segunda-feira, 22 de junho de 2020

UARII (incompleto)

UARII

Havia uma mulher que foi achada vagando na floresta. Foi encontrada por nativos de uma comunidade indígena. Via-se nos olhos que não era dali. Indagaram nos arredores se alguém perdera uma loura, magra, sapatos altos e organdi. Vasculharam sua bolsa em busca de identificação. Deram com uma brochura barata de Sidney Sheldon, repleta de anotações miúdas ao pé da página. Nada que qualquer um deles pudesse compreender. Era época de cheia, nem os garimpeiros se arriscavam por ali, quanto mais turista. Infestada de mosquitos, sem os paetês arrancados por curumins curiosos,  só fazia se abanar, um olhar aturdido para os lados do rio. A mais velha da aldeia cansou daquilo, arrastou-a consigo como quem se apossa de um traste inútil. Demorou acertar-se com a rede, por fim, enganchada, dormiu a eternidade de um dia. Acordou faminta. Não estranhou a comida, sorria para todos agradecida. Uarii a achou feia. Os homens que tinham saído de canoa na chegada, voltaram em duas semanas sem resposta, mas pelo menos tinham conseguido a troca pelos bens. As chuvas voltaram mais forte, desalojando ribeirinhos. Informados da intrusa, nem sinal de fumaça dos agentes da Funai.

Nessa época, já tinha se apegado muito às crianças. Vivia com duas ou três no colo, outras enganchadas, nas ancas secas. Os cabelos longos, agora ondulados. Parecia uma Iara desbotada.

Cogitaram levá-la à vila próxima. No rádio contactariam a capital. Concordava? Ela aquiescia no gesto surdo das mulheres da aldeia. Amanhã, sem falta, acertavam. O amanhã sempre adiado, virou um futuro provável do qual ela não mais trataria.

As garças, no ar graciosas, quedavam desengonçadas no chão. Ela, quando apertava a Birkin no peito, o ar era todo de garça. As duas índias que tinham batido nela, agora riam de sua cara rosada de cauim. Já nessa altura atendia por Gootagi. E  começava a ganhar a confiança de Warii.

Como se lembrando a todos que não era dali, ela tirava a brochura da bolsa e lia, em silêncio. Mas as crianças queriam também a história, então ela lia para elas. As mulheres sentavam em volta. Warii, de longe, vigiava. Nada daquilo fazia sentido, a estranheza que era a sua voz. Ela então ficava quase bonita. Do nada se cansava e metia o livro na bolsa.

Nos meses que se seguiram, nem sombra de avião vindo do norte.  Nenhum helicóptero de busca. Sem internet, celulares, drones nessa época, as chamadas só de DDD. Um bugre ofereceu-se para levá-la de canoa à vila. Em conselho com as mulheres, decidiu ficar. Antes de partir, entregou-lhe a Birkin, na capa arrancada do livro rabiscou mensagem. Warii atento a tudo, não queria o governo ali. O bugre pegou a bolsa e a mensagem. Nunca mais, nem notícia.

Se naqueles meses de cheia já se fazia entender com as mãos, breve dominava a língua de passarinho das crianças; e se fez mestra no ralar da mandioca. O cabelo aparado pelas companheiras. Gootagi, tinha perdido o olhar desmaiado, a palidez do corpo de tanto rolar no margem do rio das Piacambas

Ainda ia lendo aquelas páginas de amor impossível. E a gente toda já recitava a trama confusa de cor. Tinham todos muito gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender. De uma hora para outra ela acertava de um jeito diferente, muito dela, que passava então a ser o modo de se fazer dali para frente. Esse prazer em ensinar o que não sabia agradava muito Warii

O Sidney Sheldon de treslido já se tinha desfolhado inteiro, ficado amarelo. As páginas soltas que a conectavam com remoto antes, lidas em desordem, embaralhavam  tempos e espaços. Um personagem morto renascia no capítulo seguinte jurando vingança pela traição ainda não sofrida, o desfecho trazia uma revelação cujo mistério era sabido de todos.

Os anos fizeram em frangalhos o vestido da chegada. Aqueles sapatos que emprestava para as moças exibirem na vila sumiram sem rastro. Por esse tempo já era possível ir e vir da reserva. Ninguém reportava mais seu caso, sua presença nem fazia espanto. Quando as autoridades estiveram ali, mal repararam nela.

