segunda-feira, 29 de junho de 2020

FESTA

Havia uma mulher que achava que estava enlouquecendo. Vivia no mesmo quintal com a irmã, o cunhado, quatro sobrinhos, dois cachorros e três gatos. A casa compartilhada era a mesma da infância. A irmã ocupava o sobrado da frente e ela, cuidava da mãe com Alzheimer nos três cômodos que ocupava no fundo. As coisas nem sempre foram assim. Um terremoto passara por sua vida pessoal e a deixara em escombros. O casamento de 14 anos foi o primeiro a ruir, quando o marido resolveu ir viver com a secretária. Não foi pega de surpresa, pois calara a ciência do adultério com whisky, lexotam, dois ou três amantes. Ele assinava todos os papéis, liberava o apartamento, o honda civic, o terreno em Angra, antes no nome dos dois. Queria os anos futuros (que ela rezava para serem breves) ao lado loura de peitos enormes. Para ressarci-la do passado compartilhado, deixava a cobertura, que ela descobriu hipotecada e onde só condomínio excedia seus salário de revisora. Pôs Angra à venda, mas a prefeitura embargou o negócio alegando ser parte dele invasão. Seus seis irmãos acompanhavam o drama da irmã bem sucedida a distância. O que concluíra Direito, mas não passara na OAB, aconselhou-a a vender o carro, quitar as dívidas e ir cuidar da mãe, cuja acompanhante ela não conseguia mais pagar. Os sobrinhos receberam com ternura a ex tia rica, e lamentaram ter perdido a piscina. Invejava o ar sereno e alheio do olhar da mãe. Reestabeleceu amizade com velhas amigas de colégio, já que as do Jardins reclamavam da distância e dos perigos de Diadema. Tratou então de reinventar-se, com as instruções de um coach. Ela precisava ser a melhor versão de si mesma. Seu network era compartilhado com o marido, a maior parte foi legada ao marido, na repartição dos bens. 14 anos de casada faz um estrago nas relações sociais. Era preciso descobrir quem era de fato, o que desejava. Nem a própria mãe se lembrava do seu nome. A mais velha lhe trazia bolos. O caçula sem OAB assumiu. Sempre prezara por sua independência. Os sobrinhos preenchiam a lacuna de todo um campo de afetos. 


com  nem os tacos de seu apartamento nos jardins permaneceram intactos. Primeiro

domingo, 28 de junho de 2020

O HIEROFANTE

Havia um homem cuja mão fora arrancada em um acidente. A mão não estava mais lá, mas parecia não saber. O cirurgião destacava o sucesso irretocável da amputação. O lobo parietal divergia radicalmente disso. A mão tinha sido cortada, mas continuava lá, formigando, ardendo, coçando. Sua nostalgia tátil era comovente. De repente, a sensação de escorrer por um cabelo comprido, de um mergulho na água fria de um rio, na saca seca de lentilhas, em grãos de um deserto que escapa entre os dedos. A sensação podia durar horas e de uma coceira agradável degenerar, de súbito, para uma forma imprevista de tortura. As dores, tantas vezes excruciantes, despertavam-lhe pensamentos suicidas. Ficava violento, agredia quem estivesse próximo.

Tentaram uma prótese. A mão recusava o corpo estranho, parecia ainda mais latejar. Ele vivia à base de analgésicos. O quarto em eclipse; isolado, para não matar ninguém. O diagnóstico trágico: para uma dor tão intensa, o futuro previsto era a morfina.

- Sua mão está em negação, - disse  por fim, o especialista, - doer é sua forma de resistir. Mas acredito que um homem pode lhe dar uma mão.

A viagem longuíssima de trem. A cidade distante da estação. Na ausência de pousadas, eles o acomodariam no sótão da sobrado. O velho na cadeira de rodas não o entusiasmou. O gigante descrito se espremia num assento estreito. Como se intuísse, pediu que não reparasse na cadeira, que tivera pólio, não uma, mas duas vezes. A mão estendida para cumprimento vagou no ar. Era certo que sabia o que o levava ali. Tripudiava da mão iludida que doía sem querer partir? Doer era sua forma de existir, se não para os demais, para ele. Puxou o braço para mais dentro do casaco, envergonhado. "Sei do horror que é ser olhado com piedade como se fôssemos, justamente a parte que nos falta." Disse o velho. "E é por não não estar aí que sua mão se mostra mais presente." O homem se limitou a confessar: "O que eu queria, às vezes, era só ser invisível."

Por vários dias estiveram juntos. A casa era grande. O velho tinha uma esposa, muitos filhos. O homem não queria se passar por imprestável estorvo. Às vezes, ficava agitado, o velho fingia não temê-lo, mas guardava um cutelo sob a almofada da cadeira. Ele ia à floresta magnífica em frente. Observava os pássaros. O cabelos longos das meninas. O trinado dos pássaros do lugar. Ele trazia toras secas de madeira, cortava-as, a pedido do velho que, agradecido, fazia questão de preparar-lhe o chá, de ouvir suas peripécias na mata, na estrada, porque não podia andar. Então entabulava longas conversas sobre um menino, um machado, um rio. Nada do projeto da mão. O garoto aceitava o pacto com o duende? A sinistra condição? Aquela história não fazia sentido e fazia. O velho empunhava a ampulheta orgulhoso: "veja atento como escorre. Essa tem as areias do Saara. Se mirar com força, não são aquilo camelos?" A mão dormente, desde a segunda semana, o impedia de apontar.

Então chegou o tempo de esculpir a mão. Antes de moldá-la, o velho propôs que elaborassem um esboço.  O bloco de papel e o lápis na gaveta. Ele não tinha nenhuma habilidade de desenho para nenhuma das mãos.

- Ótimo, disse o velho, que a outra não fica ressentida.

E com uma enorme dificuldade o homem começou a rascunhar a mão. O velho, que não podia se aproximar da altura da mesa, pedia que descrevesse o que fazia. Ao ver os desenhos, dizia que estavam bons, mas era nítido que não estavam. E pedia mais tempo, que o velho concedia. Não fosse esculpir para ele aquela forma desproporcional.


Ele tinha nítida na mente a sua mão, tinha sonhos, pesadelos com ela. A destreza do traço, a execução perfeita do projeto. A palma, as falanges, do dedo mínimo ao polegar, ele podia reconstituir a mão como fora, os dedos longos, fortes, sem cicatrizes. Agora mais satisfatórios. O velho não os mirava, assistia à feitura desatento, mais o escutava como se visasse à canção que se tirava daquilo. Se se movia a cadeira, dava-se um atrito com o cutelo escondido, o homem se arrepiava. A areia correndo na ampulheta. Não, não estava bom. O velho insistia em novos ângulos. Na sua mão não se veem, quando espalmada, as linhas entrecruzadas do seu trágico destino. O velho, instigando-o, intercalava a história do menino, a varinha mágica, o ninho do corvo, o desejo. Essa mão não se parece um tanto com os galhos retorcidos? O oco onde se esconde o duende maligno? Sim, agora percebia, como sua mão era a árvore, o corvo e o duende. Você aceitaria a troca? Não aceitaria? Ele perguntava insistentemente quase próximo demais. A mão cinistra, nessa altura, tinha parado de doer.

O homem, sem relutar, seguia desenhando a mão quase fixa ao punho. Os braços vigorosos de cortar madeira. As sacas de lentilha seca. A areia fina, fundamental para as mãos. O duende, repetia o velho... E trazia os lápis que o homem aprendera a apontar sem esforço. Veja, dizia o velho, as linhas: essa não é mais a sua mão. Não se parece mais com a que tinha. Também não poderia mais servir. Ainda, assim... Você aceitaria? Ele aceitava? A mão única, mais perfeita que a outra. Exausto e maravilhado, com o menino, a árvore, o duende, o deserto escorrendo camelos. Sim. Ele aceitava. Ele aceitava agora...com toda a certeza! Então me dê a mão. Disse o duende. Ele estendeu o braço e com toda a força o velho desceu o cutelo na sua mão.

O rapaz puxou a rápido o braço e olhou a ponta. A mão não estava mais lá.

Parado na estação, o trem custou a chegar. Ele acomodou-se à janela, na esperança de que o velho viesse. Mas o velho não veio se despedir dele. Não se ressentia do fato de que o velho tinha mentido, de que o velho não tivesse lhe dado uma mão, ou que tivesse arrancado aquela que era sua para sempre. Tinha agora o dom de criar mundos. Esboçou no vidro da janela um tordo. No trem em movimento, ele parecia voar.

HAMELIN


Havia uma mulher cujo apartamento foi invadido por um rato. Da cadeira de rodas, assistiu com horror à passagem veloz rumo à cozinha. A instalação recente de um quadril de titânio impedia movimentos heroicos. De posse de uma vassoura tentou espantar a fera, sem sorte.

Era leitora de cartas, o que lhe garantia a dispensa abastecida. Em momentos de crise era o tarô que salvava sua vida. O plano de saúde em débito automático, da pensão de professora o que sobrava? Antes da pandemia, havia clientes: era das que trazia o amor em trinta dias. Hermeticamente confinada no apê mirrado, não entrevia futuro. Lançava à sorte dos dias, faltava-lhe um gato para puxar o rabo. O seu tinha morrido no mês passado. Pensou em empalhá-lo. Entre tantas fotografias amarelas, placas de mérito, velhas bonecas de louça, espelhos venezianos, completaria a tumba que fizera para si.

A desratização não estava inclusa no condomínio? Ela assumiria o risco por inevitável horror de roedores, mas quem ousaria entrar naquelas trevas nesses tempos de contágio, quando a solidariedade era só da porta para fora? O moço do 171, a quem confiara o enterro de Cigano, sumira com o tapete persa destinado à venda. Devia ter visto antes nas cartas as intenções do larápio. Mas as mãos trêmulas, a vista baça de analgésicos, embaralhava os arcanos, corrompia o sentido, a interpretação: falhava a consulente, não a mensagem. O rato na cozinha emitia guinchos. O crash de um pote espatifando-se, atingiu-a como uma espada.

Empunhando a vassoura decidida, pedalou para lá na cadeira de rodas. Antes destravou a porta e a deixou entreaberta. Dali para fora, o problema seria de outro.

O cinza escuro do pelo, era quase preto. Errara na predição: o rato era uma rata e, pelo volume do corpo, prenha, faminta. Pensou em ligar para a afilhada que ajudara a criar. Ela viria acudi-la em condição de filha, à revelia do marido que se oporia com justiça. Onde já se via, atravessar a cidade aos oito meses e tanto de gravidez!?

Arremessou o saleiro quase vazio que quicou na parede, depois o paliteiro, bem perto da rata que roía bolachas sortidas entre cacos no ladrilho. Sem se intimidarem, encararam-se. A rata intuiu a vantagem ao vê-la inerte na almofada. Em vez de recuar, avançou. A velha tentou afastá-la com a vassoura, mas a rata marchou confiante escalando o cabo, que a outra soltou assustada, girando as rodas em marcha à ré, de volta à sala. Na passagem, esbarrou na banqueta e o abajur de conchinhas veio ao chão. Confiante, a rata exibia dentes amarelos. O coração de porcelana fora presente do amor da sua vida. Não relutou em desferi-lo contra a inimiga. O porta-joias se espatifou no taco vomitando brincos e pulseirinhas oxidadas. A rata, furiosa, avançou cravando os dentes na chinelinha rosa que arrancou sem dó do pé da velha. Assustada, tentou apoiar-se na mesa redonda que bambeou. Perdeu o equilíbrio, a cadeira virou e ela bateu o quadril operado no chão. 

A rata, surpresa, recuou uns passos examinando-a se contorcer de dor. Queria aquela ruína de casa para si? Onde os vizinhos que sempre reclamavam do barulho?


[Todas as manhãs retirava uma carta, para prever o curso do dia. Semana passada foi o enforcado. O rapaz do prédio em frente içou voo pela janela. Hoje esquecera. Como entrara nesse dia sem destino?]

A rata rosnou rouca rompendo o transe. Por que esses travas línguas infantis? Que  tinham ratos a ver com criança? Impossível perdoar a Disney.

A rata suja erguida no largo ventre. Quase podia sentir na cara o bafo da besta, os dentes expostos, as garras duras, ameaçadoras. A cauda chicoteava uma ansiedade de gestante. Dera ao mundo o tifo, a leptospirose, a febre murrinha. A infestação de sua pulgas: a peste negra.

Com o quadril latejando, a velha via estrelas, constelações. O ar não fugia, antes, escapava das fossas do pulmão. A besta ganhara confiança para o bote. Sem muito atinar, estendeu o braço e apanhou a primeira coisa à mão e atirou. O bloco de cartas atingiu o focinho da fera e se espalhou. A rata espantada com aquela profusão de reis, valetes e espadas saiu como um torpedo pela porta entreaberta, as cartas esparramadas onde antes havia o persa. O interfone começou a tocar. Eis os vizinhos, ela pensou, e riu da ironia.

Logo viriam socorrê-la. Sua história ganharia corredores, outros blocos, desceria e subiria os elevadores. O administrador trataria da desratização imediata e a isentaria do condomínio, temeroso de processos. Sem esforço premonitório uma cadeia de eventos desfilou diante de seus olhos, evidentes como o parto da rata, a continuidade de sua descendência que sobreviveria a ela, à postiça neta autista, aos Adoradores de Tant e a novas pandemias.

Antes que a viessem resgatar, ela estendeu a mão e apanhou uma das cartas. Não era a roda da fortuna, mas o hierofante.

terça-feira, 23 de junho de 2020

SOL

Havia uma mulher que perdera sua gata. Vivia num arranha-céu sinuoso no vigésimo sétimo andar. Sua gata era aérea, dessas que golpeiam passarinhos invisíveis. Como uma mãe zelosa, as grandes janelas permaneciam fechadas, e vivia atenta a possíveis escapadas; mas não suficientemente.

Saiu nos andares acionando campainhas sem correr (como fazia, em menina). As vozes soavam vacilantes por trás da porta pelo horror que tinham do contágio. Outros, ou estavam ausentes, ou fingiam surdez. Ela anotava números, fazia escala de visitação por andares. A caligrafia delicada para missão hercúlea. Ligava para portaria em busca de notícia. Chorava no apartamento tanto pela gata quanto pelo surreal número de mortos, um tanto mais por aquela que dera nome, tinha cor de caramelo e fazia anos em maio. O apartamento 603 reclamava de miados. A senhora do 605, dona de um birmanês selvagem, compadeceu-se de sua dor e prometeu acionar sua rede de Adoradores de Bast, e se espantou que ela não tivesse no grupo. Ela mandou aquela foto da Carmela em posição de lótus na caixa de papelão. Ofereceu recompensa de cem reais.

Sem notícias há três dias, só pensava o pior. Assistira a vídeos macabros de culinária com gatos. Uns cem números de apartamentos esgotados em sua lista. Saindo de uma dessas incursões, foi abordada por uma menininha que soubera por outra de uma gata idêntica a da foto, no 19º andar. Na nona tentativa, atendeu-a uma voz de insone. Tinha, sim, uma gata caramelo chamada Rosa. Rendida, por fim, ela desabou em lágrimas no corredor.

A moça alta a instalou numa poltrona mole. Tentou consolá-la com um chá. A gata saiu sinuosa da copa e se anichou no colo da moça. A anfitriã estranhou: era tímida com estranhos. Então para pasmo de ambas, da mesma porta saiu a outra, como que cobrindo as pegadas da primeira. Eram duas e idênticas. Agora Alice entendia o comportamento arisco da "filha" quando tentou cortar-lhe as unhas. As duas deveriam se revezar na simulação. Era enfermeira, trabalhava o dia todo. Andava exausta até para trocar a caixa de areia. Desculpou-se, um tanto constrangida do engano, do sofrimento causado por sua distração. Célia agradeceu e partiu.

No grupo Adoradores, vibraram com a notícia. Fariam uma festa de “pets” quando tudo passasse. Sentia-se de novo equipada para angústia desses dias. Beijava terna a gata que se esquivava. Fez brigadeiro de panela e se anichou no sofá, 3kg a mais, apaziguada. A gata, contudo, permanecia inquieta. Dois dias sem comer, recusou o sache de salmão. Arranhava a porta com miados. Ia interfonar para a outra, quando o aparelho soou.

Descalças e de pijamas tomavam chá. As gatas se lambiam no tapete. Célia reclamava de ter engordado, Alice, da falta de corte no cabelo. Confessou que mesmo se precavendo, e raro fosse seu contato com infectados de Covid, sentia medo. Perdera o pai há um ano, a mãe presa num sítio. Houve lágrimas. Desculpou-se por estar tão sentimental. Célia, que fora dispensada do Itália, prometeu-lhe um Ruote à caprese, no domingo.

Alice trouxe vinho. Célia falou do namorado que mandava mensagens telegráficas de Atlanta. Alice, que fora casada, foi discreta sobre o assunto. Acertaram que as gatas passariam os dias juntas. Não, não era nenhum trabalho. Após o expediente, Alice apanharia a filha. Na quarta, acordou com enxaqueca. No trabalho, apresentou febre. O resultado do teste, só em 48h. A falta de cheiro da comida, tudo perdia o sabor. Célia, paramentada como um astronauta que aportasse em Marte, trouxe-lhe uma canja que a outra sorveu à contragosto. Na sexta, Informou a mãe idosa o positivo do teste. A essa confortou saber que recebia cuidados de uma amiga.

