sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Volta / Filha morta

Havia uma mulher que recebeu a visita da filha morta. Preparava o jantar na cozinha para o marido que chegava tarde, a campainha tocou, era a falecida. O vestido branco da primeira comunhão não realizada. Os cabelos castanhos em cachos pareciam mais longos, as unhas pintadas de rosa, no mais era a mesma que há um ano se fizera enterrar entre lírios. Os sapatos de verniz sujos de terra. Do cemitério até a casa, no mínimo três horas. Então é por isso que os enterramos com sapatos, pensou a mãe, para o caso de voltarem. 

Ela não parecia suada ou exausta. Os olhos pretos, o nariz, a boca desbotada.  o celho tenso, certa arrogância herdada da família do marido e que morria com ela. A mãe abaixou e a beijou no lado esquerdo do rosto. A menina permaceu impassível. Ninguém na rua, de testemunha. Pôs a menina para dentro e trancou a porta.

No quarto azul,  os olhos vítreos das bonecas vigilantes, os vestidinhos dispostos no cabide, meias dobradas na gaveta. Nenhum indício aparente de esquecimento. No batente da porta do armário, ainda as marcas de crescimento e datas. Não, não encolhera ou ganhara nenhum centimetro. 

Sentadinha na cama, girou a engrenagem da caixinha, a bailarina girou na ponta dos pés ao som da Puer Elise. A mãe esperou a gargalhada. Lembrou os rodopios estusiasmados. A menina, entretanto, devolveu a caixinha para o fundo da gaveta.

O porta-retrato no colo do pai, a fita verde no cabelo e a blusinha da Minnie, ela o achou caído no chão. A mãe constrangida, a mão se apoiava no ombro do marido ante o fotógrafo antipático. A menina o colocou de volta na penteadeira, para em seguida constatar com as pontas dos dedos que o pó já cobrira a superfície do móvel. 

A mãe desviou os olhos, ante a censura silenciosa da menina. Ia dizer: o quarto vive fechado, Dedé de volta com os filhos, para Paraíba, as coisas da casa todas para ela, que só na última semana, à revelia médica, desprezara na privada metade dos comprimidos que a sedavam demais para demanda dos dias. E papai andara bebendo um tanto demais. Ela sabia o que era o AA? Não, não era desleixo, descaso, esquecimento. Compreendia? Queria dizer tudo, mas se lembrou dos cinco anos curtos demais, breves, incompletos. A filha que morrera na ilusão de Papai Noel. 

O carro com perda total se fora da garagem. Como se converte o dano irreparável em números? Para isso existia o Ahmad que se reiventara de amante, depois a marido, depois a pai, e agora teria que se desinventar, assim como ela em ex-mãe, ex-pai... Ex futuro casal? Não sabia. Não iam bem. Não queria ter essa conversa dificil com a filha. As crianças precisam de estabilidade, constância, um lar. Por isso as caixas de papelão na garagem, a inquietavam. Que a filha ficasse longe da garagem, com seus gases tóxicos, asfixiantes. Teve medo que a menina fosse lá. Então propôs: e se fizessem brigadeiro?

O achocolatado na pia, a lata do leite condensado no lixo, para que a menina não se cortasse. O fogo baixo, agora as mãos untadas com manteiga para enrolar em bolinhas. 

A menina indiferente ao granulado, não mais se animava a ajudar a mãe. Não quis rapar o fundo da panela com a colher de pau. A rádio sintonizada transmitia a previsão do tempo. Pancadas de chuva previstas logo para o começo da noite. Nara Leão cantando Roberto. Ela dava notícias da tia no Canadá, as mãos em chamas de chocolate. A menina quieta, limpou duas vezes o nariz com o dorso da mão, duro olhar endereçado à mãe. 

Lá fora a tarde caía serena. Mas a freada brusca de um Ford em frente arrancou a mãe do torpor. Os olhos buscaram a filha, asfixiada para sempre pelo air bag. Aproximou-se para beijar, por trás, o topo da cabeça da menina, que recuou.

Agora na sala, a menina contemplava a tela da tv sintonizada no Nickelodeon. Bob permaneceu acuado embaixo da poltrona mole, num rosnar agudo que se confundia com choro. Já não buscava, como antes, o colo da menina que, sem se animar com O show da Luna, se apossara do cortador de unhas que a mãe largara na mesinha de centro.

"Deixe que eu faço isso para você", disse a mãe apanhando com delicadeza a mãozinha da menina, deixando curtas as unhas que pintara de rosa, sob as quais havia um pouco de terra. A menina se entregou sem resistência. A mãe, simulando o que fizera por semanas com as bonecas da filha, colocou-a no colo e passou a pentear seus cabelos, mas sem a energia de antes, pois temia que se desprendessem no pente. 

A menina se deixou cuidar, sem resistir como antes, quando corria para o pai que concluía o serviço. Não, não sentia qualquer ciúme daquela filha que os unira pela gravidez inesperada sem a qual os fortuitos encontros não dariam no pai e na mãe que a filha concebera, e que fizera, com que ela e ele se amassem para além daquela atração canina que tinha feito com que arrebentassem, numa só, noite três camisinhas. 

Então, enquanto a penteava, disse para si em voz alta: "Estão grandes, é preciso cortar as pontas." Principiou, em seguida, a cantiga com que a embalava em bebê, colocou-a contra o seio, resistindo ao impulso de amamentá-la. E a menina foi se reclinado aos poucos, até adormecer. Ela, então, a pegou no colo e subiu as escadas rumo ao banheiro. 

Na banheira, em temperatura morna, ela  lavou com ternura suas costas, rosto, braço, peito e o ventre que nao geraria filhos. Depois a secou com uma grande toalha vermelha. Mas antes, cortou com cuidado seus cabelos.

A menina parecia entorpecida, talvez pelos comprimidos macerados na massa de brigadeiro, a não ser que fingisse, essa outra morte, menos definitiva e dolorosa que a outra.

II

A casa tinha todas as luzes acesas quando o marido chegou. Lá fora desabava um aguaceiro de há séculos que o deixara ilhado na praça central. Nenhum retorno da esposa para seis ligações perdidas. A tevê ligada, o rádio alto, na cozinha. Uma fôrma completa de brigadeiros. Desligou os aparelhos e constatou que o cachorro, apavorado com os raios, tinha urinado embaixo da poltrona. Chamou pela mulher, mas não obteve resposta. Haviam conversado sobre a mudança de casa para julho, ela concordara com tudo. No banheiro, assustou-se com as mexas de cabelo espalhadas no piso. Abriu sobressaltado o box com a banheira, ao vir a tesoura num canto. Mergulhou os dois bracos no fundo da água escura, para constarar que a esposa não estava lá. Seguiu pelo corredor para o quarto, o pequeno Bob no encalço, o fez quase tropeçar. Calma rapaz, disse, apanhando-o nos bracos. A filha morrera, mas o cão sobrevivera intacto ao acidente. Ainda assim o amava, como se fosse um apêndice, uma extensão, uma parcela de um amor nao resgatável. Ele trabalhava no mercado financeiro, seu pensamente vinha em binário e senhas alfanuméricas. 

No quarto da filha que evitara há um ano encontrou a esposa espremida na cama da filha, embalada numa grande toalha vermelha. Seus batimentos tiveram um pico, digamos, de 20 porcento, ou melhor, de x para x. Ela tinha os cabelos aparados até a raiz. Estava entorpecida, não morta, não daquele jeito simulado que fazia quando ele desejava sexo, ou a catatonia de antes, estava serena, quase feliz. Ele descalçou os sapatos, tirou a calça e a camisa molhada, e se espremeu na cama, junto com ela. Ela despertou e perguntou, oi, querido, que horas são? É cedo. Eu cortei o cabelo. Eu sei, ele disse. Eu gostei. Obrigado, ela disse. Depois adormeceram.






 

Nenhum comentário:

Postar um comentário