sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Uarii completo

Havia uma mulher que foi achada vagando na floresta. Foi encontrada por nativos de uma comunidade indígena. Via-se nos olhos que não era dali. Indagaram nos arredores se alguém perdera uma loura, magra, sapatos altos e organdi. Vasculharam sua bolsa em busca de identificação. Deram com uma brochura barata de Sidney Sheldon, repleta de anotações miúdas ao pé da página. Nada que qualquer um deles pudesse compreender. Era época de cheia, nem os garimpeiros se arriscavam por ali, quanto mais turista. Infestada de mosquitos, sem os paetês arrancados por curumins curiosos,  só fazia se abanar, um olhar aturdido para os lados do rio. 

A mais velha da aldeia cansou daquilo, arrastou-a consigo como quem se apossa de um traste inútil. Demorou acertar-se com a rede, por fim, enganchada, dormiu a eternidade de um dia. 

Acordou faminta. Não estranhou a comida: sorria para todos agradecida. Warii a achou feia. Os homens que tinham saído de canoa na chegada, voltaram em duas semanas sem resposta, mas pelo menos tinham conseguido a troca pelos bens. As chuvas voltaram mais forte, desalojando ribeirinhos. Informados da intrusa, nem sinal de fumaça dos agentes da Funai. 

Nessa época, já tinha se apegado muito às crianças. Vivia com duas ou três no colo, outras enganchadas, nas ancas secas. Os cabelos longos, agora ondulados. Parecia uma Iara desbotada.

Cogitaram levá-la à vila próxima. No rádio contactariam a capital. Concordava? Ela aquiescia no gesto surdo das mulheres da aldeia. Amanhã, sem falta, acertavam. O amanhã sempre adiado, virou um futuro provável do qual ela não mais trataria.

As garças, no ar graciosas, quedavam desengonçadas no chão. Ela, quando apertava a Birkin no peito, o ar era todo de garça. As duas índias que tinham batido nela, agora riam de sua cara rosada de cauim. Já nessa altura atendia por Gootagi. E  começava a ganhar a confiança de Warii. 

Como se lembrando a todos que viera de fora, ela tirava a brochura da bolsa e lia em silêncio. Mas as crianças queriam também a história, então ela lia para elas. As mulheres sentavam em volta. Warii, de longe, vigiava. Nada daquilo fazia sentido, a estranheza que era a sua voz. Ela então ficava quase bonita. Passado tempo, do nada se cansava e metia o livro na bolsa.

Nos meses que se seguiram, nem sombra de avião vindo do norte.  Nenhum helicóptero de busca. Sem internet, celulares, drones nessa época, as chamadas só de DDD. Um bugre ofereceu-se para levá-la de canoa à vila. Em conselho com as mulheres, decidiu ficar. Antes de partir, entregou-lhe a bolsa com a capa arrancada do livro. Dentro, ela rabiscou uma mensagem. Warii atento, cisudo,  não queria o governo ali. O bugre pegou a bolsa e a mensagem. Depois daquilo, nem notícia. 

Se naqueles meses de cheia já se fazia entender com as mãos, breve dominava a língua de passarinho das crianças; e se fez mestra no ralar da mandioca. O cabelo aparado pelas companheiras. Gootagi, tinha perdido o olhar desmaiado, a palidez do corpo de tanto rolar no margem do rio das Piacambas

Ainda ia lendo aquelas páginas de amor impossível. E a gente toda já recitava a trama confusa de cor. Tinham todos muito gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender. De uma hora para outra ela acertava de um jeito diferente muito dela que passava então a ser o modo de se fazer dali para frente. Esse prazer em ensinar o que não sabia agradava muito Warii

O Sidney Sheldon de treslido já se tinha desfolhado inteiro, ficado amarelo. As páginas soltas que a conectavam com remoto antes, lidas em desordem, embaralhavam  tempos e espaços. Um personagem morto renascia no capítulo seguinte jurando vingança pela traição ainda não sofrida, o desfecho trazia uma revelação cujo mistério era sabido de todos.