As compras, elas vinham por delivery. Célia descia sozinha pelo elevador de serviço. Era o momento de Alice tossir tudo o que podia. Não queria apavorar a outra. Afundada na poltrona, tinha dificuldade de respirar. Engolia com esforço a azitromicina. Recebia colheradas enérgicas na boca, à revelia. Sentia uma náusea que não cabia no baldinho verde ao lado da cama. Imunes ao caos na Terra, as gatas se entretinham com uma bolinha de feltro.

O Ministério da Saúde ligava toda manhã acompanhando o quadro. Assistiam a “lives” juntas de cantores populares. Descobriram o gosto em comum por Friends, amigos compartilhados nas redes sociais, o amor por Pessoa. Impossível que não se conhecessem antes.

A desordem política do país as angustiava. Perdiam o ar ante a estupidez, a indiferença, o horror.  Levada de ambulância numa quarta de manhã, Célia jurou cuidar de Rosa. E não teve notícias por dois dias. A realidade sombria das covas comuns, escândalos de desvios, um moço que saltou pela janela. Vastas nuvens de sombria realidade se seguiram. Alienava-se em redes sociais. A foto de Rosa e Carmela enlaçadas recebeu dezenas de views. Depois houve o noivo, as “lives,” nuvem de gafanhotos, areias no deserto, barulhos no céu, troca de ministros: o mundo, etc. E por fim a chamada, que atendeu comovida. Lado a lado, na tela bipartida, anunciava para breve o retorno. Tinha adorado a fotos das “meninas.”

A respiração, antes fraca, mais estável. Tomava sol em frente à janela toda manhã. Célia só descia ao apartamento para urgências, conversas displicentes com o noivo distante, regar os temperos que cultivava em vasinhos.

Duas semanas antes de declararem o fim da quarentena, encerrou o noivado irremediavelmente anêmico. Alice, já curada, elaborava planos para o verão. Sentiam, de repente que haviam sobrevivido ao vírus, à tristeza e à solidão. Que era preciso ressignificar a vida, construir relações autênticas. Enquanto bebiam vinho, assistiam às suas gatas estendidas ao sol, amarelas, radiantes. Era nítido que estavam apaixonadas.

BÚNQUER

Allegro con brio


Havia um homem que sofria de toc. Contar e recontar a quantidade exata de livros na estante. Reordená-los em ordem alfabética por autor. Assegurar-se da separação precisa por tema. Nada impedira a propagação do vírus, o isolamento, a quarentena em casamata. Sentia-se culpado pelo cataclismo mundial. Associava a impossibilidade de coordenar o tamanho, a quantidade de páginas e a gradação de cores a seu fracasso. Jejuar era uma forma de se punir, de se purificar. O irmão ameaçava levá-lo à força ao Dr. Alaor. As unhas ruídas de tanto esfregar. O hipnoterapeuta havia lhe ensinado técnicas de respiração. Tinha alergia aos florais de Bach. Aquele átomo luminoso filtrado na homeopatia o inquietava. Achava que o Analapril e o Citalopram desaceleravam os frames de sua vida. Isolado no apartamento do irmão, não comia há três dias. As vizinhas lésbicas do prédio em frente exerciam a maternidade com duas gatas potencialmente alérgicas. No apartamento ao lado, um pianista medíocre martelava a 5ª de Beethoven. Às três da tarde, o apartamento chegava fácil a 36 graus. Ele não abria as janelas, por pavor de pombos e do espírito santo. Evitava janelas para evitar o impulso irresistível de contar carros brancos, de achar um sistema capaz dar sentido às 280 janelas do prédio em frente.  O sonho de ser cineasta abandonado. Ele gravava vídeos indicando erros de continuidade. O canal fazia sucesso no YouTube, dava para rachar o aluguel com o irmão ateu. “Se Deus está nos detalhes, é cego, falho ou tem toc.”  Deus não fazia qualquer sentido. “Deus ama da maior a menor de suas criaturas.” Dizia a avó enquanto limpava seu rosto, ajeitando com pente fino seu cabelo castanho. O couro cabeludo sangrava à cata de lêndeas que não estavam lá, mas que poderiam de uma hora para outra eclodir em colônias de piolhos, infestar a casa, vampirizar a família. Vigie, meu filho! Vigie sempre! Exigia a avó, morta e enterrada. Ele imaginava no caixão, as carnes roídas por vermes. E vigiava. Germes, bactérias, vírus, todos filhos de Deus, seus irmãos, seus inimigos. Também o irmão imprudente tinha muito de vilão. Esmurrava com força a porta que tremia no batente. Não queria se despir no corredor, borrifar a existência com álcool 70%. Queimar os pés na água sanitária. Respondeu que não abria. Ele não abria. O irmão furioso expelindo perdigotos de covid arrebentaria a porta, era o último aviso. O vizinho calou o piano. Trancas excitadas no corredor curioso. Rumores de passos no nono andar. Reconheceu o síndico que mancava da perna esquerda, o compasso da chave mestra tilintando no cinto. No cinema, depois de uma porta, sempre uma outra porta, nada que se assemelhe à vida real. A chave penetrou o ferrolho. Recuou acuado até a janela. Tentou ainda a tática respiratória. 780 janelas espiavam sua desgraça. O irmão precipitou uns passos. Três dias sem comer. 40 graus de temperatura. Abriu a janela e voou.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

UARII (incompleto)

UARII

Havia uma mulher que foi achada vagando na floresta. Foi encontrada por nativos de uma comunidade indígena. Via-se nos olhos que não era dali. Indagaram nos arredores se alguém perdera uma loura, magra, sapatos altos e organdi. Vasculharam sua bolsa em busca de identificação. Deram com uma brochura barata de Sidney Sheldon, repleta de anotações miúdas ao pé da página. Nada que qualquer um deles pudesse compreender. Era época de cheia, nem os garimpeiros se arriscavam por ali, quanto mais turista. Infestada de mosquitos, sem os paetês arrancados por curumins curiosos,  só fazia se abanar, um olhar aturdido para os lados do rio. A mais velha da aldeia cansou daquilo, arrastou-a consigo como quem se apossa de um traste inútil. Demorou acertar-se com a rede, por fim, enganchada, dormiu a eternidade de um dia. Acordou faminta. Não estranhou a comida, sorria para todos agradecida. Uarii a achou feia. Os homens que tinham saído de canoa na chegada, voltaram em duas semanas sem resposta, mas pelo menos tinham conseguido a troca pelos bens. As chuvas voltaram mais forte, desalojando ribeirinhos. Informados da intrusa, nem sinal de fumaça dos agentes da Funai.

Nessa época, já tinha se apegado muito às crianças. Vivia com duas ou três no colo, outras enganchadas, nas ancas secas. Os cabelos longos, agora ondulados. Parecia uma Iara desbotada.

Cogitaram levá-la à vila próxima. No rádio contactariam a capital. Concordava? Ela aquiescia no gesto surdo das mulheres da aldeia. Amanhã, sem falta, acertavam. O amanhã sempre adiado, virou um futuro provável do qual ela não mais trataria.

As garças, no ar graciosas, quedavam desengonçadas no chão. Ela, quando apertava a Birkin no peito, o ar era todo de garça. As duas índias que tinham batido nela, agora riam de sua cara rosada de cauim. Já nessa altura atendia por Gootagi. E  começava a ganhar a confiança de Warii.

Como se lembrando a todos que não era dali, ela tirava a brochura da bolsa e lia, em silêncio. Mas as crianças queriam também a história, então ela lia para elas. As mulheres sentavam em volta. Warii, de longe, vigiava. Nada daquilo fazia sentido, a estranheza que era a sua voz. Ela então ficava quase bonita. Do nada se cansava e metia o livro na bolsa.

Nos meses que se seguiram, nem sombra de avião vindo do norte.  Nenhum helicóptero de busca. Sem internet, celulares, drones nessa época, as chamadas só de DDD. Um bugre ofereceu-se para levá-la de canoa à vila. Em conselho com as mulheres, decidiu ficar. Antes de partir, entregou-lhe a Birkin, na capa arrancada do livro rabiscou mensagem. Warii atento a tudo, não queria o governo ali. O bugre pegou a bolsa e a mensagem. Nunca mais, nem notícia.

