Havia uma mulher que afirmava ter nascido num corpo alienígena. O seu era um outro, invisível a olho nu. Soterrada numa forma masculina estava a mulher que fatalmente era. De alguma forma, contudo, antes de isso se revelar inequivocamente para si, evidenciava-se no condenável olhar dos outros.
Condenava-a o olhar dos outros, cujo crime
evidenciava-se aos outros, pelos inevitáveis
denunciados nos trejeitos, no fino timbre da voz, no movimentos sinuosos das mãos. Sua delicadeza atiçava desejos aprisionados. Como um cisco, uma farpa, um corpo estranho e incômodo que está no outro e dói em nós, atraia cáfilas de machucadores. Seu problema não era local, mas geográfico, deslocava consigo para onde fosse. A hostilidade do pai em casa, as surras aos urros no colégio, a saliência da cúria da igreja, a violação a caminho do rio, no campo de futebol. Sua vida pontuada por fugas: do interior, dos vigilantes noturnos, dos fregueses violentos, do amante casado, do vício, do amor, daquele Deus que a negara três vezes. Agora retornava reconstituída: imagem e semelhança de si. Seu nome, ela quem lhe dera, cívil e não de batismo. Grace era sua graça. Vinha para enterrar a tia-avó que a criara antes que se recriasse a si mesma. Os hormônios que trazia na bolsa davam o arremate ao conjunto de intervenções a bisturi, botox, próteses de silicone, e garantiam que o reflexo externo correspondesse ao interior. A cerimônia no cemitério pobre, os irmãos não ousavam se aproximar. O caixão branco, de virgem, a tia descia em glória com o lábio leporino que a impedira de casar. De olhos baixos, cravava as longas unhas no braço. Dissimulava reza, não daria o gosto de vê-la chorar. Cumpridos os ritos, pagou o pároco vesgo que zombava dela quando menina. Estranho isso, na sua memória, apenas vestidinhos imaginários de chita, como quem traveste-se de nova história.
Condenava-a o olhar dos outros, cujo crime
evidenciava-se aos outros, pelos inevitáveis
denunciados nos trejeitos, no fino timbre da voz, no movimentos sinuosos das mãos. Sua delicadeza atiçava desejos aprisionados. Como um cisco, uma farpa, um corpo estranho e incômodo que está no outro e dói em nós, atraia cáfilas de machucadores. Seu problema não era local, mas geográfico, deslocava consigo para onde fosse. A hostilidade do pai em casa, as surras aos urros no colégio, a saliência da cúria da igreja, a violação a caminho do rio, no campo de futebol. Sua vida pontuada por fugas: do interior, dos vigilantes noturnos, dos fregueses violentos, do amante casado, do vício, do amor, daquele Deus que a negara três vezes. Agora retornava reconstituída: imagem e semelhança de si. Seu nome, ela quem lhe dera, cívil e não de batismo. Grace era sua graça. Vinha para enterrar a tia-avó que a criara antes que se recriasse a si mesma. Os hormônios que trazia na bolsa davam o arremate ao conjunto de intervenções a bisturi, botox, próteses de silicone, e garantiam que o reflexo externo correspondesse ao interior. A cerimônia no cemitério pobre, os irmãos não ousavam se aproximar. O caixão branco, de virgem, a tia descia em glória com o lábio leporino que a impedira de casar. De olhos baixos, cravava as longas unhas no braço. Dissimulava reza, não daria o gosto de vê-la chorar. Cumpridos os ritos, pagou o pároco vesgo que zombava dela quando menina. Estranho isso, na sua memória, apenas vestidinhos imaginários de chita, como quem traveste-se de nova história.
A cidadezinha a quilometros do aeroporto, saindo agora, às 23, na capital. Dispensou o convite das primas envelhecidas, embarcou no ônibus e partiu, mas não foi muito longe. O rádio anunciava o breakdown, a ponte fechada pelo coronavírus. Desembarcou do ônibus sob o olhar de uns caraminguás, e veio arrastando à mala da rodovia à estradinha de barro sem vacilar nos saltos altos. Uns vendedores de milho, um cão estendido ao ocaso. Entrou num boteco e lhe serviram uma água da torneira. Informou se da direção e entrou na rua principal sob os olhares das casas, de uma vendinha, um salão de igreja caiada de verde, um posto de saúde aos pedaços, uma porta de garagem escrita correios, a pequena agência do Banco do Brasil.
Ilhada nesse extremo nada, hospedara se numa pensão e o dinheiro minguava. Na sexta prometeram no telefone, abririam a agência para saques. A tevê restrita a um canal. Concurso as deusas da Beleza, cobras entrelaçadas em cópula no mundo animal feito bastão de Eustaquio. A farmácia sem seringas e agulha. nao podia repor seus hormonios trazidos na frasqueira. O posto fechado desde a expulsao do medico cubano. Os pelos retornando na cara. A voz recuperando o grave. Nessa manha, do café nem o cafe, gostava à cevada e cuspe. Os olhares inóspitos de faroeste. Os frangos se embriagam, atiçam uns aos outros, há sempre um armado de faca. Ela roubou a faca de pao e leva a consigo. Cobriu o azul da barba com o xale, a espera da abertura da estrada, quitar a pensão e partir, antes da eclosão de Hyde, seu inimigo.
Acordou parada no meio do nada.
gênero de pessoa que era. Era daquelas que transcendem, nao permanecem. Havia uma ponte, era daquelas que nao querem, necessitam atravessar. O que era estar presa no meio do nada, para alguém confinada num corpo estranho, inimigo. Presa numa estrada no meio do nada, a pensão caiada de azul. A fobia de voo, a longa jornada de volta. O enterro da tia avó que a criara. 30 horas Para-Sao Paulo. Era diretora numa escola. Nesse lugar matavam gente. A ponte interditada. Ela permanecia ilhada nesse extremo nada. Hospedara se numa pensão e o dinheiro minguava. Na sexta prometeram no telefone, abririam a agência para saques. A tevê restrita a um canal. Concurso as deusas da Beleza, cobras entrelaçadas em cópula no mundo animal feito bastão de Eustaquio. A farmácia sem seringas e agura. nao podia repor seus hormonios. O posto fechado desde a expulsao do medico cubanos. Os pelos retornando na cara. A voz recuperando o grave. Os olhares inóspitos de faroeste. Cobria o rosto com o xale, a espera da abertura da estrada, quitar a pensão e partir, antes da eclosão de Hyde, seu inimigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário