Havia uma mulher que perdera sua gata. Vivia num arranha-céu sinuoso no vigésimo sétimo andar. Sua gata era aérea, dessas que golpeiam passarinhos invisíveis. Como uma mãe zelosa, as grandes janelas permaneciam fechadas, e vivia atenta a possíveis escapadas; mas não suficientemente.
Saiu nos andares acionando campainhas sem correr (como fazia, em menina). As vozes soavam vacilantes por trás da porta pelo horror que tinham do contágio. Outros, ou estavam ausentes, ou fingiam surdez. Ela anotava números, fazia escala de visitação por andares. A caligrafia delicada para missão hercúlea. Ligava para portaria em busca de notícia. Chorava no apartamento tanto pela gata quanto pelo surreal número de mortos, um tanto mais por aquela que dera nome, tinha cor de caramelo e fazia anos em maio. O apartamento 603 reclamava de miados. A senhora do 605, dona de um birmanês selvagem, compadeceu-se de sua dor e prometeu acionar sua rede de Adoradores de Bast, e se espantou que ela não tivesse no grupo. Ela mandou aquela foto da Carmela em posição de lótus na caixa de papelão. Ofereceu recompensa de cem reais.
Sem notícias há três dias, só pensava o pior. Assistira a vídeos macabros de culinária com gatos. Uns cem números de apartamentos esgotados em sua lista. Saindo de uma dessas incursões, foi abordada por uma menininha que soubera por outra de uma gata idêntica a da foto, no 19º andar. Na nona tentativa, atendeu-a uma voz de insone. Tinha, sim, uma gata caramelo chamada Rosa. Rendida, por fim, ela desabou em lágrimas no corredor.
A moça alta a instalou numa poltrona mole. Tentou consolá-la com um chá. A gata saiu sinuosa da copa e se anichou no colo da moça. A anfitriã estranhou: era tímida com estranhos. Então para pasmo de ambas, da mesma porta saiu a outra, como que cobrindo as pegadas da primeira. Eram duas e idênticas. Agora Alice entendia o comportamento arisco da "filha" quando tentou cortar-lhe as unhas. As duas deveriam se revezar na simulação. Era enfermeira, trabalhava o dia todo. Andava exausta até para trocar a caixa de areia. Desculpou-se, um tanto constrangida do engano, do sofrimento causado por sua distração. Célia agradeceu e partiu.
No grupo Adoradores, vibraram com a notícia. Fariam uma festa de “pets” quando tudo passasse. Sentia-se de novo equipada para angústia desses dias. Beijava terna a gata que se esquivava. Fez brigadeiro de panela e se anichou no sofá, 3kg a mais, apaziguada. A gata, contudo, permanecia inquieta. Dois dias sem comer, recusou o sache de salmão. Arranhava a porta com miados. Ia interfonar para a outra, quando o aparelho soou.
Descalças e de pijamas tomavam chá. As gatas se lambiam no tapete. Célia reclamava de ter engordado, Alice, da falta de corte no cabelo. Confessou que mesmo se precavendo, e raro fosse seu contato com infectados de Covid, sentia medo. Perdera o pai há um ano, a mãe presa num sítio. Houve lágrimas. Desculpou-se por estar tão sentimental. Célia, que fora dispensada do Itália, prometeu-lhe um Ruote à caprese, no domingo.
Alice trouxe vinho. Célia falou do namorado que mandava mensagens telegráficas de Atlanta. Alice, que fora casada, foi discreta sobre o assunto. Acertaram que as gatas passariam os dias juntas. Não, não era nenhum trabalho. Após o expediente, Alice apanharia a filha. Na quarta, acordou com enxaqueca. No trabalho, apresentou febre. O resultado do teste, só em 48h. A falta de cheiro da comida, tudo perdia o sabor. Célia, paramentada como um astronauta que aportasse em Marte, trouxe-lhe uma canja que a outra sorveu à contragosto. Na sexta, Informou a mãe idosa o positivo do teste. A essa confortou saber que recebia cuidados de uma amiga.
