terça-feira, 23 de junho de 2020

BÚNQUER

Allegro con brio


Havia um homem que sofria de toc. Contar e recontar a quantidade exata de livros na estante. Reordená-los em ordem alfabética por autor. Assegurar-se da separação precisa por tema. Nada impedira a propagação do vírus, o isolamento, a quarentena em casamata. Sentia-se culpado pelo cataclismo mundial. Associava a impossibilidade de coordenar o tamanho, a quantidade de páginas e a gradação de cores a seu fracasso. Jejuar era uma forma de se punir, de se purificar. O irmão ameaçava levá-lo à força ao Dr. Alaor. As unhas ruídas de tanto esfregar. O hipnoterapeuta havia lhe ensinado técnicas de respiração. Tinha alergia aos florais de Bach. Aquele átomo luminoso filtrado na homeopatia o inquietava. Achava que o Analapril e o Citalopram desaceleravam os frames de sua vida. Isolado no apartamento do irmão, não comia há três dias. As vizinhas lésbicas do prédio em frente exerciam a maternidade com duas gatas potencialmente alérgicas. No apartamento ao lado, um pianista medíocre martelava a 5ª de Beethoven. Às três da tarde, o apartamento chegava fácil a 36 graus. Ele não abria as janelas, por pavor de pombos e do espírito santo. Evitava janelas para evitar o impulso irresistível de contar carros brancos, de achar um sistema capaz dar sentido às 280 janelas do prédio em frente.  O sonho de ser cineasta abandonado. Ele gravava vídeos indicando erros de continuidade. O canal fazia sucesso no YouTube, dava para rachar o aluguel com o irmão ateu. “Se Deus está nos detalhes, é cego, falho ou tem toc.”  Deus não fazia qualquer sentido. “Deus ama da maior a menor de suas criaturas.” Dizia a avó enquanto limpava seu rosto, ajeitando com pente fino seu cabelo castanho. O couro cabeludo sangrava à cata de lêndeas que não estavam lá, mas que poderiam de uma hora para outra eclodir em colônias de piolhos, infestar a casa, vampirizar a família. Vigie, meu filho! Vigie sempre! Exigia a avó, morta e enterrada. Ele imaginava no caixão, as carnes roídas por vermes. E vigiava. Germes, bactérias, vírus, todos filhos de Deus, seus irmãos, seus inimigos. Também o irmão imprudente tinha muito de vilão. Esmurrava com força a porta que tremia no batente. Não queria se despir no corredor, borrifar a existência com álcool 70%. Queimar os pés na água sanitária. Respondeu que não abria. Ele não abria. O irmão furioso expelindo perdigotos de covid arrebentaria a porta, era o último aviso. O vizinho calou o piano. Trancas excitadas no corredor curioso. Rumores de passos no nono andar. Reconheceu o síndico que mancava da perna esquerda, o compasso da chave mestra tilintando no cinto. No cinema, depois de uma porta, sempre uma outra porta, nada que se assemelhe à vida real. A chave penetrou o ferrolho. Recuou acuado até a janela. Tentou ainda a tática respiratória. 780 janelas espiavam sua desgraça. O irmão precipitou uns passos. Três dias sem comer. 40 graus de temperatura. Abriu a janela e voou.

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