Havia um homem que sofria de narcolepsia. Qualquer emoção mais intensa era nocauteado por um sono violento que podia durar minutos ou horas.
Recluso, metódico e de hábitos arraigados, ocupava uma quitenete assimétrica de 60m2. Para viver, traduzia livros técnicos: purificadores de água, aspiradores robôs, aquecedores elétricos. Os arquivos chegavam em pdf editável e eram despachados no mesmo email. Antes da covid-19, já exercia solitário isolamento social. A adoção do Estoicismo fizera sua existência suportável. Defendia-se do caos do mundo com a apatia: o nirvana alcançado por vias da indiferença ao próximo. Por se manter a distância, amava só a si mesmo; por isso há anos não tinha crises.
A pandemia não mudara em nada sua rotina. O prédio ruidoso o aborrecia sem arranhar sua existência invitro; até que houve a mudança do casal para o apartamento ao lado.
O sofá, as estranhas luminárias, a mesinha de acrílico, o saco de boxear. Assistiu-os chegar pelo olho mágico. O vizinho era grande, todo braços e músculos. Ela, magra, de franhinha sexy: pareciam recém-saídos de um reality show. Giraram a chave. Bateram a porta, ele achou que voltaria ao silêncio, pré-reforma e marteladas, troca de fios e papéis de parede. Dali a dias: seu inferno pessoal.
A discussão começou às treze horas. O tom alto, não aos berros, para mais se fazerem ouvir. Ela tinha que se fazer respeitar, flertando com todos assim! Ele era trouxa? Ela retrucou que ele estava louco. Drogado, tinha ciúmes, inventava complôs. Não era boba, não aceitaria mais isso. Ligaria para o pai.
As paredes originais alteradas na década de 80 para espessura de nove cm não davam conta de barrar o som. Subitamente, ele, desertor da humanidade, se via exposto. O homem ameaçou esganá-la, ouviu-a recuar, o homem correu e esmurrou forte a parede. O quadro da mãe tremeu no prego, e ele caiu no sono.
Acordou depois de horas no tapete. A sala, no escuro. Nenhum ruído que não o som abafado da novela nos vizinhos. Abriu a porta, o corredor vazio. Certamente a polícia partira há horas. Não queria pensar na briga, amanhã relato viria de burburinhos no andar. O trabalho atrasado sobre a mesa, tomou o café e o continuou.
No dia seguinte, nem um ruído indistinto no andar. Estranhou a calmaria. A monotonia da quarentena exigia que se vivesse a vida alheia. Era cedo. Almoçava religiosamente ao meio dia. Às treze, começou a discussão.
Não era tolo. Ela flertando. Estava louco? Chamaria o pai. O horror daquilo, o atingiu em cheio: não era nova discussão, mas a mesma. Ele tivera uma premonição daquilo. Um déjà vu. O outro ameaçou esganá-la. Ela se recostou na parede. O soco dele estremeceu o quadro. Agora a pegara pelo pescoço, e ela implorava pela vida. Precisava ligar à portaria. Estendeu a mão para alcançar o interfone, mas lhe veio o sono, caiu.
Despertou na madrugada. O prédio em frente imóvel. A impressão de estar diante de uma fotografia traída pela intermitente luz de um abajur. Nenhum carro na madrugada. O vírus pora o mundo em suspensão.
O andar calado. Se tivesse havido morte, ainda aquele silêncio? A louça já seca no escorredor, ele não a guardara. Apanhou um comprimido vencido, tomou um e se deitou.
No email, chegaram novos trabalhos. Em dez anos, jamais atrasara uma tradução. O armário repleto de latas. Fizera estoque para um mês. Preparou uma sopa. Metade foi para geladeira. Então ouviu um princípio de discussão. Eram treze, no relógio. A sobreveio a vertigem, era só questão de segundos: lançou-se no sofá e desmaiou.
