domingo, 19 de julho de 2020

VERÃO

VERÃO


Havia um homem que ficou ilhado com a família nas Antilhas. As férias tinham sido planejadas com um ano de antecedência. O pacote contemplava hospedagem num resort magnífico. Sua esposa sonhara desde adolescente com o Caribe de O amor nos tempos do cólera, sem saber que a epidemia que viria seria outra.


A Covid-19 fechou fronteiras e impôs quarentena. Eles, que não eram dali, viram-se, subitamente, confinados no luxuoso hotel. Os aeroportos fechados, o possível colapso do sistema de saúde, da economia. As notícias vinham de longe: enfermos na Ásia, frigoríficos carregados de mortos na Itália. Incuráveis, os ricaços partiram em saveiros, jatinhos particulares. As passagens da família, parceladas em vinte vezes, o voo cancelado sem previsão. Acabaram os cinco ali.


Num deserto de almas, cadeiras de praias tostavam ao sol. Os sócios do hotel não queriam problemas com turistas. Dentro do prejuízo sem cálculo, eles representavam centavos. Liberaram-lhes o pacote mais caro. Passavam o dia mergulhados numa piscina de fundo infinito, já cansados da transparência surreal das águas onde peixinhos beliscavam pernas. Eram servidos com drinks coloridos por um exército.


O ex-proprietário holandês tivera problemas em abril com o sindicado local. Empresários pensam números, algarismos, cifras. Sabiam o valor de cada uma das seis estrelas. Se não podia dispensar a família, que os funcionários cumprissem as funções no lockdown: zero risco de contaminação, zero a possibilidade de processos. O circuito interno de câmeras garantiria que todas as funções fossem executadas. Não houve protesto entre os funcionários, cientes dos rumores das demissões em massa no litoral. Depois de anos de invasão corsárias, a ancestralidade guerreira degenerara para uma mortiça forma de resignação.


As crianças se entediaram na segunda semana umas com as outras. Metidas nos salões vazios, brincavam de pega-pega num labirinto de caça-níqueis. A esposa tostada de sol e das máquinas de raio U.V.A. engordava visivelmente. Dormiam na suíte presidencial, sem hora para despertar. Os funcionários que os receberam com entusiasmo, já não se esmeravam em simulações. Mês e meio passado, o serviço começou a decair. Os pratos chegavam mornos à mesa. A banda de reggae parecia entorpecida. Dos ares antes calorosos, incomodava-os a frieza dos gestos, o descompasso do mambo, as cordas frouxas nos boleros. Os coquetéis que sorviam aos litros, perderam um tanto da cor. Seguranças, camareiras e arrumadeiras vagavam sonâmbulas por corredores sem disfarçar o vetado uso dos celulares. Please don't serve us peanuts! Repetia em vão. As gêmeas eram muito alérgicas, não as fossem matar.


25 minutos de espera na sala de massagem ao som do merengue. Ele enviou um email indignado à gerência. Que culpa do caos global tinha sua família? Dispostos em forma de pelotão, os funcionários se desculparam humilhados no salão principal. Advertidos, fizeram-se profissionais e distantes, como autômatos. “Parecem civilizados, mas no fundo praguejam”, comentou com a esposa.


Para espanar o pó do tédio, multiplicaram-se nas redes sociais. A antena própria da ilha, com conexão por satélite, garantia a fluidez de lives diárias entre flamingos, palmeiras, cambacicas amarelo-gris. Eram invejados pelos amigos a um continente dali, deslumbrados pelo fundo azul, pela alegria simulada das selfies, a inverossímil sorte que tiveram no azar. Ele inventava expedições às ilhas, mergulhos em corais, fingidas festas regadas a piña colada, explosões de pinhatas e guerras de travesseiros com os filhos. Enfastiados e aflitos, os empregados praguejavam em papiamento, já na cozinha, as maldições eram na língua hixkaryana.


De medíocre, mas complacente subdiretor num banco nacional, o poder nunca experimentado açulou o espírito para o exercício da tirania. Novo email à gerência, fez com que abrissem o salão de beleza. A barba feita, o cabelo cortado, as unhas da esposa com francesinha, para o vídeo. Nem parecia a mesma que estivera aos prantos depois de se achar presa na sauna. O termostasto altíssimo, que ninguém sabia explicar.


Ela, que arranhava o espanhol, pensou em diversificar seus stories com o exotismo local. A manicure, contudo, viera de Cuba. As filhas tinham ficado com a vó Guadalupe, em Guadalupe. O marido era o segurança antes bonachão, que adquirira um ar sisudo, desde que o marido quisera sair de lancha para o mergulho aquático entre tubarões indiferente aos alertas de precipitações. Sentia falta das crianças, da mãe cega, de Matanzas. Levou-a para ver seu altar com Nossa Senhora da Candelária, uma índia negra coberta de um manto azul que às vezes chamava Oyá, dessas que na Santeria se oferecem sacrifícios.


Os dias quentes deram lugar ao anúncio de um ciclone tropical. Os haitianos se puseram inquietos e os jamaicanos, temerosos da escassez, só lhe cederam uma boa quantidade de marijuana através de chantagem. O céu se escureceu, houve relâmpagos e trovões. As crianças se meteram sob os lençóis apavoradas. A luz se apagou, acendendo os leds de segurança.


Um curto circuito, comunicaram, deixou interditado o bar do hotel. A antena receptora foi arrancada com as telhas dos bangalôs. A pane na rede derrubou a internet sem previsão de retorno. O gerador de segurança não dava conta da energia. Tiveram, por fim, de desabilitar o circuito interno de câmeras, e o hotel ficou limitado às ações de um técnico que infelizmente estava isolado no 403, porque há dias ardia em febre.


Abstêmicas de tábletes e smartfones, as crianças tinham ataques de fúria e se recusavam a obedecer. As discussões com o marido submerso num contínuo torpor de canabis, tanto eram desgastantes quanto improdutivas. No final do terceiro mês, sentia-se num filme de Stanley Kubrick.


A pane que tinha detonado os frigoríficos, fez desembocar por todo o andar um cheiro podre de lulas, ostras, lagostas e lagostins que empestavam o ar. O enjoo das gêmeas era tal, que tiveram que voltar ao antigo quarto no nível inferior, fato que irritou profundamente o marido. Para compensar interfones e campainhas desativadas, ele passou a fazer uso de uma sineta que agitava com vigor para convocar os empregados para servi-lo. Contudo, esses eram cada vez mais escassos, devido ao crescente número de infectados que terminavam restritos a cabines. Ele questionava tal motivo e, na intimidade do quarto, acusava-os de indolentes e preguiçosos.


Foram aconselhados a permanecerem dentro do hotel, pois as feras exóticas, livres das celas eletrônicas, estraçalharam uma garçonete no jardim. Um rádio de pilha, furtado de uma dominicana, alternava calípsos e notícias de aeronaves desaparecidas nas Bermudas. Havia montes de mortos em Trinidad e Tobago. Algo se passara em Guantânamo. Seis ou sete porto-riquenhos, com o pretexto de racionar o diesel dos geradores, recolheram combustível e escaparam com outros funcionários nas vistosas embarcações turísticas. Tinham poucas horas diárias de energia, algumas velas para iluminar as noites.


Os ânimos exaltados e um vislumbre de desespero tomou recepcionistas, camareiras, guias e choferes restantes. Uma romaria se montou diante do quarto 302 para rogar à candelária de Guadalupe que cessasse a profusão de desgraças que punha a cada dia homens e mulheres prostrados pela febre. Só a família parecia imune. O que despertava não só desconfiança, mas rancor. Quando insensatamente a mulher os fotografou ajoelhados diante da imagem, a expulsaram de lá. O incêndio veio a confirmar que estava amaldiçoados.


O fogo começou, contraditoriamente, pelo altar da Candelária. Os detectores de fumaça desativados não acionaram os jatos de água. Breve as chamas se alastraram corredor afora, asfixiando os fiéis.


Só deu pelo sumiço da esposa na segunda feira, quando não conseguiu encontrar a droga do carregador do celular. Vagou pelos corredores banhados de sol e foi encontrar os funcionários reunidos no quarto da manicure, ajoelhados em volta não mais da santa, mas de um ídolo vermelho e branco empunhando uma lança. Embora uniformizados com o logo do hotel, haviam regredido à natureza tribal, e já não se comunicavam em língua civilizada. Buscou a esposa, o caçula, as gêmeas nos exóticos bangalôs saídos da imaginação de roteiristas ianques de filme B. O soar de tambores restituiu a esperanças de que a energia tivesse voltado ressuscitando os altofalantes. Mas eram os caribes que exaltavam com cânticos o deus que traziam para fora, para arder à luz do dia, espantar a doença com a morte. Não compreendia se em sua língua bárbara evocavam Obaluaiye, Babalú Aye, ou Oluayê. Foi quando encontrou as quatro covas na areia voltadas para Cuxco e uma quinta, justo para cabê-lo. Cinco e não seis, como as estrelas do hotel. Mas seriam suficientes para aplacar a fúria dos deuses, espantar a peste, e abrir novamente a comunicação para as ilhas.  

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