As compras, elas vinham por delivery. Célia descia sozinha pelo elevador de serviço. Era o momento de Alice tossir tudo o que podia. Não queria apavorar a outra. Afundada na poltrona, tinha dificuldade de respirar. Engolia com esforço a azitromicina. Recebia colheradas enérgicas na boca, à revelia. Sentia uma náusea que não cabia no baldinho verde ao lado da cama. Imunes ao caos na Terra, as gatas se entretinham com uma bolinha de feltro.
O Ministério da Saúde ligava toda manhã acompanhando o quadro. Assistiam a “lives” juntas de cantores populares. Descobriram o gosto em comum por Friends, amigos compartilhados nas redes sociais, o amor por Pessoa. Impossível que não se conhecessem antes.
A desordem política do país as angustiava. Perdiam o ar ante a estupidez, a indiferença, o horror. Levada de ambulância numa quarta de manhã, Célia jurou cuidar de Rosa. E não teve notícias por dois dias. A realidade sombria das covas comuns, escândalos de desvios, um moço que saltou pela janela. Vastas nuvens de sombria realidade se seguiram. Alienava-se em redes sociais. A foto de Rosa e Carmela enlaçadas recebeu dezenas de views. Depois houve o noivo, as “lives,” nuvem de gafanhotos, areias no deserto, barulhos no céu, troca de ministros: o mundo, etc. E por fim a chamada, que atendeu comovida. Lado a lado, na tela bipartida, anunciava para breve o retorno. Tinha adorado a fotos das “meninas.”
A respiração, antes fraca, mais estável. Tomava sol em frente à janela toda manhã. Célia só descia ao apartamento para urgências, conversas displicentes com o noivo distante, regar os temperos que cultivava em vasinhos.
Duas semanas antes de declararem o fim da quarentena, encerrou o noivado irremediavelmente anêmico. Alice, já curada, elaborava planos para o verão. Sentiam, de repente que haviam sobrevivido ao vírus, à tristeza e à solidão. Que era preciso ressignificar a vida, construir relações autênticas. Enquanto bebiam vinho, assistiam às suas gatas estendidas ao sol, amarelas, radiantes. Era nítido que estavam apaixonadas.
Saiu nos andares acionando campainhas sem correr (como fazia, em menina). As vozes soavam vacilantes por trás da porta pelo horror que tinham do contágio. Outros, ou estavam ausentes, ou fingiam surdez. Ela anotava números, fazia escala de visitação por andares. A caligrafia delicada para missão hercúlea. Ligava para portaria em busca de notícia. Chorava no apartamento tanto pela gata quanto pelo surreal número de mortos, um tanto mais por aquela que dera nome, tinha cor de caramelo e fazia anos em maio. O apartamento 603 reclamava de miados. A senhora do 605, dona de um birmanês selvagem, compadeceu-se de sua dor e prometeu acionar sua rede de Adoradores de Bast, e se espantou que ela não tivesse no grupo. Ela mandou aquela foto da Carmela em posição de lótus na caixa de papelão. Ofereceu recompensa de cem reais.
Sem notícias há três dias, só pensava o pior. Assistira a vídeos macabros de culinária com gatos. Uns cem números de apartamentos esgotados em sua lista. Saindo de uma dessas incursões, foi abordada por uma menininha que soubera por outra de uma gata idêntica a da foto, no 19º andar. Na nona tentativa, atendeu-a uma voz de insone. Tinha, sim, uma gata caramelo chamada Rosa. Rendida, por fim, ela desabou em lágrimas no corredor.
A moça alta a instalou numa poltrona mole. Tentou consolá-la com um chá. A gata saiu sinuosa da copa e se anichou no colo da moça. A anfitriã estranhou: era tímida com estranhos. Então para pasmo de ambas, da mesma porta saiu a outra, como que cobrindo as pegadas da primeira. Eram duas e idênticas. Agora Alice entendia o comportamento arisco da "filha" quando tentou cortar-lhe as unhas. As duas deveriam se revezar na simulação. Era enfermeira, trabalhava o dia todo. Andava exausta até para trocar a caixa de areia. Desculpou-se, um tanto constrangida do engano, do sofrimento causado por sua distração. Célia agradeceu e partiu.