Acordou e não era noite. Havia uma movimentação tranquila no andar. Com um copo recostado na parede, os vizinhos pareciam mortos. Apanhou o interfone. A campainha soou abafada e, de repente: alô. Era a vizinha. Ele pôs o fone no gancho. Estaria enlouquecendo?
A vida social desde cedo em escombros. Um rol de especialistas e o veredito unânime: o hipotálamo falhava no processar das emoções. A decisão acertada do litígio com a vida, do exílio, da segura solidão. Tudo que não servia para nada se o destino final era enlouquecer! Não, decidiu, mais nenhum exame. Mas e se não fosse isso? Se zombassem dele? Impossível: os anos renovaram a vizinhança, nenhuma intimidade com ninguém do andar.
Todos os dias amanheciam iguais na quarentena. Dispôs a cadeira diante da parede e esperou. A discussão começou pontual às treze horas.
Apanhou o interfone e ligou para portaria. Alô, disse o homem. Estão se matando 706, sussurrou tenso. Não consigo escutá-lo, repetiu o porteiro Poderia falar mais alto?! O homem esmurrou a parede. A mulher não conseguia gritar. Quer que eu mande alguém ai? Disse o porteiro. Alguém em sua casa? Não, ia dizer, mas teve medo e desmaiou.
Talvez fosse o vírus. Tinha sido infectado e não sabia. Talvez estivesse em coma, entubado em decúbito prono. Feito desfecho de filme ruim, nada mais que um sonho. Beliscou-se, ciente de que, sonhando, sentiria o beliscão.
Faltando cinco minutos, colocou a cadeira e esperou. E se ligasse agora, alertando-a?
Alô. Ele disse. E antes que pudesse dizer: fuja daí! Ele vai te matar! Ela respondeu: Não posso falar agora. Desligou. Flertando no prédio? Acha que sou trouxa? Esbravejou o marido do outro lado, ainda mais violento. Levou as duas mãos, rápido, no ouvido e desabou.
Houve prenúncios da desordem. O salto mortal do rapaz do prédio em frente. A névoa para desratização que tomou o corredor penetrando reentrâncias, botando pó na superfície dos móveis. O sumiço do anão anunciado em cartazes de procura-se. Tais eventos precederam a entrada naquele looping temporal, como dissociá-los?
O instinto já gasto de autopreservação emitia inequívocos sinais de "fuja para a floresta." Uma parte aleijada dentro de si, sussurrava para que salvasse a moça. Como um centauro indeciso entre suas duas naturezas, não procurava mais explicações, mas um sentido para aquilo. Sabia, por exemplo, que a ação de ignorar não afastaria o problema, que o que sucedesse aos outros, também o atingiria.
Sentado diante da parede esperou. A poltrona inclinada, ao menos se livraria dos hematomas, do mal jeito das quedas. Havia retirado os quadros, afastado móveis, a parede nua como uma tela de projeção, um teatro. Se empenhado, era possivel ver o desenrolar da cena, precisa, sem variações: "somos joguetes do destino lhe diria Shakespeare, Hamlet, ou ambos.
O soco na parede, depois a enforcá-la. Este era o novo normal. A gente se adapta a tudo. Esperou que ela sufocasse, mas de repente o marido a largou. Dava-lhe tapinhas no rosto e implorava, acorde. Então num solavanco ela tinha um acesso de tosse. E vivia. Comovido, desmaiou.
Às 15h20, de pé, era tempo de botar ordem na vida. Reduziu à metade do tempo habitual à tradução do manual de aquededor a gás e à de um minifrigobar. Colocou roupas na máquina, recolheu o lixo da casa e aventurou-se, paramentado de escafandrista, até à lixeira do andar. De volta à cozinha, seguiu passo a passo às instruções que traduzira para elaboração do mais perfeito café feito numa máquina italiana, e sentado frente à parede cogitou ligar para o moça.
As três tentativas anteriores, era sempre o marido atendia. Fingiu duas vezes ser um entregador de pizza equivocado com o número. Desligar, como fizera a primeira vez, poderia desencadear uma tragédia. Ouvia-o socar com energia o saco de areia.
