segunda-feira, 22 de junho de 2020

BORBOLETA



[Hope I Don't Fall in Love with You]


Havia uma mulher que ouvia vozes. O tom, o timbre, o ritmo variava, mas o conteúdo sempre era o mesmo: instruções precisas para cada situação do dia. A elas, se seguiam dores de cabeça; de vez em quando, sangrava o nariz. Troque a fechadura do portão. Jogue cinco ovos no jardim. Leve o cachorro para passear. Acatava. Num mundo de indefinições, as vozes lhe garantiam um sistema de navegação preciso para vida prática. Os efeitos dessas miudezas nem sempre eram visíveis. Um segurança flagrara um homem forçando sua porta na madrugada. A intoxicação por salmonela levou gente do bairro ao hospital. Bob cessou de mastigar o sofá. Sentia uma espécie de apaziguamento das tensões diárias. Parou de roer as unhas. Cortou curtinho os cabelos e os pintou de ruivo. Ganhou na rifa do salão o acesso livre à piscina de um clube exclusivo. A imprevisibilidade de causa e efeito a deixava perplexa. Comprou um Louboutin de salto altíssimo, tão alto para o seu orçamento que precisou cortar os doces que amava. Entrou num curso de defesa pessoal. Às quartas, fazia com as amigas dança de salão. Embora interessante, sua existência tinha algo de títere: as cordas da vida em dedos que não eram os seus. Recusou o descarte de jujubas coloridas. Não comprou o abajur azul. Seu chefe sofreu um enfarte fulminante. Um grupo terrorista derrubou um avião, Um tsunami matou milhares na Tailândia. A aparente desconexão entre jujubas, infartos, sequestros e tsunamis não lhe soavam incongruentes. Sabia as conexões profundas entre o bater de asas e um terremoto no Japão. A cabeça doía ainda mais. A culpa fez  o nariz sangrar. Desça duas paradas antes do seu destino. Não nesse táxi, no próximo. Passe o protetor solar. Já não recusava a nada. Vozes determinavam que amizades manter, o batom adequado, a troca da pílula pelo diu. Agora podia comunicar-se em Libras, graças a um curso que antes não fizera sentido, mas garantiu-lhe, posteriormente, uma improvável promoção junto ao novo C.O. Sem jamais ter tomado um porre na vida, frequentava toda sexta às sessões do AA. O relato sobre as bebedeiras do pai levou Júlia às lágrimas, essa lhe apresentou o filho Heitor. Saíam há mais de um mês: viram três filmes, cinco peças e riam das piadas um do outro. Ele ficou fascinado com sua pelae bronzeada, seu batom vermelho e por ela saber bailar com suas pernas fortes, seu corpo esguio e sapato sexy. Contrariando o que dizia a canção, sussurrou no seu melhor grave um Tom Waits em seus ouvidos. Ela sentiu um arrepio profundo até na ponta do chanel. Sem o aval das vozes, sem as dores de cabeça, sem surpresas boas ou más, decidiu que era tempo das vozes se calarem e que a dele era a única que gostaria de escutar dali para frente sem surpresa, sem medo, sem submissão. E por que tomou de vez as cordas de sua vida, nunca mais seu nariz sangrou.

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