A índia velhíssima caiu doente, Gootagi cuidou dela. Desde que chegara ninguém mais tinha partido, como se a morte a evitasse. A velha que não a temia, tinha visto os avós erguerem a grande oca central, a chegada dos brancos, o insubordinado subir e recuar das águas. Queria um fim antes que não houvesse mais destino para seu espírito.

Acharam-na no fundo da rede: o corpo diminuto, esvaziado, parecia caber na palma da mão. Os avós de seus avós a tinham levado dali.

Num fim de tarde qualquer Gootagi se acertou com Warii e foram viver juntos. Foi na semana que leu pela última vez o que restara daquelas páginas de um mundo distante, sua impossível história. Depois distribuiu entre a gente aquelas páginas. Warii pescou um jaú de não caber nos olhos de tão grande e a vida seguiu adiante.

A barriga despontou de seu filho com Warii. Para ele, ela nunca tinha sido Gootagi, ou o outro nome segredado, mas continuou sendo. Era de repente bonita, não como as outras, mas calma, redonda, descansada. A barriga dava saltos.

Faltando pouco mais de um mês, a velha a visitou em sonho e lhe contou que a morte a procurava e a criança. A médica da aldeia confirmou o prognóstico. Não, ali faltavam recursos, ela não viveria.

Warii devolveu-lhe os sapatos. Ele os tinha enterrado, para que esquecida, ficasse. Queria agora que partisse? Mas ela estava decidida. Tinha se lembrado de tudo, de como tinha perdido o nome e vagado na floresta e ludibriado a morte. A outra ficara lá trás esquecida, não era quem era. Tinha nascido no dia a trouxeram da mata.


Ela tinha ido e deixado seus gestos e jeito do fazer de tudo, a história lida passada de boca em boca. Warii se lembrava dela como algo que não se capta. Ela também dera sentido ao que antes não fazia.

O avião monomotor desceu em rasante na aldeia. Finalmente tinham achado jeito de posar. Dentre os agentes da FUNAI, Jagigi, agora Joaquim, intérprete. Desceram do avião o piloto, dois gigantes ruivo-alaranjados e a mulher pequena, muito magra, os cabelos brancos tinham sido louros, a bolsa na mão de Gootagi.

Ela tirou de dentro a mensagem. Então o bugre cumprira a missão. Disseram o nome a Warii. Aquele nome que não significava nada. Warii comunicou a partida, e entrou na oca para trazer a mensagem. O par de sapatos, ela tinha pedido que entregasse. A mulher e os homens se abraçam. Warii levou onde o corpo de Gootagi fora plantado. Não aceitou que a fosse levada a parte alguma. Discutiram entre si, selvagens. Para acalmá-los, foram trazendo uma uma as velhas páginas. Podiam agora, levá-las com eles. Agora entediam.

Deram partida no voo. Warii viu o avião subir espantando as garças. Os meninos saíram de dentro da mata, aborrecidos de terem pedido o espetáculo do avião. O mais novo, correu para Warii. Tinha seu nariz, sua boca, os ombros que seriam os do pai. Sua pele era quase clara, os olhos azuis de Gooagi.




beiju





















































Havia uma mulher que foi achada vagando na floresta. Foi encontrada por nativos de uma comunidade indígena. Via-se nos olhos que não era dali. Indagaram nos arredores se alguém perdera uma loura, magra, sapatos altos e organdi. Vasculharam sua bolsa em busca de identificação. Deram com uma brochura barata de Sidney Sheldon, repleta de anotações miúdas ao pé da página. Nada que qualquer um deles pudesse compreender. Era época de cheia, nem os garimpeiros se arriscavam por ali, quanto mais turista. Infestada de mosquitos, sem os paetês arrancados por curumins curiosos,  só fazia se abanar, um olhar aturdido para os lados do rio. A mais velha da aldeia cansou daquilo, arrastou-a consigo como quem se apossa de um traste inútil. Demorou acertar-se com a rede, por fim, enganchada, dormiu a eternidade de um dia. Acordou faminta. Não estranhou a comida, sorria para todos agradecida. Warii a achou feia. Os homens que tinham saído de canoa na chegada, voltaram em duas semanas sem resposta, mas pelo menos tinham conseguido a troca pelos bens. As chuvas voltaram mais forte, desalojando ribeirinhos. Informados da intrusa, nem sinal de fumaça dos agentes da Funai.

Nessa época, já tinha se apegado muito às crianças. Vivia com duas ou três no colo, outras enganchadas, nas ancas secas. Os cabelos longos, agora ondulados. Parecia uma Iara desbotada.

