domingo, 28 de junho de 2020

O HIEROFANTE

Havia um homem cuja mão fora arrancada em um acidente. A mão não estava mais lá, mas parecia não saber. O cirurgião destacava o sucesso irretocável da amputação. O lobo parietal divergia radicalmente disso. A mão tinha sido cortada, mas continuava lá, formigando, ardendo, coçando. Sua nostalgia tátil era comovente. De repente, a sensação de escorrer por um cabelo comprido, de um mergulho na água fria de um rio, na saca seca de lentilhas, em grãos de um deserto que escapa entre os dedos. A sensação podia durar horas e de uma coceira agradável degenerar, de súbito, para uma forma imprevista de tortura. As dores, tantas vezes excruciantes, despertavam-lhe pensamentos suicidas. Ficava violento, agredia quem estivesse próximo.

Tentaram uma prótese. A mão recusava o corpo estranho, parecia ainda mais latejar. Ele vivia à base de analgésicos. O quarto em eclipse; isolado, para não matar ninguém. O diagnóstico trágico: para uma dor tão intensa, o futuro previsto era a morfina.

- Sua mão está em negação, - disse  por fim, o especialista, - doer é sua forma de resistir. Mas acredito que um homem pode lhe dar uma mão.

A viagem longuíssima de trem. A cidade distante da estação. Na ausência de pousadas, eles o acomodariam no sótão da sobrado. O velho na cadeira de rodas não o entusiasmou. O gigante descrito se espremia num assento estreito. Como se intuísse, pediu que não reparasse na cadeira, que tivera pólio, não uma, mas duas vezes. A mão estendida para cumprimento vagou no ar. Era certo que sabia o que o levava ali. Tripudiava da mão iludida que doía sem querer partir? Doer era sua forma de existir, se não para os demais, para ele. Puxou o braço para mais dentro do casaco, envergonhado. "Sei do horror que é ser olhado com piedade como se fôssemos, justamente a parte que nos falta." Disse o velho. "E é por não não estar aí que sua mão se mostra mais presente." O homem se limitou a confessar: "O que eu queria, às vezes, era só ser invisível."

Por vários dias estiveram juntos. A casa era grande. O velho tinha uma esposa, muitos filhos. O homem não queria se passar por imprestável estorvo. Às vezes, ficava agitado, o velho fingia não temê-lo, mas guardava um cutelo sob a almofada da cadeira. Ele ia à floresta magnífica em frente. Observava os pássaros. O cabelos longos das meninas. O trinado dos pássaros do lugar. Ele trazia toras secas de madeira, cortava-as, a pedido do velho que, agradecido, fazia questão de preparar-lhe o chá, de ouvir suas peripécias na mata, na estrada, porque não podia andar. Então entabulava longas conversas sobre um menino, um machado, um rio. Nada do projeto da mão. O garoto aceitava o pacto com o duende? A sinistra condição? Aquela história não fazia sentido e fazia. O velho empunhava a ampulheta orgulhoso: "veja atento como escorre. Essa tem as areias do Saara. Se mirar com força, não são aquilo camelos?" A mão dormente, desde a segunda semana, o impedia de apontar.

Então chegou o tempo de esculpir a mão. Antes de moldá-la, o velho propôs que elaborassem um esboço.  O bloco de papel e o lápis na gaveta. Ele não tinha nenhuma habilidade de desenho para nenhuma das mãos.

- Ótimo, disse o velho, que a outra não fica ressentida.

E com uma enorme dificuldade o homem começou a rascunhar a mão. O velho, que não podia se aproximar da altura da mesa, pedia que descrevesse o que fazia. Ao ver os desenhos, dizia que estavam bons, mas era nítido que não estavam. E pedia mais tempo, que o velho concedia. Não fosse esculpir para ele aquela forma desproporcional.


Ele tinha nítida na mente a sua mão, tinha sonhos, pesadelos com ela. A destreza do traço, a execução perfeita do projeto. A palma, as falanges, do dedo mínimo ao polegar, ele podia reconstituir a mão como fora, os dedos longos, fortes, sem cicatrizes. Agora mais satisfatórios. O velho não os mirava, assistia à feitura desatento, mais o escutava como se visasse à canção que se tirava daquilo. Se se movia a cadeira, dava-se um atrito com o cutelo escondido, o homem se arrepiava. A areia correndo na ampulheta. Não, não estava bom. O velho insistia em novos ângulos. Na sua mão não se veem, quando espalmada, as linhas entrecruzadas do seu trágico destino. O velho, instigando-o, intercalava a história do menino, a varinha mágica, o ninho do corvo, o desejo. Essa mão não se parece um tanto com os galhos retorcidos? O oco onde se esconde o duende maligno? Sim, agora percebia, como sua mão era a árvore, o corvo e o duende. Você aceitaria a troca? Não aceitaria? Ele perguntava insistentemente quase próximo demais. A mão cinistra, nessa altura, tinha parado de doer.

O homem, sem relutar, seguia desenhando a mão quase fixa ao punho. Os braços vigorosos de cortar madeira. As sacas de lentilha seca. A areia fina, fundamental para as mãos. O duende, repetia o velho... E trazia os lápis que o homem aprendera a apontar sem esforço. Veja, dizia o velho, as linhas: essa não é mais a sua mão. Não se parece mais com a que tinha. Também não poderia mais servir. Ainda, assim... Você aceitaria? Ele aceitava? A mão única, mais perfeita que a outra. Exausto e maravilhado, com o menino, a árvore, o duende, o deserto escorrendo camelos. Sim. Ele aceitava. Ele aceitava agora...com toda a certeza! Então me dê a mão. Disse o duende. Ele estendeu o braço e com toda a força o velho desceu o cutelo na sua mão.

O rapaz puxou a rápido o braço e olhou a ponta. A mão não estava mais lá.

Parado na estação, o trem custou a chegar. Ele acomodou-se à janela, na esperança de que o velho viesse. Mas o velho não veio se despedir dele. Não se ressentia do fato de que o velho tinha mentido, de que o velho não tivesse lhe dado uma mão, ou que tivesse arrancado aquela que era sua para sempre. Tinha agora o dom de criar mundos. Esboçou no vidro da janela um tordo. No trem em movimento, ele parecia voar.

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