domingo, 12 de julho de 2020

CEGUEIRA

Havia uma mulher que compartilhava a vida com seus inquilinos. Do apartamento herdado pelos pais, restara-lhe 75m2, incluindo um banheiro suficientemente grande para conter barras de apoio nas paredes, a impedir que ela, como tantas velhas, tivesse o fêmur partido numa queda. Se antes ele ocupara todo o andar, sucessivas crises econômicas a obrigaram a ceder metro a metro até restar-lhe esse território de amplas janelas e nenhum horizonte. Ainda assim, tinha que estar agradecida, pois não terminara confinada ao quarto de empregada, resquício das senzalas que as sinhás conservaram até os anos 50 em seus "modernos" apartamentos. Agora, o exíguo espaço lhe servia de depósito de trastes legados pela família quatrocentona que, desde que a mãe se fora há 20 anos, se resumia a ela e nela se extinguiria. O arrendado na subdivisão de seu antigo reino lhe garantia uma sobrevivência modesta, mas confortável. A privacidade que tanto amara, porém, fora-se para sempre. Reduzida a meros quinze centímetros, as paredes remodeladas do antigo edifício não apenas impossibilitaram a privacidade que tanto apreciara, impunham existências opostas à sua.


Justificava a conduta por um trauma antigo, quando testemunhara o assassinato no apartamento ao lado. vigilância achava que seu vizinho tinha matado a esposa. Desde a década de 90 os engenheiros reduziram a espessura das paredes à milímetros. O impasse entre Cancun e Punta Cana nas férias, a troca do carro, a discussão sobre a posição do sofá, deram lugar, depois dos primeiros anos, a acusações mútuas. Foi testemunha involuntária, entre as 7 e 8 quando desligava o rádio do horário da Voz do Brasil, foi testemunha involuntária do apodrecimento marital. Ele gostava de Bossa Nova e ela Maria Bethânia, mas mudou para Ana Carolina enquanto ele permaceia fiel à João Gilberto. Da varanda a fumaça do cigarro fazia contorcionismos até penetrar sua sala, embora ele mentisse para ela que abandonara o vício. A decisão de ter um filho, perturbou-a um mes inteiro. Quando reformaram o quarto, achou que iria morrer com o barulho. A instalação de parede no quarto do bebê. Encontrou-a no corredor, já com a saliente barriga. Ele tinha dobrado de turno e ela se fez atenta para qualquer alerta. Mas a tragédia deu-se fora. Com o bebê, foi-se também o útero. Essas coisas aqui e ali ouve-se dizer. Eles não falara mais do casamento. Até a última semana quando ela acusou-o de jamais ter querido o filho. Toda vez que brigavam ele ligava o João Gilberto, talvez para relaxar.

Isso voltou com toda força quando ressuscitou o picador de gelo, os golpes violentos na pedra. extressado de xingamento, o bater da porta, o espatifar de objetoss na parede de papel. Ela ligou para portaria, ele arrancou o interfone furioso e ela o viu sair voando pela janela e espatifar-se doze andares abaixos, do lado da piscina. Depois desse interregno pediu que se afastasse. O tremor incomum da voz dele o prenuncio de um grito sufocado. o agitar de pernas e braços depois, silencio e uma respiração ofegante. como num dueto reduzido a uníssono. depois o som vazio de desafinado.


Se faziam amor, suas noites eram perpassadas de angústias infinitas de virginal sexagenária.  as paredes deixavam vazar o som vida adentro, uma caixa de ressonância perversa que a obrigava a compartilhar a rotina mais íntima dos vizinhos da esquerda. coabitar, sempre fora uma mulher reservada,  O direito de nascer, 1951, Radio Nacional de paredes mínimas de fina lajota.

Reduzidas a meros 15cm as paredes, o som vazava sala, quarto e cozinha adentro. 
, onde a vida se estendia para além das perspectivas.

relíquias


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