segunda-feira, 22 de junho de 2020

VIVOS

Havia uma mulher que enxergava pessoas mortas. Via mortos na cozinha, na fila do pão, nas ruas do bairro, em frente à escolinha onde deixava a filha antes de ir ao trabalho. Era difícil separá-los dos vivos. Por isso vivia aos tropeços na loja em que gente morta transitava entre a clientela, manequins, araras e gôndolas. Diferenciava-os por chapéus cocos, espartilhos, calças boca de sino, dentes de ouro. Impossível, contudo, evitar encontrões, não se equivocar em filas de supermercado, contabilizar cortes de bolos nas festinhas infantis. Distraída, distante, estranha, eram os adjetivos que lhe davam. Levada à terapia pelo marido, não se adaptou à pouca privacidade do consultório. Uma vez pensou em recorrer à Igreja, mas não acreditava nessas coisas. Inquietava-a apenas o pós-morte não ser nada mais do que uma inolvidável replicação de atos cotidianos. Nunca tratou da questão com o marido, não por falta de confiança, mas por acreditar que cada um de nós tem um universo íntimo e privado que convém preservar. Vez ou outra ele a flagrava recolhendo brinquedos, trocando os lençóis da cama, acendendo o abajur para filha antes de ir se deitar. Deixava sempre um copo de leite quente para menina em cima do criado mudo, embora soubesse que ela não precisava mais dele. Só Deus sabe o quanto é difícil abrir mão de um hábito de 30 anos.

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