Cogitaram levá-la à vila próxima. No rádio contactariam a capital. Concordava? Ela aquiescia no gesto surdo das mulheres da aldeia. Amanhã, sem falta, acertavam. O amanhã sempre adiado, virou um futuro provável do qual ela não mais trataria.

As garças, no ar graciosas, quedavam desengonçadas no chão. Ela, quando apertava a Birkin no peito, o ar era todo de garça. As duas índias que tinham batido nela, agora riam de sua cara rosada de cauim. Já nessa altura atendia por Gootagi. E  começava a ganhar a confiança de Warii.

Como se lembrando a todos que não era dali, ela tirava a brochura da bolsa e lia, em silêncio. Mas as crianças queriam também a história, então ela lia para elas. As mulheres sentavam em volta. Warii, de longe, vigiava. Nada daquilo fazia sentido, a estranheza que era a sua voz. Ela então ficava quase bonita. Do nada se cansava e metia o livro na bolsa.

Nos meses que se seguiram, nem sombra de avião vindo do norte.  Nenhum helicóptero de busca. Sem internet, celulares, drones nessa época, as chamadas só de DDD. Um bugre ofereceu-se para levá-la de canoa à vila. Em conselho com as mulheres, decidiu ficar. Antes de partir, entregou-lhe a Birkin, na capa arrancada do livro rabiscou mensagem. Warii atento a tudo, não queria o governo ali. O bugre pegou a bolsa e a mensagem. Nunca mais, nem notícia.

Se naqueles meses de cheia já se fazia entender com as mãos, breve dominava a língua de passarinho das crianças; e se fez mestra no ralar da mandioca. O cabelo aparado pelas companheiras. Gootagi, tinha perdido o olhar desmaiado, a palidez do corpo de tanto rolar no rio das piambamas,

Seguiu lendo anos aquelas páginas de amor impossível. E a gente toda já recitava a trama confusa de cor. Tinham todos muito gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender. De uma hora para outra ela acertava de um jeito diferente, muito dela, que passava então a ser o jeito dali para frente de se fazer. Esse prazer em ensinar o que não sabia agradava muito Warii

O Sidney Sheldon amarelando dentro de uma moringa. Depois de ler umas dez vezes, tinha se desfolhado inteiro. Iam e vinham da vila, da cidade. Quando as autoridades estiveram ali, não foi encontrada. Nada daquilo fazia qualquer sentido.

Num fim de tarde qualquer se acertou com Warii e foram viver juntos. Ela entregou as páginas do livro. Ele tinha pescado um jaú enorme, de encher os olhos. Ela nunca tinha sido Gootagi, mas continuou sendo.

A Índia velhissima disse que trouxera sorte para a antiga aldeia, desde chegou, ninguém mais se foi. No dia seguinte, a encontraram morta na rede.

A barriga crescida do seu filho com Warii. disse que ela trouxe sorte. Depois dela, ninguém mais ficou doente.

E passaram anos. Ela tinha ido e deixado seus gestos e jeito do fazer de tudo, a história lida passada de boca em boca, mas espalhadas as história dela. Warii se lembrava dela como algo que nao se capta. Ela também dera sentido ao que antes nao fazia.

O avião monomotor em rasante sobre a aldeia. Finalmente tinham achado jeito de posar. Dentre os agentes da FUNAI, Jagigi, que atendia agora pelo nome de Joaquim. Os homens grandes muito loiros e a mulher, pequena, os cabelos brancos, com a bolsa. Trazida dentro a mensagem. Eles mostram a capa para Warii, e disseram o nome. Aquele nome que nao significava nada.  13 da partida do bugre.   Warii comunicou a partida. A mulher e os homens se abraçam. Warii levou onde o corpo de Gootagi fora plantado. Nao aceitou que a fosse levada a parte alguma. Discutiram entre si, depois levantaram voo. Mas antes, devolveram a mulher, uma uma as páginas guardadas.

Levantavam voo. Warii viu o avião se perder entre as garças. Os meninos vinham da mata. Aborrecidos de ter pedido o avião. O mais novo, Nada daquilo fazia qualquer sentido. O menino. Os olhos azuis de Gooagi.












Lembraram do livro e pediram que lesse para eles. Nada daquilo fazia sentido, mas gostavam de sua voz. Ela concordavam com a cabeça eEl seus olhos se perdiam na serra onde garças anunciavam o findar da tarde. uma cidade do norte perambulando pelas ruas.