No espelho do banheiro, um homem magro, alto e pouco atlético. No confronto com o outro, a ameaça do soco já o poria para dormir. No tempo do dr. Freud, para o seu problema só cocaína. Por isso, apreciava tanto tomar café. Quem sabe um dia, ao acaso, não daria com o grão da cura.
As 13h06 ele socava a parede. Às 13h12 ela sobrevivia. Depois, ele engendrava um monólogo que evocava perdão, justificava-se com a pressão que sofre um delegado, a morte recente do pai. Beber era uma forma de sobreviver à pandemia. Não compreendia? Ele só batia por que amava. Ele pedia um abraço, ela cedia, ele forçava um beijo, depois sexo. Ele chegava até aqui e desmaiava. Cada não dela o mortificava. Depois do terceiro pare, reiniciavam os tapas. Ela evocava Deus. Era o seu limite.
Antes das treze, já estava furioso. Impossível que os apartamentos em volta ninguém reagisse. Sentia-se impotente, indignado, profundamente triste. E com medo: da dor, da morte, do desamparo da justiça. Temia tocar a campainha e desmaiar de espectativa. Não tinha amigos, provas, nada. Se enviasse à polícia a mensagem antes da agressão, que faria com ele essa polícia que protege os seus? Se contasse a alguém, o estranho, quem acreditaria nele? Os intensos sentimentos tomando-o. Cada dia suportava os mais intensos sem adormecer.
Com os dias, venceu a longa sequência do estupro. Pelo celular ela tentava falar com uma amiga. Ele a flagrava e, ameçando-a, destruía o aparelho. Depois a algemava, no sofá, apoiava o pé na sua cabeça se vangloriando em voz alta. Então ela encontrava a arma. E se ouviam três tiros. Neste instante ele desmaiava. Impossível saber o desfecho. Morria ele, ela, ambos? Me espere, dizia consigo. As traduções todas por fazer. Não tinha cabeça para aquilo. Como foi possível viver tanto tempo sem sentir?
De repente, quando tudo fazia sentido, o casal sumiu. Ligava o interfone para ninguém atender. Um dor insuportável se apossou dele. Dormia e despertava em ciclos de minutos. Sua mãe ligou de Londrina. Estava bem? Ele tentou simular a apatia, a frieza antiga, mas já não podia se conter: disse que a amava, e ao pai, queria conhecer os sobrinhos, sentia falta do irmão. Com alegria, viram-se na câmera, espantados todos de não o verem dormir. E prometeram se reencontrar em breve, o pai se recuperava agora em casa. Tudo daria certo.
Estava no banho quando ouviu as vozes exaltadas. Então voltaram. Nao cabia em si de tão feliz. Aquela guerra conjugal o apaziguara. Terminava de calçar os sapatos quando ouviu o primeiro tiro, já havia girado a chave quando soaram o segundo, o terceiro e fez silêncio. Então diante da porta, no corredor, tocou freneticamente a campainha sem desmaiar. Quem abriu foi ele, ela estava logo atrás. Com toda a força que tinha desferiu-lhe um soco que o fez recuar. Ele estendeu a mão: Vamos! E um tanto atônita, ela foi com ele. Entraram no elevador, ele premeu o térreo. A luz fluorescente piscante tornava tudo menos real.
Acho que quebrei minha mão ao bater no seu marido.
Ele não é o meu marido. É um ator.
Quer dizer que vocês estavam encenando todo tempo?
Com transição ao vivo para cinco países. Você não sabia?
Não.
Ouviu os tiros? Ele podia ter te matado.
Eu sei, disse. E aquele engano era de repente, fascinante. E você sabe quem sobrevive no final?
Acho que nós dois, disse sorrindo. E apertou o botão de volta para o andar.
versão 1
LOOPING
versão 1
LOOPING
Havia um homem que sofria de narcolepsia. Qualquer emoção mais intensa era nocauteado por um sono violento que podia durar minutos ou horas.
