Allegro con brio
Havia um homem que sofria de toc. Contar
e recontar a quantidade exata de livros na estante. Reordená-los em ordem alfabética
por autor. Assegurar-se da separação precisa por tema. Nada impedira a
propagação do vírus, o isolamento, a quarentena em casamata. Sentia-se culpado
pelo cataclismo mundial. Associava a impossibilidade de coordenar o tamanho, a
quantidade de páginas e a gradação de cores a seu fracasso. Jejuar era uma
forma de se punir, de se purificar. O irmão ameaçava levá-lo à força ao Dr.
Alaor. As unhas ruídas de tanto esfregar. O hipnoterapeuta havia lhe ensinado
técnicas de respiração. Tinha alergia aos florais de Bach. Aquele átomo
luminoso filtrado na homeopatia o inquietava. Achava que o Analapril e o
Citalopram desaceleravam os frames de sua vida. Isolado no apartamento do
irmão, não comia há três dias. As vizinhas lésbicas do prédio em frente exerciam
a maternidade com duas gatas potencialmente alérgicas. No apartamento ao lado,
um pianista medíocre martelava a 5ª de Beethoven. Às três da tarde, o
apartamento chegava fácil a 36 graus. Ele não abria as janelas, por pavor de
pombos e do espírito santo. Evitava janelas para evitar o impulso irresistível
de contar carros brancos, de achar um sistema capaz dar sentido às 280 janelas
do prédio em frente. O sonho de ser
cineasta abandonado. Ele gravava vídeos indicando erros de continuidade. O canal
fazia sucesso no YouTube, dava para rachar o aluguel com o irmão ateu. “Se Deus
está nos detalhes, é cego, falho ou tem toc.”
Deus não fazia qualquer sentido. “Deus ama da maior a menor de suas
criaturas.” Dizia a avó enquanto limpava seu rosto, ajeitando com pente fino
seu cabelo castanho. O couro cabeludo sangrava à cata de lêndeas que não
estavam lá, mas que poderiam de uma hora para outra eclodir em colônias de
piolhos, infestar a casa, vampirizar a família. Vigie, meu filho! Vigie sempre!
Exigia a avó, morta e enterrada. Ele imaginava no caixão, as carnes roídas por
vermes. E vigiava. Germes, bactérias, vírus, todos filhos de Deus, seus irmãos,
seus inimigos. Também o irmão imprudente tinha muito de vilão. Esmurrava com
força a porta que tremia no batente. Não queria se despir no corredor, borrifar
a existência com álcool 70%. Queimar os pés na água sanitária. Respondeu que
não abria. Ele não abria. O irmão furioso expelindo perdigotos de covid arrebentaria
a porta, era o último aviso. O vizinho calou o piano. Trancas excitadas no
corredor curioso. Rumores de passos no nono andar. Reconheceu o síndico que mancava
da perna esquerda, o compasso da chave mestra tilintando no cinto. No cinema,
depois de uma porta, sempre uma outra porta, nada que se assemelhe à vida real.
A chave penetrou o ferrolho. Recuou acuado até a janela. Tentou ainda a tática
respiratória. 780 janelas espiavam sua desgraça. O irmão precipitou uns passos.
Três dias sem comer. 40 graus de temperatura. Abriu a janela e voou.
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