No grupo Adoradores, vibraram com a notícia. Fariam uma festa de “pets” quando tudo passasse. Sentia-se de novo equipada para angústia desses dias. Beijava terna a gata que se esquivava. Fez brigadeiro de panela e se anichou no sofá, 3kg a mais, apaziguada. A gata, contudo, permanecia inquieta. Dois dias sem comer, recusou o sache de salmão. Arranhava a porta com miados. Ia interfonar para a outra, quando o aparelho soou.
Descalças e de pijamas tomavam chá. As gatas se lambiam no tapete. Célia reclamava de ter engordado, Alice, da falta de corte no cabelo. Confessou que mesmo se precavendo, e raro fosse seu contato com infectados de Covid, sentia medo. Perdera o pai há um ano, a mãe presa num sítio. Houve lágrimas. Desculpou-se por estar tão sentimental. Célia, que fora dispensada do Itália, prometeu-lhe um Ruote à caprese, no domingo.
Alice trouxe vinho. Célia falou do namorado que mandava mensagens telegráficas de Atlanta. Alice, que fora casada, foi discreta sobre o assunto. Acertaram que as gatas passariam os dias juntas. Não, não era nenhum trabalho. Após o expediente, Alice apanharia a filha. Na quarta, acordou com enxaqueca. No trabalho, apresentou febre. O resultado do teste, só em 48h. A falta de cheiro da comida, tudo perdia o sabor. Célia, paramentada como um astronauta que aportasse em Marte, trouxe-lhe uma canja que a outra sorveu à contragosto. Na sexta, Informou a mãe idosa o positivo do teste. A essa confortou saber que recebia cuidados de uma amiga.
As compras, elas vinham por delivery. Célia descia sozinha pelo elevador de serviço. Era o momento de Alice tossir tudo o que podia. Não queria apavorar a outra. Afundada na poltrona, tinha dificuldade de respirar. Engolia com esforço a azitromicina. Recebia colheradas enérgicas na boca, à revelia. Sentia uma náusea que não cabia no baldinho verde ao lado da cama. Imunes ao caos na Terra, as gatas se entretinham com uma bolinha de feltro.
O Ministério da Saúde ligava toda manhã acompanhando o quadro. Assistiam a “lives” juntas de cantores populares. Descobriram o gosto em comum por Friends, amigos compartilhados nas redes sociais, o amor por Pessoa. Impossível que não se conhecessem antes.
A desordem política do país as angustiava. Perdiam o ar ante a estupidez, a indiferença, o horror. Levada de ambulância numa quarta de manhã, Célia jurou cuidar de Rosa. E não teve notícias por dois dias. A realidade sombria das covas comuns, escândalos de desvios, um moço que saltou pela janela. Vastas nuvens de sombria realidade se seguiram. Alienava-se em redes sociais. A foto de Rosa e Carmela enlaçadas recebeu dezenas de views. Depois houve o noivo, as “lives,” nuvem de gafanhotos, areias no deserto, barulhos no céu, troca de ministros: o mundo, etc. E por fim a chamada, que atendeu comovida. Lado a lado, na tela bipartida, anunciava para breve o retorno. Tinha adorado a fotos das “meninas.”
A respiração, antes fraca, mais estável. Tomava sol em frente à janela toda manhã. Célia só descia ao apartamento para urgências, conversas displicentes com o noivo distante, regar os temperos que cultivava em vasinhos.
Duas semanas antes de declararem o fim da quarentena, encerrou o noivado irremediavelmente anêmico. Alice, já curada, elaborava planos para o verão. Sentiam, de repente que haviam sobrevivido ao vírus, à tristeza e à solidão. Que era preciso ressignificar a vida, construir relações autênticas. Enquanto bebiam vinho, assistiam às suas gatas estendidas ao sol, amarelas, radiantes. Era nítido que estavam apaixonadas.
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