto, não aos berros, para mais se fazerem ouvir. Ela tinha que se fazer respeitar, flertando com todos assim! Ele era trouxa? Ela retrucou que ele estava louco. Drogado, tinha ciúmes, inventava complôs. Não era boba, não aceitaria mais isso. Ligaria para o pai. 

As paredes originais alteradas na década de 80 para espessura de nove cm não davam conta de barrar o som. Subitamente, ele, desertor da humanidade, se via exposto. O homem ameaçou esganá-la, ouviu-a recuar, o homem correu e esmurrou forte a parede. O quadro da mãe tremeu no prego, e ele caiu no sono.

Acordou depois de horas no tapete. A sala, no escuro. Nenhum ruído que não o som abafado da novela nos vizinhos. Abriu a porta, o corredor vazio. Certamente a polícia partira há horas. Não queria pensar na briga, amanhã relato viria de burburinhos no andar. O trabalho atrasado sobre a mesa, tomou o café e o continuou.

No dia seguinte, nem um ruído indistinto no andar. Estranhou a calmaria. A monotonia da quarentena exigia que se vivesse a vida alheia. Era cedo. Almoçava religiosamente ao meio dia. Às treze, começou a discussão. 

Não era tolo. Ela flertando. Estava louco? Chamaria o pai. O horror daquilo, o atingiu em cheio: não era nova discussão, mas a mesma. Ele tivera uma premonição daquilo. Um déjà vu. O outro ameaçou esganá-la. Ela se recostou na parede. O soco dele estremeceu o quadro. Agora a pegara pelo pescoço, e ela implorava pela vida. Precisava ligar à portaria. Estendeu a mão para alcançar o interfone, mas lhe veio o sono, caiu.

Despertou na madrugada. O prédio em frente imóvel. A impressão de estar diante de uma fotografia traída pela intermitente luz de um abajur. Nenhum carro na madrugada. O vírus pora o mundo em suspensão. 

O andar calado. Se tivesse havido morte, ainda aquele silêncio? A louça já seca no escorredor, ele não a guardara. Apanhou um comprimido vencido, tomou um e se deitou.

No email, chegaram novos trabalhos. Em dez anos, jamais atrasara uma tradução. O armário repleto de latas. Fizera estoque para um mês. Preparou uma sopa. Metade foi para geladeira. Então ouviu um princípio de discussão. Eram treze, no relógio. A sobreveio a vertigem, era só questão de segundos: lançou-se no sofá e desmaiou.

Acordou e não era noite. Havia uma movimentação tranquila no andar. Com um copo recostado na parede, os vizinhos pareciam mortos. Apanhou o interfone. A campainha soou abafada e, de repente: alô. Era a vizinha. Ele pôs o fone no gancho. Estaria enlouquecendo?

A vida social desde cedo em escombros. Um rol de especialistas e o veredito unânime: o hipotálamo falhava no processar das emoções. A decisão acertada do litígio com a vida, do exílio, da segura solidão. Tudo que não servia para nada se o destino final era enlouquecer! Não, decidiu, mais nenhum exame. Mas e se não fosse isso? Se zombassem dele? Impossível: os anos renovaram a vizinhança, nenhuma intimidade com ninguém do andar. 

Todos os dias amanheciam iguais na quarentena. Dispôs a cadeira diante da parede e esperou. A discussão começou pontual às treze horas.

Apanhou o interfone e ligou para portaria. Alô, disse o homem. Estão se matando 706, sussurrou tenso. Não consigo escutá-lo, repetiu o porteiro Poderia falar mais alto?! O homem esmurrou a parede. A mulher não conseguia gritar. Quer que eu mande alguém ai? Disse o porteiro. Alguém em sua casa? Não, ia dizer, mas teve medo e desmaiou. 

Talvez fosse o vírus. Tinha sido infectado e não sabia. Talvez estivesse em coma, entubado em decúbito prono. Feito desfecho de filme ruim, nada mais que um sonho. Beliscou-se, ciente de que, sonhando, sentiria o beliscão. 

Faltando cinco minutos, colocou a cadeira e esperou. E se ligasse agora, alertando-a?

Alô. Ele disse. E antes que pudesse dizer: fuja daí! Ele vai te matar! Ela respondeu: Não posso falar agora. Desligou. Flertando no prédio? Acha que sou trouxa? Esbravejou o marido do outro lado, ainda mais violento. Levou as duas mãos, rápido, no ouvido e desabou.