Tornou-se recluso, metódico e de hábitos arraigados. Refugira-se numa quitenete assimétrica legada pelos pais, sua torre de marfim erguida nos anos 50, de 60m2. Para viver, traduzia livros técnicos: purificadores de água, aspiradores robôs, aquecedores elétricos. Os arquivos chegavam em pdf editável e eram despachados no mesmo email. Antes da covid-19, já exercia sem dor o isolamento social. A descoberta dos estóicos fizera sua existência suportável. Defendia-se da instabilidade constante do mundo com o escudo da apatia. Assim, teria alcançado o nirvana por vias da indiferença ao próximo. Por se manter a distância, amava só a si mesmo; por isso há anos não tinha crises.
A pandemia não mudara em nada sua rotina. O prédio ruidoso o aborrecia sem arranhar sua existência invitro; até a mudança de um casal para o apartamento ao lado estilhaça-la.
O sofá, as estranhas luminárias, a mesinha de acrílico, o saco de boxear. Assistiu-os chegar pelo olho mágico. O vizinho era grande, todo braços e músculos. Ela, magra, de franhinha sexy: pareciam recém-saídos de um reality show. Giraram a chave. Bateram a porta, ele achou que voltaria ao silêncio, pré-reforma e marteladas, troca de fios e papéis de parede. Dali a dias: seu inferno pessoal.
A discussão começou às treze. O tom alto, não aos berros, para mais se fazerem ouvir. Ela tinha que se fazer respeitar, flertando com todos assim! Ele era trouxa? Ela retrucou que estava louco. Drogado, tinha ciúmes, inventava complôs. Não era boba, não aceitaria mais isso. Ligaria para o pai.
As paredes originais substituídas na década de 80 por placas de dez cm não davam conta de barrar o som. Subitamente, ele, a quem não atingia a fúria do mundo, se via exposto. O homem ameaçou esganá-la, ouviu-a recuar, o homem correu e esmurrou forte a parede. O quadro da mãe tremeu no prego, e ele caiu no sono.
Acordou horas depois no tapete. A sala no escuro. Nenhum barulho que não fosse o som abafado da novela nos vizinhos. Abriu a porta, o corredor vazio. Certamente a polícia partira há muitas horas. Não queria pensar no crime, amanhã os burburinhos no corredor. O trabalho atrasado sobre a mesa, tomou o café e o continuou.
No dia seguinte, nem um ruído indistinto no andar. Estranhou a calmaria. A monotonia da quarentena exigia que se vivesse a vida alheia. Era cedo. Almoçava religiosamente as 12. Às 13h, reiniciou-se a discussão.
Não era tolo. Ela flertando. Estava louco? Chamaria o pai. O horror daquilo, o atingiu em cheio. Não estava morta, nem ele preso. Ele tivera uma premonição daquilo. Um deja vu. O outro ameaçou esganá-la. Ela se recostou na parede. O soco dele estremeceu o quadro. Agora a pegara pelo pescoço, e ela implorava pela vida. Estendeu a mão para alcançar o interfone, mas lhe veio o sono, caiu.
Despertou na madrugada. O prédio em frente imóvel, a impressão de estar diante de uma fotografia só era traída pela intermitente luz de um abajur numa janela. Nenhum carro na madrugada. O vírus pora o mundo em suspensão.
O andar calado, se tivesse havido morte, ainda aquele silêncio? A louça no escorredor, seca, ele não a guardara. Apanhou um comprimido vencido, tomou um e se deitou.
No email, chegaram novos trabalhos. Em dez anos nunca se atrasara com a tradução. O armário repleto de latas. Fizera estoque para um mês. Preparou uma sopa. Metade foi para geladeira. Então ouviu um princípio de discussão. Eram 13h no relógio. Foi tomado imediatamente por uma vertigem. Era questão de segundos. Lançou-se no sofá e desmaiou.