Tinham gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender, mas de uma hora para outra acertava de um jeito diferente que passava, na sequência, a ser um modo como todos faziam 













































Uarii Paratizinho

Havia uma mulher que perdera a memória. Foi encontrada por nativos de uma comunidade indígena. Via-se nos olhos que não era dali. Indagaram nos arredores se alguém perdera uma loura, magra, sapatos altos de fundo vermelho. Vasculharam sua bolsa em busca de identificação. Deram com um brochura barata de Sidney Sheldon, repleto de anotações miúdas no pé da página. Nada que qualquer um deles pudesse compreender. Era época de cheia, nem os garimpeiros se arriscavam por ali, quanto mais turista. Infestada de mosquitos, sem os paetês arrancados por curumins curiosos,  só fazia voltar a cabeça para os lados do rio. A anciã da tribo cansou daquilo e a pegou pelo braço. Como um cego desbengalado, ela a seguiu. Pendurada na rede, dormiu a eternidade de um dia. Acordou faminta. Não estranhou a comida, sorria para todos e agradecia. Os homens que tinham saído na manhã de sua chegada voltaram em duas semanas sem resposta. As chuvas voltaram mais forte, desalojando ribeirinhos. Nem sinal de fumaça dos agentes da Funai. Nessa época já tinha se apegado muito às crianças. Vivia com duas ou três no colo. Os cabelos longos, agora ondulados. Parecia uma Iara desbotada. Cogitaram levá-la para cidade próxima. No telégrafo contatariam a capital. Ela concordava com a cabeça e dizia: amanhã. Seus olhos perdidos no espaço onde as garças mergulhavam afundando o dia. E apertava a bolsa com Sheldon, no peito. As duas índias que tinham batido nela, agora riam de sua cara encharcada de cauim. Consideraram chamá-la de Gootagi. Warii começava aos poucos a perder a desconfiança. Como se lembrando a todos que não era dali, ela tirava a brochura da bolsa e lia em silêncio. Mas as crianças queriam ouvir a história, e lia para elas. As mulheres sentavam em volta. Warii vigiava de longe. Nada daquilo fazia sentido, a estranheza que era a sua voz. Ela era quase bonita. Ele se distraía. Ela cansava e metia o livro em sua Birkin. Nos meses que se seguiram, não se viu sombra de avião vindo do norte.  Nenhum helicóptero de busca. Nesse tempo não havia internet, celulares, drones: as chamadas eram DDD. Um bugre ofereceu-se para levá-la de canoa à vila. Em conselho com as mulheres, decidiu ficar. Antes de partir, deu-lhe a bolsa, a capa do livro seguiu junto. Warii atento a tudo. Se na metade do segundo mês já se comunicava com as mãos como toda gente, agora mestre no ralar da mandioca. De tanto rolar nas águas com as crianças, tinha perdido a palidez do corpo, o olhar desmaiado. Não se podia se esquecer que não era dali, mas era agora como se fosse. As mulheres já recitavam de cor aquela trama confusa. Tinham gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender, mas de uma hora para outra acertava de um jeito diferente que passava, na sequência, a ser um modo como todos faziam. Parecia ter prazer em ensinar o que não sabia. O Sidney Sheldon amarelando entre moringas. Depois de ler inteiro umas dez vezes, começara a se desfolhar. Perguntavam de ir a cidade. Ela respondia: amanhã. Nada daquilo fazia qualquer sentido. Warii Um dia sentou no pátio e distrubuiu as páginas entre as crianças. Só guardou a capa. Em fevereiro acertou-se com Warii e foram viver juntos. O jaú que ele pescou que ele traziam enchia os olhos da gente. Tia Julia disse que ela trouxe sorte. Depois dela, ninguém mais ficou doente.
Alguns homens até começaram a acha-la bonita. Não portava documentos
Lembraram do livro e pediram que lesse para eles. Nada daquilo fazia sentido, mas gostavam de sua voz. Ela concordavam com a cabeça eEl seus olhos se perdiam na serra onde garças anunciavam o findar da tarde. uma cidade do norte perambulando pelas ruas.

Tinham gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender, mas de uma hora para outra acertava de um jeito diferente que passava, na sequência, a ser um modo como todos faziam.



afirmou o temporão do cacique que tinha se instruído na cidade e que agora lecionava para os curumins.

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