Houve prenúncios da desordem. O salto mortal do rapaz do prédio em frente. A névoa para desratização que tomou o corredor penetrando reentrâncias, botando pó na superfície dos móveis. O sumiço do anão anunciado em cartazes de procura-se. Tais eventos precederam a entrada naquele looping temporal, como dissociá-los?

O instinto já gasto de autopreservação emitia inequívocos sinais de "fuja para a floresta." Uma parte aleijada dentro de si, sussurrava para que salvasse a moça. Como um centauro indeciso entre suas duas naturezas, não procurava mais explicações, mas um sentido para aquilo. Sabia, por exemplo, que a ação de ignorar não afastaria o problema, que o que sucedesse aos outros, também o atingiria. 


Sentado diante da parede esperou. A poltrona inclinada, ao menos se livraria dos hematomas, do mal jeito das quedas. Havia retirado os quadros, afastado móveis, a parede nua como uma tela de projeção, um teatro. Se empenhado, era possivel ver o desenrolar da cena, precisa, sem variações: "somos joguetes do destino lhe diria Shakespeare, Hamlet, ou ambos. 

O soco na parede, depois a enforcá-la. Este era o novo normal. A gente se adapta a tudo. Esperou que ela sufocasse, mas de repente o marido a largou. Dava-lhe tapinhas no rosto e implorava, acorde. Então num solavanco ela tinha um acesso de tosse. E vivia. Comovido, desmaiou. 

Às 15h20, de pé, era tempo de botar ordem na vida. Reduziu à metade do tempo habitual à tradução do manual de aquededor a gás e  à de um minifrigobar. Colocou roupas na máquina, recolheu o lixo da casa e aventurou-se, paramentado de escafandrista, até à lixeira do andar. De volta à cozinha, seguiu passo a passo às instruções que traduzira para elaboração do mais perfeito café feito numa máquina italiana, e sentado frente à parede cogitou ligar para o moça.

As três tentativas anteriores, era sempre o marido atendia. Fingiu duas vezes ser um entregador de pizza equivocado com o número. Desligar, como fizera a primeira vez, poderia desencadear uma tragédia. Ouvia-o socar com energia o saco de areia.

No espelho do banheiro, um homem magro, alto e pouco atlético. No confronto com o outro, a ameaça do soco já o poria para dormir. No tempo do dr. Freud, para o seu problema só cocaína. Por isso, apreciava tanto tomar café. Quem sabe um dia, ao acaso, não daria com o grão da cura.

As 13h06 ele socava a parede. Às 13h12 ela sobrevivia. Depois, ele engendrava um monólogo que evocava perdão, justificava-se com a pressão que sofre um delegado, a morte recente do pai. Beber era uma forma de sobreviver à pandemia. Não compreendia? Ele só batia por que amava. Ele pedia um abraço, ela cedia, ele forçava um beijo, depois sexo. Ele chegava até aqui e desmaiava. Cada não dela o mortificava. Depois do terceiro pare, reiniciavam os tapas. Ela evocava Deus. Era o seu limite.

Antes das treze, já estava furioso. Impossível que os apartamentos em volta ninguém reagisse. Sentia-se impotente, indignado, profundamente triste. E com medo: da dor, da morte, do desamparo da justiça. Temia tocar a campainha e desmaiar de espectativa. Não tinha amigos, provas, nada. Se enviasse à polícia a mensagem antes da agressão, que faria com ele essa polícia que protege os seus? Se contasse a alguém, o estranho, quem acreditaria nele? Os intensos sentimentos tomando-o. Cada dia suportava os mais intensos sem adormecer.

Com os dias, venceu a longa sequência do estupro. Pelo celular ela tentava falar com uma amiga. Ele a flagrava e, ameçando-a, destruía o aparelho. Depois a algemava, no sofá,  apoiava o pé na sua cabeça se vangloriando em voz alta. Então ela encontrava a arma. E se ouviam três tiros. Neste instante ele desmaiava. Impossível saber o desfecho. Morria ele, ela, ambos? Me espere, dizia consigo. As traduções todas por fazer. Não tinha cabeça para aquilo. Como foi possível viver tanto tempo sem sentir?

De repente, quando tudo fazia sentido, o casal sumiu. Ligava o interfone para ninguém atender. Um dor insuportável se apossou dele. Dormia e despertava em ciclos de minutos. Sua mãe ligou de Londrina. Estava bem? Ele tentou simular a apatia, a frieza antiga, mas já não podia se conter: disse que a amava, e ao pai, queria conhecer os sobrinhos, sentia falta do irmão. Com alegria, viram-se na câmera, espantados todos de não o verem dormir. E prometeram se reencontrar em breve, o pai se recuperava agora em casa. Tudo daria certo. 