Acordou e não era noite. Havia uma movimentação tranquila nos corredores. Com um copo recostado na parede, os vizinhos pareciam mortos. Apanhou o interfone. A campainha soou abafada e, de repente: alô. Era a vizinha. Ele pôs o fone no gancho. Estaria enlouquecendo?
A vida social desde cedo em escombros. Um rol de especialistas e o veredito unânime: o hipotálamo falhava no processar das emoções. A decisão acertada do litígio com a vida, do exilio, da segura solidão. Tudo que não servia para nada se o final terminaria por enlouquecer! Não, decidiu, mais nenhum exame. Mas se não fosse isso? Se zombassem dele? Impossível: os anos renovaram a vizinhança, nenhuma intimidade com ninguém do andar.
Todos os dias amanheciam iguais na quarentena. Dispôs a cadeira diante da parede e esperou. A discussão começou pontual às treze horas.
Apanhou o interfone e ligou para portaria. Alô, disse o homem. Estão se matando 706, sussurrou tenso. Não consigo escutá-lo, repetiu o porteiro Poderia falar mais alto?! O homem esmurrou a parede. A mulher não conseguia gritar. Quer que eu mande alguém ai? Perguntou o porteiro. Alguém em sua casa? Não! Ia dizer, mas teve medo e desmaiou.
Talvez fosse o vírus. Tinha sido infectado e não sabia. Talvez estivesse em coma, entubado e em decúbito dorsal. Feito esses filmes ruins que no final tudo, só um sonho, o cara estava morto e o público é traído. Beliscou-se, ciente de que, sonhando, sentiria o beliscão.
Faltando 5 minutos, colocou a cadeira e esperou. E se ligasse agora, alertando-a?
Alô. Ele disse. E antes que pudesse dizer, fuja daí, ele vai te matar; ela respondeu: Não posso falar agora. Desligou. Flertando no prédio? Acha que sou trouxa? Esbravejou o marido do outro lado, agora, mais violento. Colocou as duas mãos, rápido, no ouvido e desabou.
O salto mortal do rapaz do prédio em frente. A desratização do andar levantou uma névoa que botou um pó fino na superfície dos móveis. O sumiço do anão anunciado em cartazes de procura-se. Tais eram os eventos que antecederam a entrada de sua existência naquele looping temporal. Vistos a distancia, eram inegáveis prenúncios de caos.
O instinto já gasto de autopreservação emitia inequívocos sinais de "fuja para a floresta." Uma parte aleijada dentro de si, sussurrava para que salvasse a moça. Como um centauro indeciso entre suas duas naturezas, não procurava mais explicações, mas um sentido para aquilo. Sabia, por exemplo, que a ação de ignorar não afastaria o problema, que o que sucedesse aos outros, também o atingiria.
Sentado diante da parede esperou. A poltrona inclinada, ao menos se livraria dos hematomas, do mal jeito das quedas. Havia retirado os quadros, afastado móveis, a parede nua como uma tela de projeção, um teatro. Se empenhado, era possivel ver o desenrolar da cena, precisa, sem variações: "somos joguetes do destino lhe diria Shakespeare, Hamlet, ou ambos.
O soco na parede, depois a enforcá-la. Este era o novo normal. A gente se adapta a tudo. Esperou que ela sufocasse, mas de repente o marido a largou. Dava-lhe tapinhas no rosto e implorava, acorde. Então num solavanco ela tinha um acesso de tosse. E vivia. Comovido, desmaiou.
Às 15h20, de pé, era tempo de botar ordem na vida. Reduziu à metade do tempo habitual à tradução do manual de aquededor a gás e à de um minifrigobar. Colocou roupas na máquina, recolheu o lixo da casa e aventurou-se, paramentado de escafandrista, até à lixeira do andar. De volta à cozinha, seguiu passo a passo às instruções que traduzira para elaboração do mais perfeito café feito numa máquina italiana, e sentado frente à parede cogitou ligar para o moça.