Se naqueles meses de cheia já se fazia entender com as mãos, breve dominava a língua de passarinho das crianças; e se fez mestra no ralar da mandioca. O cabelo aparado pelas companheiras. Gootagi, tinha perdido o olhar desmaiado, a palidez do corpo de tanto rolar no margem do rio das Piacambas

Ainda ia lendo aquelas páginas de amor impossível. E a gente toda já recitava a trama confusa de cor. Tinham todos muito gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender. De uma hora para outra ela acertava de um jeito diferente, muito dela, que passava então a ser o modo de se fazer dali para frente. Esse prazer em ensinar o que não sabia agradava muito Warii

O Sidney Sheldon de treslido já se tinha desfolhado inteiro, ficado amarelo. As páginas soltas que a conectavam com remoto antes, lidas em desordem, embaralhavam  tempos e espaços. Um personagem morto renascia no capítulo seguinte jurando vingança pela traição ainda não sofrida, o desfecho trazia uma revelação cujo mistério era sabido de todos.

Os anos fizeram em frangalhos o vestido da chegada. Aqueles sapatos que emprestava para as moças exibirem na vila sumiram sem rastro. Por esse tempo já era possível ir e vir da reserva. Ninguém reportava mais seu caso, sua presença nem fazia espanto. Quando as autoridades estiveram ali, mal repararam nela.

A índia velhíssima caiu doente, Gootagi cuidou dela. Desde que chegara ninguém mais tinha partido, como se a morte a evitasse. A velha que não a temia, tinha visto os avós erguerem a grande oca central, a chegada dos brancos, o insubordinado subir e recuar das águas. Queria um fim antes que não houvesse mais destino para seu espírito.

Acharam-na no fundo da rede: o corpo diminuto, esvaziado, parecia caber na palma da mão. Os avós de seus avós a tinham levado dali.

Num fim de tarde qualquer Gootagi se acertou com Warii e foram viver juntos. Foi na semana que leu pela última vez o que restara daquelas páginas de um mundo distante, sua impossível história. Depois distribuiu entre a gente aquelas páginas. Warii pescou um jaú de não caber nos olhos de tão grande e a vida seguiu adiante.

A barriga despontou de seu filho com Warii. Para ele, ela nunca tinha sido Gootagi, ou o outro nome segredado, mas continuou sendo. Era de repente bonita, não como as outras, mas calma, redonda, descansada. A barriga dava saltos.

Faltando pouco mais de um mês, a velha a visitou em sonho e lhe contou que a morte a procurava e a criança. A médica da aldeia confirmou o prognóstico. Não, ali faltavam recursos, ela não viveria.

Warii devolveu-lhe os sapatos. Ele os tinha enterrado, para que esquecida, ficasse. Queria agora que partisse? Mas ela estava decidida. Tinha se lembrado de tudo, de como tinha perdido o nome e vagado na floresta e ludibriado a morte. A outra ficara lá trás esquecida, não era quem era. Tinha nascido no dia a trouxeram da mata.


Ela tinha ido e deixado seus gestos e jeito do fazer de tudo, a história lida passada de boca em boca. Warii se lembrava dela como algo que não se capta. Ela também dera sentido ao que antes não fazia.

O avião monomotor desceu em rasante na aldeia. Finalmente tinham achado jeito de posar. Dentre os agentes da FUNAI, Jagigi, agora Joaquim, intérprete. Desceram do avião o piloto, dois gigantes ruivo-alaranjados e a mulher pequena, muito magra, os cabelos brancos tinham sido louros, a bolsa na mão de Gootagi.

Ela tirou de dentro a mensagem. Então o bugre cumprira a missão. Disseram o nome a Warii. Aquele nome que não significava nada. Warii comunicou a partida, e entrou na oca para trazer a mensagem. O par de sapatos, ela tinha pedido que entregasse. A mulher e os homens se abraçam. Warii levou onde o corpo de Gootagi fora plantado. Não aceitou que a fosse levada a parte alguma. Discutiram entre si, selvagens. Para acalmá-los, foram trazendo uma uma as velhas páginas. Podiam agora, levá-las com eles. Agora entediam.

Deram partida no voo. Warii viu o avião subir espantando as garças. Os meninos saíram de dentro da mata, aborrecidos de terem pedido o espetáculo do avião. O mais novo, correu para Warii. Tinha seu nariz, sua boca, os ombros que seriam os do pai. Sua pele era quase clara, os olhos azuis de Gooagi.




beiju





















































Havia uma mulher que foi achada vagando na floresta. Foi encontrada por nativos de uma comunidade indígena. Via-se nos olhos que não era dali. Indagaram nos arredores se alguém perdera uma loura, magra, sapatos altos e organdi. Vasculharam sua bolsa em busca de identificação. Deram com uma brochura barata de Sidney Sheldon, repleta de anotações miúdas ao pé da página. Nada que qualquer um deles pudesse compreender. Era época de cheia, nem os garimpeiros se arriscavam por ali, quanto mais turista. Infestada de mosquitos, sem os paetês arrancados por curumins curiosos,  só fazia se abanar, um olhar aturdido para os lados do rio. A mais velha da aldeia cansou daquilo, arrastou-a consigo como quem se apossa de um traste inútil. Demorou acertar-se com a rede, por fim, enganchada, dormiu a eternidade de um dia. Acordou faminta. Não estranhou a comida, sorria para todos agradecida. Warii a achou feia. Os homens que tinham saído de canoa na chegada, voltaram em duas semanas sem resposta, mas pelo menos tinham conseguido a troca pelos bens. As chuvas voltaram mais forte, desalojando ribeirinhos. Informados da intrusa, nem sinal de fumaça dos agentes da Funai.

Nessa época, já tinha se apegado muito às crianças. Vivia com duas ou três no colo, outras enganchadas, nas ancas secas. Os cabelos longos, agora ondulados. Parecia uma Iara desbotada.

Cogitaram levá-la à vila próxima. No rádio contactariam a capital. Concordava? Ela aquiescia no gesto surdo das mulheres da aldeia. Amanhã, sem falta, acertavam. O amanhã sempre adiado, virou um futuro provável do qual ela não mais trataria.

As garças, no ar graciosas, quedavam desengonçadas no chão. Ela, quando apertava a Birkin no peito, o ar era todo de garça. As duas índias que tinham batido nela, agora riam de sua cara rosada de cauim. Já nessa altura atendia por Gootagi. E  começava a ganhar a confiança de Warii.

Como se lembrando a todos que não era dali, ela tirava a brochura da bolsa e lia, em silêncio. Mas as crianças queriam também a história, então ela lia para elas. As mulheres sentavam em volta. Warii, de longe, vigiava. Nada daquilo fazia sentido, a estranheza que era a sua voz. Ela então ficava quase bonita. Do nada se cansava e metia o livro na bolsa.

Nos meses que se seguiram, nem sombra de avião vindo do norte.  Nenhum helicóptero de busca. Sem internet, celulares, drones nessa época, as chamadas só de DDD. Um bugre ofereceu-se para levá-la de canoa à vila. Em conselho com as mulheres, decidiu ficar. Antes de partir, entregou-lhe a Birkin, na capa arrancada do livro rabiscou mensagem. Warii atento a tudo, não queria o governo ali. O bugre pegou a bolsa e a mensagem. Nunca mais, nem notícia.

Se naqueles meses de cheia já se fazia entender com as mãos, breve dominava a língua de passarinho das crianças; e se fez mestra no ralar da mandioca. O cabelo aparado pelas companheiras. Gootagi, tinha perdido o olhar desmaiado, a palidez do corpo de tanto rolar no rio das piambamas,

Seguiu lendo anos aquelas páginas de amor impossível. E a gente toda já recitava a trama confusa de cor. Tinham todos muito gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender. De uma hora para outra ela acertava de um jeito diferente, muito dela, que passava então a ser o jeito dali para frente de se fazer. Esse prazer em ensinar o que não sabia agradava muito Warii

O Sidney Sheldon amarelando dentro de uma moringa. Depois de ler umas dez vezes, tinha se desfolhado inteiro. Iam e vinham da vila, da cidade. Quando as autoridades estiveram ali, não foi encontrada. Nada daquilo fazia qualquer sentido.

Num fim de tarde qualquer se acertou com Warii e foram viver juntos. Ela entregou as páginas do livro. Ele tinha pescado um jaú enorme, de encher os olhos. Ela nunca tinha sido Gootagi, mas continuou sendo.

A Índia velhissima disse que trouxera sorte para a antiga aldeia, desde chegou, ninguém mais se foi. No dia seguinte, a encontraram morta na rede.

A barriga crescida do seu filho com Warii. disse que ela trouxe sorte. Depois dela, ninguém mais ficou doente.

E passaram anos. Ela tinha ido e deixado seus gestos e jeito do fazer de tudo, a história lida passada de boca em boca, mas espalhadas as história dela. Warii se lembrava dela como algo que nao se capta. Ela também dera sentido ao que antes nao fazia.

O avião monomotor em rasante sobre a aldeia. Finalmente tinham achado jeito de posar. Dentre os agentes da FUNAI, Jagigi, que atendia agora pelo nome de Joaquim. Os homens grandes muito loiros e a mulher, pequena, os cabelos brancos, com a bolsa. Trazida dentro a mensagem. Eles mostram a capa para Warii, e disseram o nome. Aquele nome que nao significava nada.  13 da partida do bugre.   Warii comunicou a partida. A mulher e os homens se abraçam. Warii levou onde o corpo de Gootagi fora plantado. Nao aceitou que a fosse levada a parte alguma. Discutiram entre si, depois levantaram voo. Mas antes, devolveram a mulher, uma uma as páginas guardadas.

Levantavam voo. Warii viu o avião se perder entre as garças. Os meninos vinham da mata. Aborrecidos de ter pedido o avião. O mais novo, Nada daquilo fazia qualquer sentido. O menino. Os olhos azuis de Gooagi.












Lembraram do livro e pediram que lesse para eles. Nada daquilo fazia sentido, mas gostavam de sua voz. Ela concordavam com a cabeça eEl seus olhos se perdiam na serra onde garças anunciavam o findar da tarde. uma cidade do norte perambulando pelas ruas.



Tinham gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender, mas de uma hora para outra acertava de um jeito diferente que passava, na sequência, a ser um modo como todos faziam 













































Uarii Paratizinho

Havia uma mulher que perdera a memória. Foi encontrada por nativos de uma comunidade indígena. Via-se nos olhos que não era dali. Indagaram nos arredores se alguém perdera uma loura, magra, sapatos altos de fundo vermelho. Vasculharam sua bolsa em busca de identificação. Deram com um brochura barata de Sidney Sheldon, repleto de anotações miúdas no pé da página. Nada que qualquer um deles pudesse compreender. Era época de cheia, nem os garimpeiros se arriscavam por ali, quanto mais turista. Infestada de mosquitos, sem os paetês arrancados por curumins curiosos,  só fazia voltar a cabeça para os lados do rio. A anciã da tribo cansou daquilo e a pegou pelo braço. Como um cego desbengalado, ela a seguiu. Pendurada na rede, dormiu a eternidade de um dia. Acordou faminta. Não estranhou a comida, sorria para todos e agradecia. Os homens que tinham saído na manhã de sua chegada voltaram em duas semanas sem resposta. As chuvas voltaram mais forte, desalojando ribeirinhos. Nem sinal de fumaça dos agentes da Funai. Nessa época já tinha se apegado muito às crianças. Vivia com duas ou três no colo. Os cabelos longos, agora ondulados. Parecia uma Iara desbotada. Cogitaram levá-la para cidade próxima. No telégrafo contatariam a capital. Ela concordava com a cabeça e dizia: amanhã. Seus olhos perdidos no espaço onde as garças mergulhavam afundando o dia. E apertava a bolsa com Sheldon, no peito. As duas índias que tinham batido nela, agora riam de sua cara encharcada de cauim. Consideraram chamá-la de Gootagi. Warii começava aos poucos a perder a desconfiança. Como se lembrando a todos que não era dali, ela tirava a brochura da bolsa e lia em silêncio. Mas as crianças queriam ouvir a história, e lia para elas. As mulheres sentavam em volta. Warii vigiava de longe. Nada daquilo fazia sentido, a estranheza que era a sua voz. Ela era quase bonita. Ele se distraía. Ela cansava e metia o livro em sua Birkin. Nos meses que se seguiram, não se viu sombra de avião vindo do norte.  Nenhum helicóptero de busca. Nesse tempo não havia internet, celulares, drones: as chamadas eram DDD. Um bugre ofereceu-se para levá-la de canoa à vila. Em conselho com as mulheres, decidiu ficar. Antes de partir, deu-lhe a bolsa, a capa do livro seguiu junto. Warii atento a tudo. Se na metade do segundo mês já se comunicava com as mãos como toda gente, agora mestre no ralar da mandioca. De tanto rolar nas águas com as crianças, tinha perdido a palidez do corpo, o olhar desmaiado. Não se podia se esquecer que não era dali, mas era agora como se fosse. As mulheres já recitavam de cor aquela trama confusa. Tinham gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender, mas de uma hora para outra acertava de um jeito diferente que passava, na sequência, a ser um modo como todos faziam. Parecia ter prazer em ensinar o que não sabia. O Sidney Sheldon amarelando entre moringas. Depois de ler inteiro umas dez vezes, começara a se desfolhar. Perguntavam de ir a cidade. Ela respondia: amanhã. Nada daquilo fazia qualquer sentido. Warii Um dia sentou no pátio e distrubuiu as páginas entre as crianças. Só guardou a capa. Em fevereiro acertou-se com Warii e foram viver juntos. O jaú que ele pescou que ele traziam enchia os olhos da gente. Tia Julia disse que ela trouxe sorte. Depois dela, ninguém mais ficou doente.
Alguns homens até começaram a acha-la bonita. Não portava documentos
Lembraram do livro e pediram que lesse para eles. Nada daquilo fazia sentido, mas gostavam de sua voz. Ela concordavam com a cabeça eEl seus olhos se perdiam na serra onde garças anunciavam o findar da tarde. uma cidade do norte perambulando pelas ruas.

Tinham gosto de lhe ensinar as coisas que ela custava a aprender, mas de uma hora para outra acertava de um jeito diferente que passava, na sequência, a ser um modo como todos faziam.



afirmou o temporão do cacique que tinha se instruído na cidade e que agora lecionava para os curumins.

VOLTA (incompleto)


Havia uma mulher que achava que estava enlouquecendo. Vivia no mesmo quintal com a irmã, o cunhado, quatro sobrinhos, dois cachorros e três gatos. A casa compartilhada era a mesma da infância. A irmã ocupava o sobrado da frente e ela, cuidava da mãe com Alzheimer nos três cômodos que ocupava no fundo. As coisas nem sempre foram assim. Um terremoto passara por sua vida pessoal e a deixara em escombros. O casamento de 14 anos foi o primeiro a ruir, quando o marido resolveu ir viver com a secretária. Não foi pega de surpresa, pois calara a ciência do adultério com whisky, lexotam, dois ou três amantes. Ele assinava todos os papéis, liberava o apartamento, o honda civic, o terreno em Angra, antes no nome dos dois. Queria os anos futuros (que ela rezava para serem breves) ao lado loura de peitos enormes. Para ressarci-la do passado compartilhado, deixava a cobertura, que ela descobriu hipotecada e onde só condomínio excedia seus salário de revisora. Pôs Angra à venda, mas a prefeitura embargou o negócio alegando ser parte dele invasão. Seus seis irmãos acompanhavam seu drama daquela irmã bem sucedida a distância. O que concluíra Direito, mas não passara na OAB, aconselhou-a a vender o carro, quitar as dívidas e ir cuidar da mãe, cuja acompanhante ela não conseguia mais pagar. Os sobrinhos receberam com ternura a ex-tia rica, e lamentaram ter perdido a piscina. Invejava o ar sereno e alheio do olhar da mãe. Reestabeleceu amizade com velhas amigas de colégio, já que as do Jardins reclamavam da distância e dos perigos de Diadema. Tratou então de reinventar-se, com as instruções de um coach. Ela precisava ser a melhor versão de si mesma. Seu network era compartilhado com o marido, a maior parte foi legada ao marido, na repartição dos bens. 14 anos de casada faz um estrago nas relações sociais. Era preciso descobrir quem era de fato, o que desejava. Nem a própria mãe se lembrava do seu nome. A mais velha lhe trazia bolos. O caçula sem OAB assumiu. Sempre prezara por sua independência. Os sobrinhos preenchiam a lacuna de todo um campo de afetos.


com  nem os tacos de seu apartamento nos jardins permaneceram intactos. Primeiro   

VERÃO (incompleto)

Havia um homem que ficou ilhado com a família numa ilha. As férias tinham sido planejadas com um ano de antecedência. O pacote contemplava hospedagem num resort magnífico. Sua esposa sonhara desde adolescente com o Caribe. Gabo era seu escritor predileto. Mas a epidemia que veio era outra. Fechou fronteiras e impôs quarentena. Eles, que não eram dali, se viram súbito confinados no luxuoso hotel. Os aeroportos fechados, o possível colapso do sistema de saúde, da economia. As notícias vinham de longe, enfermos na Ásia, frigoríficos carregados de mortos na Itália. Incuráveis, os ricaços partiram em saveiros, jatinhos particulares. As passagens da família, parceladas em vinte vezes, o voo cancelado sem previsão. Acabaram os cinco ali.

Num deserto de almas, cadeiras de praias tostavam ao sol. Os sócios do hotel não queriam problemas com turistas. Dentro do prejuízo inestimável, eles representavam centavos. Liberaram-lhes o pacote mais caro. Passavam o dia mergulhados na piscina de fundo infinito, já cansados da transparência surreal das águas onde peixinhos beliscavam as pernas. Eram servidos com drinks coloridos por um exército. O ex-proprietário holandês tivera problemas com o sindicado local. Se não podia dispensá-los, que os funcionários cumprissem as funções no lockdown: zero risco de contaminação, zero a possibilidade de processos.

Empreendedores pensam cifras, números, algarismos. Sabiam o valor de cada uma das seis estrelas. O circuito interno de câmeras garantiria que todas as funções fossem executadas. Depois de anos de invasão corsárias, a ancestralidade guerreira degenerara para uma mortiça forma de resignação.

As crianças se entediaram na segunda semana umas com as outras. Metidas nos salões vazios, brincavam de pega-pega num labirinto de caça-níqueis. A esposa tostada de sol e das máquinas de raio U.V.A. engordava visivelmente. Dormiam na suíte presidencial, sem hora para despertar. Os funcionários que os receberam com entusiasmo, já não se esmeravam em simulações. Mês e meio passado, o serviço começou a decair. Os pratos chegavam mornos à mesa. A banda de reggae parecia entorpecida. Os coquetéis que sorviam aos litros, perderam um tanto da cor. Seguranças, camareiras e arrumadeiras vagavam sonâmbulos por corredores ser disfarçar o vetado uso dos celulares. 

25 minutos de espera na sala de massagem ao som do merengue, ele enviou um email indignado à gerência. Que culpa tinha sua família do caos global? Dispostos em forma de pelotão, desculparam-se humilhados no salão principal. Advertidos, fizeram-se profissionais e distantes, como autômatos. Parecem civilizados, mas no fundo conspiram, pensou o homem.

A conexão por satélite garantia a fluidez das lives. Eram invejados pelos amigos, deslumbrados pelo fundo azul. Eles simulavam a alegria das selfies. Os empregados conspiram, em papiamento, na cozinha.
A mulher ficou presa na sauna. O termostasto altíssimo, ninguém soube explicar. Novo email à gerência, fez com que abrissem o salão de beleza e tiveram a barba feita, o cabelo cortado, a tinta refeita, as unhas da esposa com francesinha. Ela, que arranhava o espanhol, soube que a manicure era da etinia kxua. As filhas ficavam com a avó. O marido era o segurança antes bonachão, que adquirira um ar sisudo, desde que o marido quisera sair de lancha para o mergulho aquático entre tubarões. Sentia falta das crianças. A avó era meio cega. Levou-a para ver seu altar com a virgem, que parecia mais uma índia kxua, dessas que pedem sacrifício. Através de chantagem, ele conseguiu uma boa quantidade de marijuana com um funcionário jamaicano. Um curto circuito, comunicaram, deixou interditado o bar do hotel. Uma pane na rede tornou a internet instável. Tiveram que desabilitar o circuito interno de câmeras, que ficou à espera do técnico, isolado por suspeita de covid. As crianças tinham ataques de fúria se recusavam a obedecer. As discussões com o marido, apesar do seu torpor, eram cada dia mais violentas. Dali a um mês sentia-se num filme de Kubrick. Apesar dos geradores, uma pane detonou os frigoríficos. O cheiro de podre de lulas, ostras, lagostas e lagostins empestavam os corredores. Foram aconselhados a permanecerem dentro do hotel, pois as feras exóticas, livres das celas eletrônicas, estraçalhara uma garçonete no jardim. Notícias vinham da tevê de mortos.

Incomodava-a os olhares, encontrara amendoim na muqueca do filho que já informara alérgico. A menina estava febril, não de gripe, e se aborrecida com o esposo, para quem tudo estava ótimo. De óculos escuros e bermudas floridas, contemplava Dickenson bay, enquanto esposa atravessava corredores puxando o filho fratura exposta. Irritou-se com o alarme eletrônico que parecia não funcionar. Num passado nem tão remoto receberiam chicotadas se ignorassem o soar da sineta do senhor. Só deu pelo sumiço da esposa quando não conseguiu encontrar a droga do carregador do celular. Vagou pelos corredores banhados de sol e foi encontrar os funcionários reunidos no quarto da manicure, ajoelhados em volta da santa. Embora uniformizados com o logo do hotel, haviam regredido à natureza tribal, e já não se comunicavam em língua civilizada. Buscou a esposa, o caçula, a menina e os filhos nos exóticos bangalôs  construídos com retalhos saídos da imaginação de roteiristas ianques de filme b. Os altofalantes tocavam de los guagos. exclusivamente construídos para turistas. Então encontrou as quatro covas na areia voltadas para cuxco e uma quinta, justo para cabe-lo. Cinco e não seis, como as estrelas do hotel. Mas seriam suficientes para aplacara a fúria dos deuses, espantar a peste, e abrir novamente a comunicação para as ilhas.

Anos de sistemática submissão ou terror, se a servidão os enlouqueceram, ou se insubmissos, se rebelavam agora contra o capital sem nome, talvez não acreditassem de fato que aquele sacrifício saciaria a fome dos deuses esquecivos das Antilhas o da longe africa, cuja santeria se misturava, derrubando a peste. O certo é que não havendo turistas, não haveria por que ainda estarem à serviço do hotel.


Reciocínio numérico. Hibisco e buganvílias Dickenson bay
Exóticas suítes lobby

Suits com mordomo

Cricketers pubs
Subserviência remunerada
Festas caribenhas


mas conspiravam em grupos, entre hibiscos e buganvílias a realidade mágica da cólera de Gabo..


































Havia um homem que ficou ilhado com a família no Caribe. As férias tinham sido planejadas com um ano de antecedência. O pacote contemplava hospedagem num resort magnífico nas antilhas. Sua esposa sonhara desde adolescente com a realidade mágica de amor e cólera de Gabo. Mas a epidemia que veio era outra. Fechou fronteiras e impôs quarentena. Eles que não eram dali se viram súbito confinados no luxuoso hotel. Os aeroportos fechados, o possível colapso do sistema de saúde da economia, notícias vindas da Ásia, frigoríficos carregados de mortos na Itália. Incuráveis, os ricaços partiram em saveiros, jatinhos particulares. As passagens da família, parceladas em vinte vezes, o voo cancelado sem previsão. Acabaram os cinco ali.
Num deserto de almas, cadeiras de praias tostavam ao sol. Os sócios do hotel não queriam problemas com turistas. Dentro do prejuízo inestimável, eles representavam centavos. Liberaram-lhes o pacote mais caro. Passavam o dia mergulhados na piscina de fundo infinito, já cansados da transparência surreal das águas onde peixinhos beliscavam as pernas. Eram servidos com drinks coloridos por um exército de funcionários. O ex-proprietário holandês tivera problemas com o sindicado local. Se não podia dispensá-los, que cumprissem as funções no lockdown. Zero risco de contaminação, zero a possibilidade de processos. Sabiam o valor de cada uma das seis estrelas. Empreendedores pensam cifras, números, algarismos. O circuito interno de câmeras garantiria que todas as funções fossem executadas. Depois de anos de invasão corsárias, a ancestralidade guerreira degenerara para uma forma macia de resignação. As crianças se entediaram na segunda semana umas com as outras. Metidas nos salões vazios, brincavam de pega-pega num labirinto de máquinas de caça níquel. A esposa tostada de sol e das máquinas de raio UVE, engordara visivelmente. Dormiam na suíte presidencial, sem hora para despertar. Os funcionários que os receberam com entusiasmo, já não se esmeravam em simulações. Mês e meio passado, o serviço começou a decair. Os pratos chegavam mornos à mesa. A banda de reggae parecia entorpecida. Os coquetéis que sorviam aos litros, perderam um tanto da cor. Seguranças, camareiras, arrumadeiras e xxxx vagavam sonâmbulos por corredores ser disfarçar o vetado uso dos celulares.  25 minutos de espera na sala de massagem ao som do merengue, ele enviou um email indignado à gerência. Que culpa tinha sua família do caos global? Dispostos em forma de pelotão, desculparam-se em uníssono diante da família no salão principal. A advertência devolveu profissionais e distantes, como autômatos.

Advertida a equipe, tornaram a de maneira civilizada, mas conspiravam em grupos, entre hibiscos e buganvilias. A conexão remota permitiam lives num infinito fundo azul. Eram invejados e sorriam da sorte. Os empregados conspiram na cozinha em papiamento. A esposa ficou presa na sauna. Ninguém soube explicar a temperatura altíssima do termostato. Com um email para gerência, fez com que abrissem o salão de beleza e tiveram a barba feita, o cabelo cortado, a tinta refeita, as unhas da esposa com francesinha. Ela, que arranhava o espanhol, sou que a manicure era da etinia kxua. As filhas ficavam com a avó. O marido era o segurança antes bonachão, que adquirira um ar sisudo, desde que o marido quisera sair de lancha para o mergulho aquático entre tubarões. Sentia falta das crianças. A avó era meio cega. Levou-a para ver seu altar com a virgem, que parecia mais uma índia kxua, dessas que pedem sacrifício. Através de chantagem, ele conseguiu uma boa quantidade de marijuana com um funcionário jamaicano. Um curto circuito, comunicaram, deixou interditado o bar do hotel. Uma pane na rede tornou a internet instável. Tiveram que desabilitar o circuito interno de câmeras, que ficou à espera do técnico, isolado por suspeita de covid. As crianças tinham ataques de fúria se recusavam a obedecer. As discussões com o marido, apesar do seu torpor, eram cada dia mais violentas. Dali a um mês sentia-se num filme de Kubrick. Apesar dos geradores, uma pane detonou os frigoríficos. O cheiro de podre de lulas, ostras, lagostas e lagostins empestavam os corredores. Foram aconselhados a permanecerem dentro do hotel, pois as feras exóticas, livres das celas eletrônicas, estraçalhara uma garçonete no jardim. Notícias vinham da tevê de mortos.
Incomodava-a os olhares, encontrara amendoim na muqueca do filho que já informara alérgico. A menina estava febril, não de gripe, e se aborrecida com o esposo, para quem tudo estava ótimo. De óculos escuros e bermudas floridas, contemplava Dickenson bay, enquanto esposa atravessava corredores puxando o filho fratura exposta. Irritou-se com o alarme eletrônico que parecia não funcionar. Num passado nem tão remoto receberiam chicotadas se ignorassem o soar da sineta do senhor. Só deu pelo sumiço da esposa quando não conseguiu encontrar a droga do carregador do celular. Vagou pelos corredores banhados de sol e foi encontrar os funcionários reunidos no quarto da manicure, ajoelhados em volta da santa. Embora uniformizados com o logo do hotel, haviam regredido à natureza tribal, e já não se comunicavam em língua civilizada. Buscou a esposa, o caçula, a menina e os filhos nos exóticos bangalôs  construídos com retalhos saídos da imaginação de roteiristas ianques de filme b. Os altofalantes tocavam de los guagos. exclusivamente construídos para turistas. Então encontrou as quatro covas na areia voltadas para cuxco e uma quinta, justo para cabe-lo. Cinco e não seis, como as estrelas do hotel. Mas seriam suficientes para aplacara a fúria dos deuses, espantar a peste, e abrir novamente a comunicação para as ilhas.
Anos de sistemática submissão ou terror, se a servidão os enlouqueceram, ou se insubmissos, se rebelavam agora contra o capital sem nome, talvez não acreditassem de fato que aquele sacrifício saciaria a fome dos deuses esquecivos das Antilhas o da longe africa, cuja santeria se misturava, derrubando a peste. O certo é que não havendo turistas, não haveria por que ainda estarem à serviço do hotel.


Reciocínio numérico. Hibisco e buganvílias Dickenson bay
Exóticas suítes lobby

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Festas caribenhas

POMBOS

Havia um homem que sofria de toc. Checar e rechecar a quantidade exata de livros na estante não tinha impedido a chegada do vírus. Talvez não tivesse contado o suficiente e tornou a contar. A ordem alfabética do nome dos autores em conflito com as letras dos títulos. Sentia-se culpado pelo cataclisma mundial. Associava a impossibilidade de... O hipnoterapeuta havia lhe ensinado técnicas de respiração. Os ansiolíticos desaceleravam os frames da vida. Tinha alergia aos florais com laranjeira. Aquele átomo luminoso filtrado na homeopatia o inquietava. Isolado no apartamento do irmão, não comia há três dias. As vizinhas lésbicas do prédio em frente com a propriedade alérgica de três gatos. No apartamento ao lado, um pianista medíocre fumava chatuto e cantava Belquior aos urros. Às três da tarde, o apartamento chegava fácil a 36 graus. Ele não abria as janelas, por pavor aos pombos e ao espírito santo. Evitava janelas para evitar o impulso de contabilizar carros brancos, de achar um sistema capaz de ordenar 780 janelas.  O sonho de ser cineasta abandonado. Ele gravava videos indicando erros de continuidade. O vídeos faziam sucesso. Ele rachava o aluguel com o irmão ateu. Se Deus está nos detalhes, é cego, falho ou tem toc.  Deus não fazia qualquer sentido. Deus ama da maior a menor de suas criaturas. Dizia a avó enquanto limpava seu rosto, ajeitando com pente fino seu cabelo castanho. Deus não fazia sentido.  O couro cabeludo sangrava à cata de lêndeas que nao estavam lá, mas que poderiam de uma hora para outra eclodir em colônias de piolhos, infestar a casa, vampirizar a família. Vigie, meu filho! Vigie sempre! Vigiava: germes, bactérias, vírus, filhos de Deus, seus irmãos inimigos. Esmurrava a porta, cada vez mais forte. A recusa de tirar a roupa no corredor, borrifar a existência com álcool 30%. Queimar os pés na água sanitária. Ele não abria. Novas batidas. Arrebentaria a porta. Rumores no corredor, o tilintar de chaves do síndico. Ele recuou até a janela. O vizinho calou o piano. Tentou ainda a tática respiratória. 780 janelas atenta à sua desgraça: vigilantes. Três dias sem comer. 40 graus de temperatura. Abriu a janela e voou.


 Acusadoras. Os potes de tempero, a confusão dos suéteres, dos sapatos. As meias sem par. As chaves da cozinha, da sala, dos armários. O irmão que trouxesse o chaveiro. Depois de uma porta, outra porta, e assim ad infinitum, como nos filmes.

BORBOLETA



[Hope I Don't Fall in Love with You]


Havia uma mulher que ouvia vozes. O tom, o timbre, o ritmo variava, mas o conteúdo sempre era o mesmo: instruções precisas para cada situação do dia. A elas, se seguiam dores de cabeça; de vez em quando, sangrava o nariz. Troque a fechadura do portão. Jogue cinco ovos no jardim. Leve o cachorro para passear. Acatava. Num mundo de indefinições, as vozes lhe garantiam um sistema de navegação preciso para vida prática. Os efeitos dessas miudezas nem sempre eram visíveis. Um segurança flagrara um homem forçando sua porta na madrugada. A intoxicação por salmonela levou gente do bairro ao hospital. Bob cessou de mastigar o sofá. Sentia uma espécie de apaziguamento das tensões diárias. Parou de roer as unhas. Cortou curtinho os cabelos e os pintou de ruivo. Ganhou na rifa do salão o acesso livre à piscina de um clube exclusivo. A imprevisibilidade de causa e efeito a deixava perplexa. Comprou um Louboutin de salto altíssimo, tão alto para o seu orçamento que precisou cortar os doces que amava. Entrou num curso de defesa pessoal. Às quartas, fazia com as amigas dança de salão. Embora interessante, sua existência tinha algo de títere: as cordas da vida em dedos que não eram os seus. Recusou o descarte de jujubas coloridas. Não comprou o abajur azul. Seu chefe sofreu um enfarte fulminante. Um grupo terrorista derrubou um avião, Um tsunami matou milhares na Tailândia. A aparente desconexão entre jujubas, infartos, sequestros e tsunamis não lhe soavam incongruentes. Sabia as conexões profundas entre o bater de asas e um terremoto no Japão. A cabeça doía ainda mais. A culpa fez  o nariz sangrar. Desça duas paradas antes do seu destino. Não nesse táxi, no próximo. Passe o protetor solar. Já não recusava a nada. Vozes determinavam que amizades manter, o batom adequado, a troca da pílula pelo diu. Agora podia comunicar-se em Libras, graças a um curso que antes não fizera sentido, mas garantiu-lhe, posteriormente, uma improvável promoção junto ao novo C.O. Sem jamais ter tomado um porre na vida, frequentava toda sexta às sessões do AA. O relato sobre as bebedeiras do pai levou Júlia às lágrimas, essa lhe apresentou o filho Heitor. Saíam há mais de um mês: viram três filmes, cinco peças e riam das piadas um do outro. Ele ficou fascinado com sua pelae bronzeada, seu batom vermelho e por ela saber bailar com suas pernas fortes, seu corpo esguio e sapato sexy. Contrariando o que dizia a canção, sussurrou no seu melhor grave um Tom Waits em seus ouvidos. Ela sentiu um arrepio profundo até na ponta do chanel. Sem o aval das vozes, sem as dores de cabeça, sem surpresas boas ou más, decidiu que era tempo das vozes se calarem e que a dele era a única que gostaria de escutar dali para frente sem surpresa, sem medo, sem submissão. E por que tomou de vez as cordas de sua vida, nunca mais seu nariz sangrou.

DESERTO


Havia um homem que conservava a mãe congelada num freezer. Duas vezes ao dia a visitava, tanto pelo costume da bênção, quanto pela necessidade de verificar o bom funcionamento do aparelho. Um apagão por horas, há três anos, exigira a instalação de um gerador. A mãe ganhara também um freezer reserva, mais aperfeiçoado do que este onde repousa confortavelmente. Ele próprio instalara novas tubulações de compressor e termômetro para ajustes mais precisos, tudo aprendido pelo Youtube. Era um entusiasta da tecnologia, e a mãe, uma egiptóloga consagrada, sempre o estimulara. Ela fora previdente em guardar in vitro seu embrião, como se previsse o soterramento trágico do marido no Vale dos Reis. A idade avançada com que o concebeu e o criou não fez que o amasse mais, já que não tinha uma alma passional e, no fundo, a maternidade acertada com o marido era outro plano a se cumprir. Era idêntico ao pai para além do mesmo nome. Ele soube disso ao encontrar numa pasta fotos de uma expedição. Ela nunca falava dele e seu ressurgimento no filho era como a continuidade de um pacto de vida a dois brevemente adiado. Se alguns viram nisso uma forma de negação, pesando na balança, isso não a impediu de amar o filho, ainda que com o amor reservado ao outro. Embora a comunicação e os gestos de explicito afeto fossem raros, eram muito ligados. Certa frieza, bem como a racionalidade desconcertante vieram da mãe. Aliás, sentia-se ainda mais próximo dela agora, quando o silêncio era justificável. Afastado do emprego desde a doença, a demanda de cuidados não mudara com seu estado atual. Quando Maat escapulia, e tinha que buscá-la na vizinhança, era abordado pelas senhorinhas que sempre perguntavam como estava. Ele se reservava a um discreto franzir os lábios, enquanto acariciava com violência o dorso da fujona. A gata amarelo ocre é o que lhe restara, além da pensão que sacava sacrilicamente todo mês. O governo exigia comprovação anual de vida. Apanhava de empréstimo uma daquelas velhinhas da casa de repouso, onde vez ou outra fazia trabalho voluntário. Tudo ia muito bem, até que no último mês, percebeu um som estranho e contínuo na câmara frigorífica. Achou inicialmente que era o motor. Examinou meticulosamente o condensador. Nenhum vazamento do gás freon, as borrachas novas, intactas. Por segurança mudou a mãe para o reserva. Há algumas semanas o zunido voltou, como se emitisse mais do que um som, uma mensagem em frequência baixíssima que inquieta o sono de Maat sinuosa, a calda de cobra, o pelo cada vez mais amarelo. Um pouco arrependido, pensou nas instruções precisas da mãe, mas na hora h não teve coragem de congelar a gata. O coração chega a pesar no peito, como se a mãe tivesse acabado de morrer. Às vezes desce as escadas e sentado recosta os ouvidos na parede do freezer. Queria ter preservado a memória gelada do tubo de ensaio. Por vezes apenas sussurra: Mamãe, é você?

SILÊNCIO


Havia uma mulher que se fingia de surda. A deficiência garantia-lhe não só maior privacidade, mas acessar o mais íntimo das pessoas. Numa estranha forma de invisibilidade, transitava nas festas da empresa sem necessidade de elaborar conversas interessantes, fazer-se inteligente, mostrar-se atenta ou superficial. Porque as máscaras não estão no rosto, mas nas bocas livres da mordaça da conveniência. Um curso rápido de libras consolidara a farsa. Um aparelho postiço da tia-avó completava o figurino. Testemunhou no rol dos dias: conchavos, negociatas, traições; todo esse microcosmo que configura não só o mundo corporativo, mas a vida em sociedade. Concluiu, por fim, que a contradição é inerente à condição humana pelo abismo que há entre o que dizemos, como agimos e quem, de fato, nos habita. Criara na infância um camaleão num aquário. Sua inconstância e habilidade de se camuflar eram hipnóticas. Ciente da possível traição microscópica dos olhos, de uma expressão facial, de um gesto, educou no espelho a difícil inocência da pupila, a contenção facial dos músculos sem botox, o tai-chi-chuan preciso de cada gesto. Se a surdez enseja simpatia e desarma suspeitas de ameaça, pois não é da natureza dos surdos serem assassinos em série, seu contraponto nocivo é a pena. Desarmou toda forma de condescendência. Fez enxergarem a surdez como um trunfo, campo de força que a mantinha focada nos números, imune ao exterior caótico e convulso dos pregões. Tal eficiência a catapultou ao controle das contas da empresa, de onde vultosos desvios não davam na vista, nem emitiam som. Em menos de sete meses já teria o suficiente para viver tranquilamente longe, onde o rumor das ondas se harmonizam com o balanço das hulas, os acordes do hukulelê.  

SHINIGAMI


Havia um homem que há 67 dias conversava com plantas. Acima do peso, era cardíaco, a asma não ajudava. Antes, a quitinete na Liberdade só servia para dormir. O espírito da amada esposa assombrava suas noites no apartamento antigo. Levado ao psiquiatra pela filha única, o tarja-preta a exorcizara. Os bonsais, a rosa de pedra e o lírio da paz foram presentes da filha antes da mudança para o Japão. Nem sempre conseguia conexão na rede antiga para falar com ela, nem sabia sintonizar a rádio Nikkey. Sentia falta da praça, dos companheiros de Go, de comer doce de feijão. Conversar com as plantas foi conselho da filha. Na última vez que se falaram, há um mês, ela disfarçava a tosse atrás da máscara salmão. Um rapaz do 171 se ofereceu para comprar Ramen e até hoje não voltou. Com ele, foi-se a receita dos comprimidos que sumiam na palma da mão. Desde que acordou esta manhã não consegue parar de chorar. Tentou consolar-se com as plantas, mas elas lhe dizem coisas duras demais.

SEMENTE


Havia uma mulher que encontrou um caroço no seio. A mãe havia morrido de câncer assim como a tia que a criara. Vivia sozinha num quarto-e-cozinha pago com o trabalho num RH. O namorado vinha dormir com ela do sábado para o domingo. Às quartas, quintas e finais de semana, nos dois primeiros anos de namoro. Às quintas e sábados, após o noivado, no duro ano do aborto. Agora cogitava quinzenar, por causa do curso de TI, que ela pagava metade. Não era um homem bonito, tampouco ela, mas faziam um belo casal.  Era apaixonada pelas mãos dele, que eram grandes, fortes, firmes, na medida para abarcar seus seios. Ele amava seus seios, que eram grandes, fortes, firmes feito mãos. Ela os sonhara ainda maiores, amamentando sem miséria o filho adiado que não morreria de câncer. Tinha 32 anos, esse noivado de sete anos, esse espelho em que se mira, a semente no seio, a sede de maternidade. Se grávida até agosto, o filho nasceria em Áries, primeiro neto de Graça. Calculou o espanto, a vergonha, a censura da sogra batista, a reparação para dali a dois meses da concepção em pecado, a entrega das chaves. A licença maternidade seria emendada com as férias. Convinha antecipar o restauro dos caninos. Voltaria amanhã mesmo o cabelo ao castanho natural. Amanhã não, no domingo, depois deste sábado quando Moisés conceberia Moisés: ele amava o louro falso do seu cabelo, longo, sem corte, tanto quanto seus seios, por enquanto intactos.  

VIVOS

Havia uma mulher que enxergava pessoas mortas. Via mortos na cozinha, na fila do pão, nas ruas do bairro, em frente à escolinha onde deixava a filha antes de ir ao trabalho. Era difícil separá-los dos vivos. Por isso vivia aos tropeços na loja em que gente morta transitava entre a clientela, manequins, araras e gôndolas. Diferenciava-os por chapéus cocos, espartilhos, calças boca de sino, dentes de ouro. Impossível, contudo, evitar encontrões, não se equivocar em filas de supermercado, contabilizar cortes de bolos nas festinhas infantis. Distraída, distante, estranha, eram os adjetivos que lhe davam. Levada à terapia pelo marido, não se adaptou à pouca privacidade do consultório. Uma vez pensou em recorrer à Igreja, mas não acreditava nessas coisas. Inquietava-a apenas o pós-morte não ser nada mais do que uma inolvidável replicação de atos cotidianos. Nunca tratou da questão com o marido, não por falta de confiança, mas por acreditar que cada um de nós tem um universo íntimo e privado que convém preservar. Vez ou outra ele a flagrava recolhendo brinquedos, trocando os lençóis da cama, acendendo o abajur para filha antes de ir se deitar. Deixava sempre um copo de leite quente para menina em cima do criado mudo, embora soubesse que ela não precisava mais dele. Só Deus sabe o quanto é difícil abrir mão de um hábito de 30 anos.