Havia um homem que conservava a mãe
congelada num freezer. Duas vezes ao dia a visitava, tanto pelo costume da
bênção, quanto pela necessidade de verificar o bom funcionamento do aparelho.
Um apagão por horas, há três anos, exigira a instalação de um gerador. A mãe
ganhara também um freezer reserva, mais aperfeiçoado do que este onde repousa
confortavelmente. Ele próprio instalara novas tubulações de compressor e
termômetro para ajustes mais precisos, tudo aprendido pelo Youtube. Era um
entusiasta da tecnologia, e a mãe, uma egiptóloga consagrada, sempre o
estimulara. Ela fora previdente em guardar in vitro seu embrião, como se
previsse o soterramento trágico do marido no Vale dos Reis. A idade avançada
com que o concebeu e o criou não fez que o amasse mais, já que não tinha uma
alma passional e, no fundo, a maternidade acertada com o marido era outro plano
a se cumprir. Era idêntico ao pai para além do mesmo nome. Ele soube disso ao
encontrar numa pasta fotos de uma expedição. Ela nunca falava dele e seu ressurgimento
no filho era como a continuidade de um pacto de vida a dois brevemente adiado. Se
alguns viram nisso uma forma de negação, pesando na balança, isso não a impediu
de amar o filho, ainda que com o amor reservado ao outro. Embora a comunicação
e os gestos de explicito afeto fossem raros, eram muito ligados. Certa frieza,
bem como a racionalidade desconcertante vieram da mãe. Aliás, sentia-se ainda
mais próximo dela agora, quando o silêncio era justificável. Afastado do
emprego desde a doença, a demanda de cuidados não mudara com seu estado atual. Quando
Maat escapulia, e tinha que buscá-la na vizinhança, era abordado pelas senhorinhas
que sempre perguntavam como estava. Ele se reservava a um discreto franzir os
lábios, enquanto acariciava com violência o dorso da fujona. A gata amarelo
ocre é o que lhe restara, além da pensão que sacava sacrilicamente todo mês. O
governo exigia comprovação anual de vida. Apanhava de empréstimo uma daquelas
velhinhas da casa de repouso, onde vez ou outra fazia trabalho voluntário. Tudo
ia muito bem, até que no último mês, percebeu um som estranho e contínuo na
câmara frigorífica. Achou inicialmente que era o motor. Examinou
meticulosamente o condensador. Nenhum vazamento do gás freon, as borrachas novas,
intactas. Por segurança mudou a mãe para o reserva. Há algumas semanas o zunido
voltou, como se emitisse mais do que um som, uma mensagem em frequência
baixíssima que inquieta o sono de Maat sinuosa, a calda de cobra, o pelo cada
vez mais amarelo. Um pouco arrependido, pensou nas instruções precisas da mãe,
mas na hora h não teve coragem de congelar a gata. O coração chega a pesar no
peito, como se a mãe tivesse acabado de morrer. Às vezes desce as escadas e
sentado recosta os ouvidos na parede do freezer. Queria ter preservado a
memória gelada do tubo de ensaio. Por vezes apenas sussurra: Mamãe, é você?
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