As três tentativas anteriores, era sempre o marido atendia. Fingiu duas vezes ser um entregador de pizza equivocado com o número. Desligar, como fizera a primeira vez, poderia desencadear uma tragédia. Ouvia-o socar com energia o saco de areia.
No espelho do banheiro, um homem magro, alto e pouco atlético. No confronto com o outro, a ameaça do soco já o poria para dormir. No tempo do dr. Freud, para o seu problema só cocaína. Por isso, apreciava tanto tomar café. Quem sabe um dia, ao acaso, não daria com o grão da cura.
As 13h06 ele socava a parede. Às 13h12 ela sobrevivia. Depois, ele engendrava um monólogo que evocava perdão, justificava-se com a pressão que sofre um delegado, a morte recente do pai. Beber era uma forma de sobreviver à pandemia. Não compreendia? Ele só batia por que amava. Ele pedia um abraço, ela cedia, ele forçava um beijo, depois sexo. Ele chegava até aqui e desmaiava. Cada não dela o mortificava. Depois do terceiro pare, reiniciavam os tapas. Ela evocava Deus. Era o seu limite.
Antes das treze, já estava furioso. Impossível que os apartamentos em volta ninguém reagisse. Sentia-se impotente, indignado, profundamente triste. E com medo: da dor, da morte, do desamparo da justiça. Temia tocar a campainha e desmaiar de espectativa. Não tinha amigos, provas, nada. Se enviasse à polícia a mensagem antes da agressão, que faria com ele essa polícia que protege os seus? Se contasse a alguém, o estranho, quem acreditaria nele? Os intensos sentimentos tomando-o. Cada dia suportava os mais intensos sem adormecer.
Com os dias, venceu a longa sequência do estupro. Pelo celular ela tentava falar com uma amiga. Ele a flagrava e, ameçando-a, destruía o aparelho. Depois a algemava, no sofá, apoiava o pé na sua cabeça se vangloriando em voz alta. Então ela encontrava a arma. E se ouviam três tiros. Neste instante ele desmaiava. Impossível saber o desfecho. Morria ele, ela, ambos? Me espere, dizia consigo. As traduções todas por fazer. Não tinha cabeça para aquilo. Como foi possível viver tanto tempo sem sentir?
De repente, quando tudo fazia sentido, o casal sumiu. Ligava o interfone para ninguém atender. Um dor insuportável se apossou dele. Dormia e despertava em ciclos de minutos. Sua mãe ligou de Londrina. Estava bem? Ele tentou simular a apatia, a frieza antiga, mas já não podia se conter: disse que a amava, e ao pai, queria conhecer os sobrinhos, sentia falta do irmão. Com alegria, viram-se na câmera, espantados todos de não o verem dormir. E prometeram se reencontrar em breve, o pai se recuperava agora em casa. Tudo daria certo.
Estava no banho quando ouviu as vozes exaltadas. Então voltaram. Nao cabia em si de tão feliz. Aquela guerra conjugal o apaziguara. Terminava de calçar os sapatos quando ouviu o primeiro tiro, já havia girado a chave quando soaram o segundo, o terceiro e fez silêncio. Então diante da porta, no corredor, tocou freneticamente a campainha sem desmaiar. Quem abriu foi ele, ela estava logo atrás. Com toda a força que tinha desferiu-lhe um soco que o fez recuar. Ele estendeu a mão: Vamos! E um tanto atônita, ela foi com ele. Entraram no elevador, ele premeu o térreo. A luz fluorescente piscante tornava tudo menos real.
Acho que quebrei minha mão ao bater no seu marido.
Ele não é o meu marido. É um ator.
Quer dizer que vocês estavam encenando todo tempo?
Com transição ao vivo para cinco países. Você não sabia?
Não.
Ouviu os tiros? Ele podia ter te matado.
Eu sei, disse. E aquele engano era de repente, fascinante. E você sabe quem sobrevive no final?
Acho que nós dois, disse sorrindo. E apertou o botão de volta para o andar.
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