Havia uma mulher que praticava eutanásia. Trabalhava como técnica de laboratório, agora, num hospital de elite, desses que exigem dois ou três idiomas. Por isso tinha acesso a alas, enfermarias, centros cirúrgicos, UTIs. Abreviava existências inoculando bactérias resistentes coletadas em seringas de insulina. Tinha uma bela coleção de patógenos que cultivava numa frasqueira que denominara Redenção. Escolhia com terna objetividade os internados que mereciam a paz, com atentas investigações nas redes sociais. Examinava meticulosamente a vidas exibidas na tela do seu i7. Família, afetos, relações sociais ou de trabalho, nada lhe escapava. Não descriminava ninguém por crença, cor, idade. O olhar clínico para fotografias festas, viagens, passeios ao sol. Dispensava selfies por imprecisas: a insidiosa retratação não de como se é, mas de como deseja ser visto ou como gostaria de ser. Aliás, aborrecia-a essa imprecisão verbal: não somos, estamos, pensava. E valia o agora, o que nos tornamos, esse eu mensurado menos pelas escolhas, que pela ação. Não caía nos discursos, na esparrela das frases feitas. Não se deixava enganar, por exemplo, pela simulação de felicidade. Simular era o não ser. Tinha horror a utopias, hipóteses, abstrações. Seus eleitos, era o termo que usava "eleitos", preenchiam determinados requisitos tabulados no Excel. Às vezes, inspirada, elaborava gráficos pizza. A "passagem" se dava por meio de uma picadinha macia no pulso esquerdo. Houve casos que por meio de gotinhas. O diagnóstico não permitia suspeita. A existência de bactérias resistentes depõe contra instituições de prestígio. Enfermidades são fontes perenes de lucro. Casos assim eram sempre abafados. Ela própria erguera as paredes de sua casinha na periferia à base de infartos, tumores, queimaduras, uma série de complicações. Neste rol de misérias, a morte era o desfecho inevitável. Por que adiá-la em casos de patológica desconformidade do ser e seus atos? Liberava (outro termo seu) os hipócritas da nefasta encenação do que não eram, nem aspiravam a ser. Defensores da família adúlteros, patriotas entreguistas, mestiços racistas, moralistas devassos, representantes públicos defensores de interesses privados e pessoais, pastores destituídos de fé, professores descomprometidos e inaptos, intelectuais obtusos, caridosos oportunistas, mecenas mercenários, líderes populistas anti-povo, artistas subversivos domesticados, migrantes xenófobos, progressistas conservadores, liberais do bem alheio, banqueiros filantropos, delinquentes policiais, anarquistas sedentos de poder. Não se julgava uma assassina porque, embora assumisse um critério moral - a incongruência, a incoerência, no seu rígido código de princípios não admitia por sua parte qualquer vacilação. Jurara combater doenças, o nocivo, o danoso. Sabia que os hipócritas eram um câncer a ser extirpado, caso contrário, expandindo seus braços ate a metástase. Desde o princípio da pandemia do corona vírus não se sentia muito bem, num estado aflitivo. Testou positivo, mas não apresentava sintomas. Passou a frequentar nesse período, a grupos negacionistas de vacina, desfilava em carreatas onde militantes se resguardavam em seus carros, com máscaras, munidos de álcool gel. Fazia coros no hino nacional expelindo perdigotos. Longe das alas, tornava a se sentir mal. Seu compromisso de salvar vidas, amenizar sofrimentos, paradoxalmente se opunha aquela forma de expurgo coletivo. Não se sentia bem esses dias, temia ter se contaminado do mal que combatia, os sintomas de hipocrisia eram evidentes.
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