Estava no banho quando ouviu as vozes exaltadas. Então voltaram. Nao cabia em si de tão feliz. Aquela guerra conjugal o apaziguara. Terminava de calçar os sapatos quando ouviu o primeiro tiro,  já havia girado a chave quando soaram o segundo, o terceiro e fez silêncio. Então diante da porta, no corredor,  tocou freneticamente a campainha sem desmaiar. Quem abriu foi ele, ela estava logo atrás. Com toda a força que tinha desferiu-lhe um soco que o fez recuar. Ele estendeu a mão:  Vamos! E um tanto atônita, ela foi com ele. Entraram no elevador, ele premeu o térreo.  A luz fluorescente piscante tornava tudo menos real. 

Acho que quebrei minha mão ao bater no seu marido.

Ele não é o meu marido.  É um ator.


Quer dizer que vocês estavam encenando todo tempo?

Com transição ao vivo para cinco países. Você não sabia?

Não.

Ouviu os tiros? Ele podia ter te matado.

Eu sei, disse. E aquele engano era de repente, fascinante. E você sabe quem sobrevive no final?

Acho que nós dois, disse sorrindo. E apertou o botão de volta para o andar.



versão 1

LOOPING

Havia um homem que sofria de narcolepsia. Qualquer emoção mais intensa era nocauteado por um sono violento que podia durar minutos ou horas. 

Tornou-se recluso, metódico e de hábitos arraigados. Refugira-se numa quitenete assimétrica legada pelos pais, sua torre de marfim erguida nos anos 50,  de 60m2. Para viver, traduzia livros técnicos: purificadores de água,  aspiradores robôs, aquecedores elétricos. Os arquivos chegavam em pdf editável e eram despachados no mesmo email. Antes da covid-19, já exercia sem dor o isolamento social. A descoberta dos estóicos fizera sua existência suportável. Defendia-se da instabilidade constante do mundo com o escudo da apatia. Assim, teria alcançado o nirvana por vias da indiferença ao próximo. Por se manter a distância, amava só a si mesmo; por isso há anos não tinha crises.



A pandemia não mudara em nada sua rotina. O prédio ruidoso o aborrecia sem arranhar sua existência invitro; até a mudança de um casal para o apartamento ao lado estilhaça-la.


O sofá, as estranhas luminárias,  a mesinha de acrílico, o saco de boxear. Assistiu-os chegar pelo olho mágico. O vizinho era grande, todo braços e músculos. Ela, magra, de franhinha sexy: pareciam recém-saídos de um reality show. Giraram a chave. Bateram a porta, ele achou que voltaria ao silêncio, pré-reforma e marteladas, troca de fios e papéis de parede. Dali a dias: seu inferno pessoal.

A discussão começou às treze. O tom alto, não aos berros, para mais se fazerem ouvir. Ela tinha que se fazer respeitar, flertando com todos assim! Ele era trouxa? Ela retrucou que estava louco. Drogado, tinha ciúmes, inventava complôs. Não era boba, não aceitaria mais isso. Ligaria para o pai. 

As paredes originais substituídas na década de 80 por placas de dez cm não davam conta de barrar o som. Subitamente, ele, a quem não atingia a fúria do mundo, se via exposto. O homem ameaçou esganá-la, ouviu-a recuar, o homem correu e esmurrou forte a parede. O quadro da mãe tremeu no prego, e ele caiu no sono.

Acordou horas depois no tapete. A sala no escuro. Nenhum barulho que não fosse o som abafado da novela nos vizinhos. Abriu a porta, o corredor vazio. Certamente a polícia partira há muitas horas. Não queria pensar no crime, amanhã os burburinhos no corredor. O trabalho atrasado sobre a mesa, tomou o café e o continuou.

No dia seguinte, nem um ruído indistinto no andar. Estranhou a calmaria. A monotonia da quarentena exigia que se vivesse a vida alheia. Era cedo. Almoçava religiosamente as 12. Às 13h, reiniciou-se a discussão. 

Não era tolo. Ela flertando. Estava louco? Chamaria o pai. O horror daquilo, o atingiu em cheio. Não estava morta, nem ele preso. Ele tivera uma premonição daquilo. Um deja vu. O outro ameaçou esganá-la. Ela se recostou na parede. O soco dele estremeceu o quadro. Agora a pegara pelo pescoço, e ela implorava pela vida. Estendeu a mão para alcançar o interfone, mas lhe veio o sono, caiu.

