segunda-feira, 22 de junho de 2020

SILÊNCIO


Havia uma mulher que se fingia de surda. A deficiência garantia-lhe não só maior privacidade, mas acessar o mais íntimo das pessoas. Numa estranha forma de invisibilidade, transitava nas festas da empresa sem necessidade de elaborar conversas interessantes, fazer-se inteligente, mostrar-se atenta ou superficial. Porque as máscaras não estão no rosto, mas nas bocas livres da mordaça da conveniência. Um curso rápido de libras consolidara a farsa. Um aparelho postiço da tia-avó completava o figurino. Testemunhou no rol dos dias: conchavos, negociatas, traições; todo esse microcosmo que configura não só o mundo corporativo, mas a vida em sociedade. Concluiu, por fim, que a contradição é inerente à condição humana pelo abismo que há entre o que dizemos, como agimos e quem, de fato, nos habita. Criara na infância um camaleão num aquário. Sua inconstância e habilidade de se camuflar eram hipnóticas. Ciente da possível traição microscópica dos olhos, de uma expressão facial, de um gesto, educou no espelho a difícil inocência da pupila, a contenção facial dos músculos sem botox, o tai-chi-chuan preciso de cada gesto. Se a surdez enseja simpatia e desarma suspeitas de ameaça, pois não é da natureza dos surdos serem assassinos em série, seu contraponto nocivo é a pena. Desarmou toda forma de condescendência. Fez enxergarem a surdez como um trunfo, campo de força que a mantinha focada nos números, imune ao exterior caótico e convulso dos pregões. Tal eficiência a catapultou ao controle das contas da empresa, de onde vultosos desvios não davam na vista, nem emitiam som. Em menos de sete meses já teria o suficiente para viver tranquilamente longe, onde o rumor das ondas se harmonizam com o balanço das hulas, os acordes do hukulelê.  

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