Havia um homem que sofria de toc. Checar e rechecar a quantidade exata de livros na estante não tinha impedido a chegada do vírus. Talvez não tivesse contado o suficiente e tornou a contar. A ordem alfabética do nome dos autores em conflito com as letras dos títulos. Sentia-se culpado pelo cataclisma mundial. Associava a impossibilidade de... O hipnoterapeuta havia lhe ensinado técnicas de respiração. Os ansiolíticos desaceleravam os frames da vida. Tinha alergia aos florais com laranjeira. Aquele átomo luminoso filtrado na homeopatia o inquietava. Isolado no apartamento do irmão, não comia há três dias. As vizinhas lésbicas do prédio em frente com a propriedade alérgica de três gatos. No apartamento ao lado, um pianista medíocre fumava chatuto e cantava Belquior aos urros. Às três da tarde, o apartamento chegava fácil a 36 graus. Ele não abria as janelas, por pavor aos pombos e ao espírito santo. Evitava janelas para evitar o impulso de contabilizar carros brancos, de achar um sistema capaz de ordenar 780 janelas. O sonho de ser cineasta abandonado. Ele gravava videos indicando erros de continuidade. O vídeos faziam sucesso. Ele rachava o aluguel com o irmão ateu. Se Deus está nos detalhes, é cego, falho ou tem toc. Deus não fazia qualquer sentido. Deus ama da maior a menor de suas criaturas. Dizia a avó enquanto limpava seu rosto, ajeitando com pente fino seu cabelo castanho. Deus não fazia sentido. O couro cabeludo sangrava à cata de lêndeas que nao estavam lá, mas que poderiam de uma hora para outra eclodir em colônias de piolhos, infestar a casa, vampirizar a família. Vigie, meu filho! Vigie sempre! Vigiava: germes, bactérias, vírus, filhos de Deus, seus irmãos inimigos. Esmurrava a porta, cada vez mais forte. A recusa de tirar a roupa no corredor, borrifar a existência com álcool 30%. Queimar os pés na água sanitária. Ele não abria. Novas batidas. Arrebentaria a porta. Rumores no corredor, o tilintar de chaves do síndico. Ele recuou até a janela. O vizinho calou o piano. Tentou ainda a tática respiratória. 780 janelas atenta à sua desgraça: vigilantes. Três dias sem comer. 40 graus de temperatura. Abriu a janela e voou.
Acusadoras. Os potes de tempero, a confusão dos suéteres, dos sapatos. As meias sem par. As chaves da cozinha, da sala, dos armários. O irmão que trouxesse o chaveiro. Depois de uma porta, outra porta, e assim ad infinitum, como nos filmes.
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