Despertou na madrugada. O prédio em frente imóvel, a impressão de estar diante de uma fotografia só era traída pela intermitente luz de um abajur numa janela. Nenhum carro na madrugada. O vírus pora o mundo em suspensão. 

O andar calado, se tivesse havido morte, ainda aquele silêncio? A louça no escorredor, seca, ele não a guardara. Apanhou um comprimido vencido, tomou um e se deitou.

No email, chegaram novos trabalhos. Em dez anos nunca se atrasara com a tradução. O armário repleto de latas. Fizera estoque para um mês. Preparou uma sopa. Metade foi para geladeira. Então ouviu um princípio de discussão. Eram 13h no relógio. Foi tomado imediatamente por uma vertigem. Era questão de segundos. Lançou-se no sofá e desmaiou.

Acordou e não era noite. Havia uma movimentação tranquila nos corredores. Com um copo recostado na parede, os vizinhos pareciam mortos. Apanhou o interfone. A campainha soou abafada e, de repente: alô. Era a vizinha. Ele pôs o fone no gancho. Estaria enlouquecendo?

A vida social desde cedo em escombros. Um rol de especialistas e o veredito unânime: o hipotálamo falhava no processar das emoções. A decisão acertada do litígio com a vida, do exilio, da segura solidão. Tudo que não servia para nada se o final terminaria por enlouquecer! Não, decidiu, mais nenhum exame. Mas se não fosse isso? Se zombassem dele? Impossível: os anos renovaram a vizinhança, nenhuma intimidade com ninguém do andar. 

Todos os dias amanheciam iguais na quarentena. Dispôs a cadeira diante da parede e esperou. A discussão começou pontual às treze horas. 
Apanhou o interfone e ligou para portaria. Alô, disse o homem. Estão se matando 706, sussurrou tenso. Não consigo escutá-lo, repetiu o porteiro Poderia falar mais alto?! O homem esmurrou a parede. A mulher não conseguia gritar. Quer que eu mande alguém ai? Perguntou o porteiro. Alguém em sua casa? Não! Ia dizer, mas teve medo e desmaiou. 

Talvez fosse o vírus. Tinha sido infectado e não sabia. Talvez estivesse em coma, entubado e em decúbito dorsal. Feito esses filmes ruins que no final tudo, só um sonho, o cara estava morto e o público é traído. Beliscou-se, ciente de que, sonhando, sentiria o beliscão. 

Faltando 5 minutos, colocou a cadeira e esperou. E se ligasse agora, alertando-a?

Alô. Ele disse. E antes que pudesse dizer, fuja daí, ele vai te matar; ela respondeu: Não posso falar agora. Desligou. Flertando no prédio? Acha que sou trouxa? Esbravejou o marido do outro lado, agora, mais violento. Colocou as duas mãos, rápido, no ouvido e desabou.

O salto mortal do rapaz do prédio em frente. A desratização do andar levantou uma névoa que botou um pó fino na superfície dos móveis. O sumiço do anão anunciado em cartazes de procura-se. Tais eram os eventos que antecederam a entrada de sua existência naquele looping temporal. Vistos a distancia, eram inegáveis prenúncios de caos. 

O instinto já gasto de autopreservação emitia inequívocos sinais de "fuja para a floresta." Uma parte aleijada dentro de si, sussurrava para que salvasse a moça. Como um centauro indeciso entre suas duas naturezas, não procurava mais explicações, mas um sentido para aquilo. Sabia, por exemplo, que a ação de ignorar não afastaria o problema, que o que sucedesse aos outros, também o atingiria. 


Sentado diante da parede esperou. A poltrona inclinada, ao menos se livraria dos hematomas, do mal jeito das quedas. Havia retirado os quadros, afastado móveis, a parede nua como uma tela de projeção, um teatro. Se empenhado, era possivel ver o desenrolar da cena, precisa, sem variações: "somos joguetes do destino lhe diria Shakespeare, Hamlet, ou ambos. 

O soco na parede, depois a enforcá-la. Este era o novo normal. A gente se adapta a tudo. Esperou que ela sufocasse, mas de repente o marido a largou. Dava-lhe tapinhas no rosto e implorava, acorde. Então num solavanco ela tinha um acesso de tosse. E vivia. Comovido, desmaiou. 

