Havia uma mulher que enviava presentes a desconhecidos. Eles desembarcavam diante da porta dos apartamentos com postits escritos à mão. Ao desatarem o embrulho, os contemplados eram surpreendidos por algo banal, mas estranhamente necessário. O pequeno filhote de angorá de pelos cinzentos pôs vida nos olhos da criança triste; e a mãe, mais do que o pai (que tinha seus peixes num aquário), montou um instagram exclusivo para suas estripulias. O cupom intransferível de ilimitadas guloseimas, na Confeitaria Delícia, adoçou a vida anêmica de Isolda, para inveja da família. O delicado diário rosa com cadeado, confessor de sonhos, planos e segredos da filha adolescente, virou obsessão para mãe super-protetora.
Sem data festiva e aparente intensão, cortava à tesoura o rubro papel, embalava a caixa branca, e arrematava o pacote com laço de seda esmeralda. Os embrulhos distribuídos entre os habitantes do edifício, exilados neste período de parademia. O binóculo, a calça jeans dos sonhos, o portarretrato de coração, o wisky 50 anos, a lingerie provocante, o vibrador em forma de coelhinho. Os presentes mais singelos deflagravam catalismos inimagináveis.
Para alegria da mulher, o gato assassinou os peixes ensandecendo o pai que adiou o ódio: o filho doente de amor e asma pelo gato. A glicemia nas alturas, não resistia ao bolo de doce de leite, nozes, castanhas e chantilin. Arrebentado o cadeado, a revelação do abuso da caçula botou o pai na cadeia. Nenhuma foto feliz para o portarretratos do casal evidenciou o apodrecimento do amor. Os dez anos de sobriedade zerados no primeiro gole de whisky. A lingerie sexy, ele experimentou no grande espelho do banheiro, depois sob o palitó na festa de debutante da filha. Com o binóculo, esmiuçava a rotina da vizinha, seu closet atulhado, sua barriga negativa, seu marido tatuado. O jeans, uns números a mais, a motivou ao regime restrito à gordura e proteína animal. Menos doze quilos, a cintura não fechava, apelou ao jejum intermitente, a uma dieta à base de anfetaminas e diuréticos. A calça, como se encolhesse, insistia em não servir. Por fim, na deep web perdeu de vez o gosto pelo jeans, mesmerizada por Nóri, digital influencer com receitas práticas de bulimia. A senhora do 619 redescobriu um mundo de fantasias com habbit, ergométrico e em seis velocidades. O marido, pacato pintor de paredes, não sabia como arranca-la daquele aliciante mundo de espelhos, devolvê-la para insatisfatória rotina cotidiana.
Afundada no sofá em frente da televisão de tubo, ela sonhava bonecas russas. A tarde correra exausta com o recortar, encapar, enlaçar outros regalos desconcertantes: um terço de prata, um quebra-cabeça branco de duas mil peças, um exemplar em francês de Bartlebly, um narguilé importado, a pata de um macaco. O interfone tocou. Empilhou todas as caixas, para não perder a viagem e desceu esbaforida com todos os embrulhos na mão
A espectativa diária de um mal maior tomara o edifício e
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