Os anos fizeram em frangalhos o vestido da chegada. Aqueles sapatos que emprestava para as moças exibirem na vila sumiram sem rastro. Por esse tempo já era possível ir e vir da reserva. Ninguém reportava mais seu caso, sua presença nem fazia espanto. Quando as autoridades estiveram ali, mal repararam nela.

A índia velhíssima caiu doente, Gootagi cuidou dela. Desde que chegara ninguém mais tinha partido, como se a morte a evitasse. A velha que não a temia, tinha visto os avós erguerem a grande oca central, a chegada dos brancos, o insubordinado subir e recuar das águas. Queria um fim antes que não houvesse mais destino para seu espírito. 

Gootagi cuidou dela mais que pode, mas ela a expulsava de perto. Acharam-na, depois, no fundo da rede: o corpo diminuto, esvaziado, parecia caber na palma da mão. Os avós de seus avós a tinham levado dali.

Então, num fim de tarde Gootagi se acertou com Warii e foram viver juntos. Foi na semana que leu pela última vez o que restara daquelas páginas distantes, a impossível história. Fez questão de dar uma para cada um de presente. Warii pescou um jaú de não caber nos olhos de tão grande e a vida seguiu adiante. 

Logo estava grávida. A barriga larga de seu filho com Warii. Para ele, ela nunca tinha sido Gootagi, ou o outro nome segredado, mas continuou sendo. Era de repente bonita, não como as outras, mas calma, redonda, descansada. A barriga dava saltos. 

Faltando pouco mais de um mês, a velha a visitou em sonho e lhe contou que a morte a procurava e a criança. A médica da aldeia confirmou o prognóstico. Não, ali faltavam recursos, não viveriam.

Mas ela estava decidida. Ia fazer do seu modo. Já se lembrara de tudo, do nome perdido, de vagar na escuridão e dar com a estrela, imensa, e o urutau manda-lua pousado, longe, à direita do rio, cujo canto expulsou o setestrelo do medo, do desespero e da morte. 

Warii devolveu-lhe os sapatos. Ele os tinha enterrado para que não tivesse como voltar. Queria agora que se fosse? Pela primeira vez tinha medo. 
Mas a outra ficara lá trás, esquecida, não era quem era. E quando a velha veio, no derradeiro sono, vê-la, ela aceitava partir?

E tudo sucedeu conforme tinha que ser, sorte e azar misturados, sem sobrepeso de partes: a vida só, plausível. E se passaram anos.


Como é possivel aquela ausência forasteira? Ela tinha ido e deixado seus gestos e o jeito do fazer de tudo, a história lida passada de boca em boca. Warii se lembrava dela como algo que não se capta. Ela também dera sentido ao que antes não fazia. 

O avião monomotor desceu em rasante na aldeia. Finalmente tinham achado jeito de posar. Dentre os agentes da FUNAI, Jagigi, agora Joaquim, intérprete. Desceram do avião o piloto, dois gigantes ruivo-alaranjados e a mulher pequena, muito magra, os cabelos brancos tinham sido louros, a bolsa na mão de Gootagi. 

Ela tirou de dentro a mensagem. Então o bugre cumprira a missão. Disseram o nome a Warii, pois desconheciam i verdadeiro. Eles a buscavam. Mas ela agora, no Guajupiá. Não entenderam. Ele os levou para lá onde ardera, há dez anos, a grande fogueira. Jagigi precipitou-se: onde dorme em repouso, de volta sob a terra. Compreendiam?

A velha em desespero não queria acreditar. Queriam o corpo. A mulher e os homens se abraçam. Warii não aceitou que a fosse levada a parte alguma. Discutiram entre si, selvagens. Pegaram as páginas, recuperadas, devolviam agora, levasse-as, não precisavam mais, tinham ficado todos com a voz, o jeito, o gesto cativo de Gootagi.


Deram partida no voo. Warii viu o avião subir espantando as garças. Os meninos saíram de dentro da mata, aborrecidos de terem pedido o espetáculo do avião. O mais novo, correu para Warii. Tinha seu nariz, sua boca, os ombros que seriam os do pai. Sua cor não ficava clara, os olhos azuis de Gooagi.


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