sábado, 4 de julho de 2020

CIRCE


Havia um homem que trabalhava como escafandrista. Na profundidade serena reparava dutos de petróleo entre sensíveis corais, anêmonas e arraias. Ao emergir depois de horas, viu-se sozinho num barco que não sabia pilotar. O rádio emitia estática. Cogitou piratas, simulação de pânico, abduções extraterrestres. Examinou os mapas. Nem um sinal do celular.

Sem GPS, o escafandrista era um peixe fora d'água. Achou um sinalizador. Presumiu latitude e longitude, acionou os motores e seguiu. As ondas intranquilas. O céu ameaçava dilúvios. A água escasseando. Sem combustível, dois dias à deriva, foi quando avistou pássaros. Teve que armar o bote, remar para a ilha orando para que não fosse desértica miragem. Foi lançado com força à praia. Estranhas espécies aquáticas de corpo roliço tostavam ao sol. A areia limpíssima provava a inexistência de humanos, ainda assim recorreu aos trastes do bote que se rompera. O sinalizador subiu pipocando faíscas juninas sem obter resposta. Sempre há coqueiros nas ilhas desertas, mas como abri-los? Uma imensa tartaruga lhe lembrou Galápagos. Ruídos noturnos de feras imaginárias ou reais competiam com pesadelos. Exaltava a chama do isqueiro, o canivete suíço, objetos que trouxera do barco: resquícios de alguma civilização. 

Os dias em ondas, como o mar. A fome, o medo e o cansaço, logo, fizeram dele um precário Robinson Crusoé, tais os rudimentos de seu abrigo, seus instrumentos de pesca, a fogueira mirrada que vigiava para não extinguir. No rosto despontava uma barba falha. O sol lhe suscitava desejos desesperados de carne e de amor. Era perturbado por memórias de mulheres, de homens. Ressentia-se de ter esquecido as orações marteladas pelo tio beato, embora tenha desenvolvido rituais que faziam a espera possível. Passadas semanas, começou a duvidar da existência de aviões.

Diferenciar um dia do outro era possível, e inútil. Improvisou uma lança com ponta talhada de pedra e resolveu atingir o coração da ilha, já que rochas colossais o impediam de contorná-la. Sentia-se um personagem de um romance inglês, de um filme vencedor do Oscar, de um confuso seriado norte-americano.

Andou dias orientado pelo sol. Os macacos o seguiam com manobras acrobáticas intrépidas. Pássaros de cores e chilreios vibrantes pareciam encantados. Tucanos aproximavam sem temê-lo. Uma mãe javali trouxe os filhotes acariciantes. Os bichos desconheciam a ferocidade de sua espécie. Levou semanas para atravessar a floresta. Uma onça vigiou, à sombra, seu sono junto a fogueira. Uma nuvem de vagalumes siderados simulou frente aos seus olhos fulgurantes constelações.  A mata, por fim, findou ante um imenso deserto escaldante. Como Colombo ele tinha descoberto um continente. Se lembrasse o homem que fora, ele o tomaria para si consagrando seu nome.

No ciclo de anos tentou diversas incursões, chegando cada vez mais distante no mar de areia. Desenterrou o que lhe pareceu ser um relógio de sol. Talhado em rocha, trazia números romanos, uma indecifrável inscrição que julgou ser latim. Mas de que servia marcar as horas na solidão inolvidável dos dias? Numa de suas expedições pensou ter avistado um farol, um camelo, um menino. Sentia uma falta absurda do soar da voz humana, de cigarros, de vodca, de coca-cola.

Na derradeira incursão - que encerraria seu ciclo lunar para uma existência nova, - encontrou uma forma triangular soterrada na areia. Quanto mais a escavava mais se ampliava em volume, extensão, até que desistiu ao reconhecer o topo de uma pirâmide. Peregrinando insano pelo deserto, a vista turva,  ele se erguia para se precipitar em nova queda. No meio do delírio: era aquela grande estátua de Buda, a face serena do Cristo Redentor? Despertou com uma pontada de dor abaixo da costela, não no abdómen. Agradeceu a Deus ter perdido o apêndice na adolescência, mas vagando em círculos daquele inferno escaldante repassou todo compêndio de xingamentos conhecidos e inaugurou novas formas de proferir obscenidades.

Corais, baleias, crustáceos, águas vivas eram ilusões de escafandrista. O sol intenso lhe queimava as retinas por detrás das pálpebras, nenhuma palmeira para gritar terra a vista. Sentiu que morria e se entregou aos céus. Despertou sendo puxado por cordas sobre uma espécie de liteira trançada à mão. Viu diante de si uma mulher que ora o arrastava, ora torcia um pano com água em sua boca. Sabia que não estava morto, porque o corpo ardia queimaduras de segundo grau. Se morto, não estava mais no inferno, que não são os outros, mas a solidão. Quando já podia concatenar o pensamento, perguntou a mulher quem era, de onde vinha, como o achara.

Ela não podia ou não sabia como lhe responder. Um tanto perplexa contemplava fascinada o movimento de seus lábios, a língua húmida, o fundo profundo de sua garganta, todo o conjunto articulado na emissão daqueles indizíveis sons. Contudo, respondia com gestos que, embora incompreensíveis, apontava um desejo de comunicação.

Ao longo da existência comum, ambos aprenderiam a decifrarem-se, porque no princípio era o mar; e o escafandrista repousava nas águas. Por hora eram ele e ela, sem nudez ou pecado.  E como ela não pudesse nomeá-lo ou a si mesma, ele a chamou de Eva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário