sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Oija

Havia um homem que resolveu fazer a brincadeira do copo. Improvisou a tábua ouija na superfície da mesa da cozinha.  O tédio ou a incredulidade o instou para o experimento. Aquela invocação dos mortos, os amigos de colégio tinham lhe contado, faziam sempre na casa de praia. 16 anos passados, ainda se encantava com essas lendas urbanas. 

Isolado em quarentena só fazia se aborrecer com seriados americanos. O apagão no prédio pusera seu apartamento à luz de velas,  e a penumbra dava o clima ideal.

O copo virgem pegou no fundo do armário. Rabiscou com uma caneta marcador o alfabeto em dois semicírculos, embaixo um Sim e Não para respostas breves e entre os dois Adeus, para encerrar a consulta. O indicador sobre a marca nadir, recitou o Padre nosso, convocou os mortos e esperou. 

O som de um carro, lá embaixo, no cruzamento, furando o sinal. A descarga da privada num apartamento distante, o latido abafado de um cão. Sem tirar o dedo, tentou mais três vezes a oração e a pergunta: alguma alma presente?

Silêncio. Apagou a luz e foi dormir. Acordou com um barulho na cozinha, de posse de uma vela, na ponta dos pés, cruzou a sala. A irmã terminava de enxaguar os pratos, se quisesse, tinha ainda cerveja na geladeira. Ele abriu e estava lá. O barulho da torneira no banheiro. Só mais um minuto, pediu a esposa, fechando a porta. O filho saiu de trás do sofá com o velocípede. A mãe na porta, ralhou com o neto. Vamos, é tarde, hora de dormir. O pai no canto da mesa, rabiscou um peixe num bloco de notas. Bonito? Ele concordonou com a cabeça. O pai só sabia desenhar peixes. Sente-se, que que há com você? Ele se sentou de frente para o pai. A esposa o ocupou a cadeira da direita, a irmã, à esquerda estalou os dedos. Na próxima eu jogo, disse a mãe recortada à porta, e se voltando para o breu do quarto: Se eu tiver que ir aí, eu te mato. Puseram os quatro o indicador na fundo do copo. A chama amarela trepidou um pouco, projetando a sombra dos quatro, enquanto a irmã puxava a reza. Se houver um espírito presente, bata três vezes na mesa? Ana perguntou. Ele ouviu um, dois, três. Ótimo, disse o pai se voltando para ele: quer começar? Ele, mudo. Deixe que eu começo, pediu a irmã. Vou me casar com Paulo? O copo se moveu. Não. E voltou ao centro. Puxa! E com outro? Não, repetiu. O sorriso gasto da dentadura da mãe. 




avivara a memória.




 A noite, ele tinha trocado há muito pelo dia, portanto, zero a chance de pegar no sono. Além disso, secara a última garrafa de vodka, sem saco agora para explodir porcos no Angry Birds. Se recordava: primeiro a reza, depois o chamado.

O dedo na marca nadir, o copo deslizaria? A irmã que era boa de oração, ele mal lembrava o padre nosso. Sentiu, de repente, saudades dela. 13 anos da mudança para São Paulo e a promessa sempre adiada de buscá-la. Ela envelheceu com os velhos - que foram se apagando entre o alzheimer e o parkinson -  e ele acabou num casamento às pressas com Ana. Depois, o acidente de carro, a perda do filho. Com o seguro e a indenização, quitaram o apartamento. A esposa, de remorso, se matou na banheiraAgora, todos falecidos, talvez até a irmã. Aliás, o que não lhe faltava eram mortos  a invocar. 

Respirou fundo e tossiu. O indicador na superfície, a oração veio inteira sem necessidade do Google.

Mas o copo não se mexeu.




 ressentidos. 

remoto passado sem registro fotográfico.


 13 anos sem se falarem, atenderia? Tudo por conta do sítio. desde a partilha da mãe da qual não abria mão de um centavo. Culpa dele o alzheimer dos pais?


 



 Nos EUA, mais evoluídos até na capitalização da mentopsicose denominam de tábua Oija, e podem adquirí-lo por um valor módico em supermercados. O subdesenvolvimento do Brasil exige menos, uma mesa pode servir a prática, basta grafar em semicírculo um alfabeto, um sim e um nao nas extremidades para convocar espíritos. Necessária tao somente a virgindade do copo. Pousa-se o dedo na base invertida, reza-se o Padre Nosso para convocar os espíritos a quem se faz perguntas. Trata-se de uma pratica coletiva o que favorece que um ou outro do grupo faça às vezes dos mortos e com destreza deixe deslizar sobre a mesa emitindo mensagens. O blackout do prédio e as velas instou a prática, forma de vencer o tédio, estando ele só. Teve, contudo dificuldade para lembrar a oração, que resgatou com facilidade no celular. 

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