Havia um homem que trabalhava
como escafandrista. Na profundidade serena reparava dutos de petróleo
entre sensíveis corais, anêmonas e arraias. Ao emergir depois de horas, viu-se
sozinho num barco que não sabia pilotar. O rádio emitia estática. Cogitou
piratas, simulação de pânico, abduções extraterrestres. Examinou os mapas. Nem
um sinal do celular.
Sem GPS, o escafandrista era um peixe fora d'água. Achou um sinalizador. Presumiu latitude e longitude, acionou os motores e seguiu. As ondas intranquilas. O céu ameaçava dilúvios. A água escasseando. Sem combustível, dois dias à deriva, foi quando avistou pássaros. Teve que armar o bote, remar para a ilha orando para que não fosse desértica miragem. Foi lançado com força à praia. Estranhas espécies aquáticas de corpo roliço tostavam ao sol. A areia limpíssima provava a inexistência de humanos, ainda assim recorreu aos trastes do bote que se rompera. O sinalizador subiu pipocando faíscas juninas sem obter resposta. Sempre há coqueiros nas ilhas desertas, mas como abri-los? Uma imensa tartaruga lhe lembrou Galápagos. Ruídos noturnos de feras imaginárias ou reais competiam com pesadelos. Exaltava a chama do isqueiro, o canivete suíço, objetos que trouxera do barco: resquícios de alguma civilização.
Os dias em ondas, como o mar. A
fome, o medo e o cansaço, logo, fizeram dele um precário Robinson Crusoé, tais
os rudimentos de seu abrigo, seus instrumentos de pesca, a fogueira mirrada que
vigiava para não extinguir. No rosto despontava uma barba falha. O sol lhe suscitava
desejos desesperados de carne e de amor. Era perturbado por memórias de
mulheres, de homens. Ressentia-se de ter esquecido as orações marteladas pelo
tio beato, embora tenha desenvolvido rituais que faziam a espera possível.
Passadas semanas, começou a duvidar da existência de aviões.
Diferenciar um dia do outro era
possível, e inútil. Improvisou uma lança com ponta talhada de pedra e resolveu
atingir o coração da ilha, já que rochas colossais o impediam de contorná-la.
Sentia-se um personagem de um romance inglês, de um filme vencedor do Oscar, de
um confuso seriado norte-americano.
Andou dias orientado pelo sol. Os
macacos o seguiam com manobras acrobáticas intrépidas. Pássaros de cores e
chilreios vibrantes pareciam encantados. Tucanos aproximavam sem temê-lo. Uma
mãe javali trouxe os filhotes acariciantes. Os bichos desconheciam a ferocidade
de sua espécie. Levou semanas para atravessar a floresta. Uma onça vigiou, à sombra, seu sono junto a fogueira. Uma nuvem de vagalumes siderados simulou frente
aos seus olhos fulgurantes constelações.
A mata, por fim, findou ante um imenso deserto escaldante. Como Colombo
ele tinha descoberto um continente. Se lembrasse o homem que fora, ele o
tomaria para si consagrando seu nome.
No ciclo de anos tentou diversas
incursões, chegando cada vez mais distante no mar de areia. Desenterrou o que
lhe pareceu ser um relógio de sol. Talhado em rocha, trazia números romanos,
uma indecifrável inscrição que julgou ser latim. Mas de que servia marcar as horas na
solidão inolvidável dos dias? Numa de suas expedições pensou ter avistado um
farol, um camelo, um menino. Sentia uma falta absurda do soar da voz humana, de
cigarros, de vodca, de coca-cola.
Na derradeira incursão - que
encerraria seu ciclo lunar para uma existência nova, - encontrou uma forma
triangular soterrada na areia. Quanto mais a escavava mais se ampliava em
volume, extensão, até que desistiu ao reconhecer o topo de uma pirâmide. Peregrinando
insano pelo deserto, a vista turva, ele
se erguia para se precipitar em nova queda. No meio do delírio: era aquela
grande estátua de Buda, a face serena do Cristo Redentor? Despertou com uma
pontada de dor abaixo da costela, não no abdómen. Agradeceu a Deus ter perdido
o apêndice na adolescência, mas vagando em círculos daquele inferno escaldante
repassou todo compêndio de xingamentos conhecidos e inaugurou novas formas de
proferir obscenidades.
Corais, baleias, crustáceos,
águas vivas eram ilusões de escafandrista. O sol intenso lhe queimava as
retinas por detrás das pálpebras, nenhuma palmeira para gritar terra a vista.
Sentiu que morria e se entregou aos céus. Despertou sendo puxado por cordas
sobre uma espécie de liteira trançada à mão. Viu diante de si uma mulher que
ora o arrastava, ora torcia um pano com água em sua boca. Sabia que não estava
morto, porque o corpo ardia queimaduras de segundo grau. Se morto, não estava mais
no inferno, que não são os outros, mas a solidão. Quando já podia concatenar o
pensamento, perguntou a mulher quem era, de onde vinha, como o achara.
Ela não podia ou não sabia como lhe
responder. Um tanto perplexa contemplava fascinada o movimento de seus lábios,
a língua húmida, o fundo profundo de sua garganta, todo o conjunto articulado na
emissão daqueles indizíveis sons. Contudo, respondia com gestos que, embora
incompreensíveis, apontava um desejo de comunicação.
Ao longo da existência comum, ambos
aprenderiam a decifrarem-se, porque no princípio era o mar; e o escafandrista
repousava nas águas. Por hora eram ele e ela, sem nudez ou pecado. E como ela não pudesse nomeá-lo ou a si
mesma, ele a chamou de Eva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário