sábado, 4 de julho de 2020

JUÍZO

Havia uma enfermeira que praticava eutanásia. Trabalhava como técnica de laboratório, agora, num hospital de elite, desses que exigem dois ou três idiomas. Por isso tinha acesso a enfermarias, centros cirúrgicos, U.T.I's e a um cem número de alas. Abreviava existências inoculando bactérias resistentes coletadas em seringas de insulina. Tinha uma bela coleção de patógenos que cultivava numa frasqueira denominada Redenção. Escolhia com terna objetividade os pacientes que mereciam a paz. Suas investigações consistiam em minucioso exame das vidas exibidas nas redes sociais. Família, amizades e relações amorosas ou de trabalho: nada lhe escapava. Livre de preconceitos, não descriminava ninguém por crença, cor, idade. O olhar clínico para fotografias festas, viagens, passeios ao sol.

Dispensava selfies por imprecisas, Via nelas uma insidiosa retratação de si: ali, jamais como se é de fato, mas como o sujeito gostaria de ser, ou pior, como quer que os demais o vejam. Aborrecia-a, particularmente, a imprecisão verbal: de fato não "somos," "estamos." Assim, para ela, valia de fato o agora. Avaliava por isso o que aquela pessoa se tonara, medindo não suas escolhas, mas suas ações: o modo que agia no mundo. Por isso, não caía nos discursos falsos, na esparrela das frases feitas. Não se deixava enganar, por exemplo, pela simulação de felicidade. Simular era o não ser. Tinha também horror a utopias, hipóteses, abstrações. Seus eleitos (era o termo que usava) preenchiam determinados requisitos tabulados no Excel. Às vezes, inspirada, elaborava gráficos pizza.

A "passagem" se dava por meio de uma picadinha macia no pulso esquerdo. Houve casos que recorrera a gotinhas. Não deixava rastros para necrópsia. A causa mortis tinha que ser precisa, insuspeitada. Seu conhecimento da natureza mesquinha dos homens garantia desfilar por corredores com segura imunidade. Enfermidades são fontes perenes de lucro. A existência de bactérias resistentes depõe contra instituições de prestígio. Casos assim eram sempre abafados. Ela própria erguera as paredes de sua casinha na periferia à base de infartos, tumores, queimaduras, uma série de complicações.

No rol de misérias humanas, a morte era o desfecho inevitável. Por que adiá-la em casos comprovados de Hipocrisia, esta patológica desconformidade do ser e seus atos? Liberava (outro termo seu) os portadores desta moléstia da nefasta encenação do que não eram, nem aspiravam a ser. Porque a hipocrisia se manifestava de várias formas: defensores da família adúlteros, patriotas entreguistas, mestiços racistas, moralistas devassos, representantes públicos defensores de interesses privados e pessoais, pastores destituídos de fé, professores descomprometidos e ineptos, intelectuais obtusos, caridosos oportunistas, mecenas mercenários, líderes populistas anti-povo, artistas subversivos domesticados, migrantes xenófobos, progressistas conservadores, liberais do bem alheio, banqueiros filantropos, delinquentes policiais, anarquistas sedentos de poder. 

Não se julgava uma assassina: não lhe pagavam para nada daquilo, não auferia lucro, tampouco nutria por aquelas pessoas qualquer sentimento de rancor ou afeto. Depois de examiná-los meticulosamente chegara ao diagnóstico de um mal não apenas incurável, mas infectocontagioso. Tal moléstia não se fazia visível, contudo, alojava-se no organismo feito um verme, dominando-o. Dali, alastrava-se sub-repticiamente secando-lhe a possibilidade de sentir empatia pelo próximo, pela natureza, animais, valores. Atribuía aos hipócritas a perda do Éden, os horrores de Pandora.  

Os complexos sintomas desta forma universal de moléstia não se podiam medir em exames, mesmo os de alta precisão. Ela, entretanto, aperfeiçoara o diagnóstico reconhecendo que a distorção ou corrupção da virtude era seu principal sintoma. Entenda que diferenciava "virtude" de "moral", esta segunda inconstante, sempre à mercê de tempo, lugar, crenças, ideologias. Comprometido com a verdade e a justiça, seu  rígido código de princípios não admitia qualquer vacilação. Jurara combater doenças, o nocivo, o danoso.

Desde o princípio da pandemia, contudo, não se sentia estranhamente aflitiva. Testou positivo para covid, porém não apresentava sintomas. Assim, foi mandada para casa. Mas todos programas televisivos recrudesciam o sentimento de impotência, pois como confirmara anteriormente, tal veículo era desde muito um destilar de hipocrisias, a começar pelo elogio aos profissionais da saúde, cujos salários - a exceção de médicos e administradores - beiravam à miserabilidade.

Passou a frequentar nesse período a grupos negacionistas de vacina, desfilava em carreatas onde militantes se resguardavam em seus carros, com máscaras, munidos de álcool gel.  Fazia coros no hino nacional expelindo perdigotos. Embora seguisse no corpo a corpo em luta contra a hipocrisia, sentia nesses dias que sua luta era inglória, como se de repente o país tivesse sido tomado por hipócrita e vivesse sem que soubesse seu apocalipse zumbi. 

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