Havia uma mulher cujo apartamento
foi invadido por um rato. Da cadeira de rodas, assistiu com horror à passagem
veloz rumo à cozinha. A instalação recente de um quadril de titânio impedia
movimentos heroicos. De posse de uma vassoura tentou espantar a fera, sem
sorte.
Era leitora de cartas, o que lhe
garantia a dispensa abastecida. Em momentos de crise era o tarô que salvava sua
vida. O plano de saúde em débito automático, da pensão de professora o que
sobrava? Antes da pandemia, havia clientes: era das que trazia o amor em trinta
dias. Hermeticamente confinada no apê mirrado, não entrevia futuro. Lançava à
sorte dos dias, faltava-lhe um gato para puxar o rabo. O seu tinha morrido no
mês passado. Pensou em empalhá-lo. Entre tantas fotografias amarelas, placas de
mérito, velhas bonecas de louça, espelhos venezianos, completaria a tumba que
fizera para si.
A desratização não estava inclusa
no condomínio? Ela assumiria o risco por inevitável horror de roedores, mas
quem ousaria entrar naquelas trevas nesses tempos de contágio, quando a
solidariedade era só da porta para fora? O moço do 171, a quem confiara o
enterro de Cigano, sumira com o tapete persa destinado à venda. Devia ter visto
antes nas cartas as intenções do larápio. Mas as mãos trêmulas, a vista baça de
analgésicos, embaralhava os arcanos, corrompia o sentido, a interpretação:
falhava a consulente, não a mensagem. O rato na cozinha emitia guinchos. O
crash de um pote espatifando-se, atingiu-a como uma espada.
Empunhando a vassoura decidida, pedalou
para lá na cadeira de rodas. Antes destravou a porta e a deixou entreaberta.
Dali para fora, o problema seria de outro.
O cinza escuro do pelo, era quase
preto. Errara na predição: o rato era uma rata e, pelo volume do corpo, prenha,
faminta. Pensou em ligar para a afilhada que ajudara a criar. Ela viria
acudi-la em condição de filha, à revelia do marido que se oporia com justiça.
Onde já se via, atravessar a cidade aos oito meses e tanto de gravidez!?
Arremessou o saleiro quase vazio que
quicou na parede, depois o paliteiro, bem perto da rata que roía bolachas
sortidas entre cacos no ladrilho. Sem se intimidarem, encararam-se. A rata
intuiu a vantagem ao vê-la inerte na almofada. Em vez de recuar, avançou. A
velha tentou afastá-la com a vassoura, mas a rata marchou confiante escalando o
cabo, que a outra soltou assustada, girando as rodas em marcha à ré, de volta à
sala. Na passagem, esbarrou na banqueta e o abajur de conchinhas veio ao chão.
Confiante, a rata exibia dentes amarelos. O coração de porcelana fora presente
do amor da sua vida. Não relutou em desferi-lo contra a inimiga. O porta-joias
se espatifou no taco vomitando brincos e pulseirinhas oxidadas. A rata,
furiosa, avançou cravando os dentes na chinelinha rosa que arrancou sem dó do
pé da velha. Assustada, tentou apoiar-se na mesa redonda que bambeou. Perdeu o
equilíbrio, a cadeira virou e ela bateu o quadril operado no chão.
A rata, surpresa, recuou uns passos
examinando-a se contorcer de dor. Queria aquela ruína de casa para si? Onde os
vizinhos que sempre reclamavam do barulho?
[Todas as manhãs retirava uma
carta, para prever o curso do dia. Semana passada foi o enforcado. O rapaz do
prédio em frente içou voo pela janela. Hoje esquecera. Como entrara nesse dia
sem destino?]
A rata rosnou rouca rompendo o
transe. Por que esses travas línguas infantis? Que tinham ratos a ver com criança? Impossível
perdoar a Disney.
A rata suja erguida no largo
ventre. Quase podia sentir na cara o bafo da besta, os dentes expostos, as
garras duras, ameaçadoras. A cauda chicoteava uma ansiedade de gestante. Dera
ao mundo o tifo, a leptospirose, a febre murrinha. A infestação de sua pulgas:
a peste negra.
Com o quadril latejando, a velha
via estrelas, constelações. O ar não fugia, antes, escapava das fossas do
pulmão. A besta ganhara confiança para o bote. Sem muito atinar, estendeu o
braço e apanhou a primeira coisa à mão e atirou. O bloco de cartas atingiu o
focinho da fera e se espalhou. A rata espantada com aquela profusão de reis,
valetes e espadas saiu como um torpedo pela porta entreaberta, as cartas
esparramadas onde antes havia o persa. O interfone começou a tocar. Eis os
vizinhos, ela pensou, e riu da ironia.
Logo viriam socorrê-la. Sua
história ganharia corredores, outros blocos, desceria e subiria os elevadores.
O administrador trataria da desratização imediata e a isentaria do condomínio,
temeroso de processos. Sem esforço premonitório uma cadeia de eventos desfilou
diante de seus olhos, evidentes como o parto da rata, a continuidade de sua
descendência que sobreviveria a ela, à postiça neta autista, aos Adoradores de
Tant e a novas pandemias.
Antes que a viessem resgatar, ela
estendeu a mão e apanhou uma das cartas. Não era a roda da fortuna, mas o
hierofante.
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