Havia uma mulher que se fingia de
surda. A deficiência garantia-lhe não só maior privacidade, mas acessar o mais
íntimo das pessoas. Numa estranha forma de invisibilidade, transitava nas
festas da empresa sem necessidade de elaborar conversas interessantes, fazer-se
inteligente, mostrar-se atenta ou superficial. Porque as máscaras não estão no
rosto, mas nas bocas livres da mordaça da conveniência. Um curso rápido de
libras consolidara a farsa. Um aparelho postiço da tia-avó completava o figurino.
Testemunhou no rol dos dias: conchavos, negociatas, traições; todo esse
microcosmo que configura não só o mundo corporativo, mas a vida em sociedade. Concluiu,
por fim, que a contradição é inerente à condição humana pelo abismo que há
entre o que dizemos, como agimos e quem, de fato, nos habita. Criara na infância
um camaleão num aquário. Sua inconstância e habilidade de se camuflar eram
hipnóticas. Ciente da possível traição microscópica dos olhos, de uma expressão
facial, de um gesto, educou no espelho a difícil inocência da pupila, a
contenção facial dos músculos sem botox, o tai-chi-chuan preciso de cada gesto.
Se a surdez enseja simpatia e desarma suspeitas de ameaça, pois não é da
natureza dos surdos serem assassinos em série, seu contraponto nocivo é a pena.
Desarmou toda forma de condescendência. Fez enxergarem a surdez como um trunfo,
campo de força que a mantinha focada nos números, imune ao exterior caótico e
convulso dos pregões. Tal eficiência a catapultou ao controle das contas da
empresa, de onde vultosos desvios não davam na vista, nem emitiam som. Em menos
de sete meses já teria o suficiente para viver tranquilamente longe, onde o rumor
das ondas se harmonizam com o balanço das hulas, os acordes do hukulelê.
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