sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Silenciar




Havia uma mulher que começou a perder os sons da casa. Lavava louça quando o som da água parou, só ouvia o tilintar de pratos e talheres. Outro dia, o latido desesperado do chiuaua sumiu, terça, não despertou com o choro da bebê; até à troca do taco do andar de cima esteve indiferente. No otorrino para os exames: o tímpano, o martelo, a biforna. O labirinto em caracol dava voltas. Receitado um medicamento para cerume, teve a mesma eficiência de um colírio. Não há registro do fenômeno em literatura médica, disse o doutor afastando o otoscópio. Pegou a bolsa, estendeu a mão. Vida que segue. 

No iletrado ouvido, contudo, sons iam-se de repente, isolados de outros. O toque do interfone com as compras, o grave do marido pedindo a toalha. O choro de birra da filha no berço. Um dia, ao passar roupa, sumiu do rádio aquela canção do Roberto. 

Removidos os gritos e hipéboles da vizinha, que não só a apaziguavam, a integravam ao desespero feminino universal, sentiu-se um tanto mais solitária.

Havia, contudo, algo de positivo na seletividade de sons. O ronco do marido ao lado, os resmungos e rompantes da filha adolescente, as chamadas de telemarketing. Sons partiam, outros ficavam sem ter clareza de o porquê. O bom é que logo se adaptou àquilo, entendendo-o não como um fardo, mas um dom. Uma manhã achou que o aspirador de pó estava um pouco demais, e eliminou o ruído. Noutra, uma discussão entre vizinhos foi silenciada, bem como as queixas de saúde da sogra, da mãe, o ruídoso noticiário da tv. Descartou, enfim, as gotas inúteis no ouvido para se fazer guru de si mesma. Iniciada na prática do silêncio, fundou um novo método zen:  o mutismo.

No curso dos dias, desabilitava os ecos dos corredores, o zunzum das crianças, o bater de portas, louvores e melismas que, desafiando a audição divina,  escalam dez andares do prédio e penetravam sem dó seu sagrado lar. Na mesa, experimentou calar as bocas, o sorver das sopas. Ao amamentar, apenas o leve som da sucção de sua bebê, o leite fluindo até seu pequeno estômago.

Uma noite, o horror: o silêncio absoluto e apavorante no breu. Ouviu o correr do sangue, o bombear da aorta, o crescer ciciante dos cabelos. Sentiu-se tonta, solta, sem coordenadas. Se pisasse no chão escorregaria, cairia, nauseada. Estendeu a mão apoiando-se no peito do marido e escutou a arritmia. O cateterismo às pressas evitou o infarto fatal, o dobrar de sinos, as ladainhas, o choro, os pêsames sussurrados, as roldanas descendo, o flap das pás de terra sobre o caixão.

Anichada no sofá com as filhas, o marido e a chiuaua, assistia a um filme de super herói enquanto isolava os efeitos sonoros que sabia feitos artificialmente com chocalhos, lixas de madeira, mixers, máquinas de lavar. O avô do herói disse que grandes poderes trazem grande responsabilidade. Ela, que sentia ter abdicado um pouco de si ao se fazer mãe, pensou em quantos não salvaria com o dom que mantinha em segredo num misto de calado orgulho e exasperada inconsciência. 

Uma voz interna vinha às vezes recriminá-la, fazê-la sentir-se mal consigo mesma. Mas dentro de um número infinito de vozes, essa era apenas mais uma. Ela tinha escolhido a sua própria, e por que tinha poder, ela a silenciou 

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