Às 15h20, de pé, era tempo de botar ordem na vida. Reduziu à metade do tempo habitual à tradução do manual de aquededor a gás e  à de um minifrigobar. Colocou roupas na máquina, recolheu o lixo da casa e aventurou-se, paramentado de escafandrista, até à lixeira do andar. De volta à cozinha, seguiu passo a passo às instruções que traduzira para elaboração do mais perfeito café feito numa máquina italiana, e sentado frente à parede cogitou ligar para o moça.

As três tentativas anteriores, era sempre o marido atendia. Fingiu duas vezes ser um entregador de pizza equivocado com o número. Desligar, como fizera a primeira vez, poderia desencadear uma tragédia. Ouvia-o socar com energia o saco de areia.

No espelho do banheiro, um homem magro, alto e pouco atlético. No confronto com o outro, a ameaça do soco já o poria para dormir. No tempo do dr. Freud, para o seu problema só cocaína. Por isso, apreciava tanto tomar café. Quem sabe um dia, ao acaso, não daria com o grão da cura.

As 13h06 ele socava a parede. Às 13h12 ela sobrevivia. Depois, ele engendrava um monólogo que evocava perdão, justificava-se com a pressão que sofre um delegado, a morte recente do pai. Beber era uma forma de sobreviver à pandemia. Não compreendia? Ele só batia por que amava. Ele pedia um abraço, ela cedia, ele forçava um beijo, depois sexo. Ele chegava até aqui e desmaiava. Cada não dela o mortificava. Depois do terceiro pare, reiniciavam os tapas. Ela evocava Deus. Era o seu limite.

Antes das treze, já estava furioso. Impossível que os apartamentos em volta ninguém reagisse. Sentia-se impotente, indignado, profundamente triste. E com medo: da dor, da morte, do desamparo da justiça. Temia tocar a campainha e desmaiar de espectativa. Não tinha amigos, provas, nada. Se enviasse à polícia a mensagem antes da agressão, que faria com ele essa polícia que protege os seus? Se contasse a alguém, o estranho, quem acreditaria nele? Os intensos sentimentos tomando-o. Cada dia suportava os mais intensos sem adormecer.

Com os dias, venceu a longa sequência do estupro. Pelo celular ela tentava falar com uma amiga. Ele a flagrava e, ameçando-a, destruía o aparelho. Depois a algemava, no sofá,  apoiava o pé na sua cabeça se vangloriando em voz alta. Então ela encontrava a arma. E se ouviam três tiros. Neste instante ele desmaiava. Impossível saber o desfecho. Morria ele, ela, ambos? Me espere, dizia consigo. As traduções todas por fazer. Não tinha cabeça para aquilo. Como foi possível viver tanto tempo sem sentir?

De repente, quando tudo fazia sentido, o casal sumiu. Ligava o interfone para ninguém atender. Um dor insuportável se apossou dele. Dormia e despertava em ciclos de minutos. Sua mãe ligou de Londrina. Estava bem? Ele tentou simular a apatia, a frieza antiga, mas já não podia se conter: disse que a amava, e ao pai, queria conhecer os sobrinhos, sentia falta do irmão. Com alegria, viram-se na câmera, espantados todos de não o verem dormir. E prometeram se reencontrar em breve, o pai se recuperava agora em casa. Tudo daria certo. 


Estava no banho quando ouviu as vozes exaltadas. Então voltaram. Nao cabia em si de tão feliz. Aquela guerra conjugal o apaziguara. Terminava de calçar os sapatos quando ouviu o primeiro tiro,  já havia girado a chave quando soaram o segundo, o terceiro e fez silêncio. Então diante da porta, no corredor,  tocou freneticamente a campainha sem desmaiar. Quem abriu foi ele, ela estava logo atrás. Com toda a força que tinha desferiu-lhe um soco que o fez recuar. Ele estendeu a mão:  Vamos! E um tanto atônita, ela foi com ele. Entraram no elevador, ele premeu o térreo.  A luz fluorescente piscante tornava tudo menos real. 

Acho que quebrei minha mão ao bater no seu marido.

Ele não é o meu marido.  É um ator.


Quer dizer que vocês estavam encenando todo tempo?

Com transição ao vivo para cinco países. Você não sabia?

Não.

Ouviu os tiros? Ele podia ter te matado.

Eu sei, disse. E aquele engano era de repente, fascinante. E você sabe quem sobrevive no final?

Acho que nós dois, disse sorrindo. E apertou o botão de volta para o andar.