domingo, 19 de julho de 2020

TRAMA


TRAMA

Havia uma mulher que perdera a memória. Confinada no pequeno apartamento, levava o dia a regar plantas, alimentar o casal de periquitos, acompanhar sua novela preferida. Seu marido chegava tarde, impacientava-se facilmente, reservando-se ao ato protocolar de medicá-la.

O passado em branco, ele dizia, era um mal menor diante das convulsões diárias que a cirurgia de epilepsia extirpara por completo. A saliente cicatriz recoberta pelos longos cabelos não a deixava duvidar. O bom é que não sentia saudades dos pais, da infância, dos anos de namoro ou da felicidade matrimonial. Ausentes todas as memórias, lamentava não ter escapado do incêndio um porta retrato que fosse, seu lindo vestido de noiva que tinha ardido em chamas. Então rezava, tinha um vasto repertório de orações.

Por que o presente não bastava, vivia com intensidade o lacrimoso drama de Amarguras do coração. Carmen Laura largara o convento para viver seu amor impossível com Dilhermando Montenegro. Mas sua terrível sogra caolha mandara sabotar o carro aos oito meses de gravidez. A criança nascera linda e saudável, contudo, devido a pancada, Carmen se esquecera do amado e da filha. A sogra a sequestrara, então, forjando-lhe uma nova existência com um outro que fingia ser seu marido. Sua filha crescia agora num orfanato dirigido por freiras carmelitas, replicando o destino da mãe. Dilhermando, inconsolável em sua viuvez, a tudo ignorava. Pensara em se matar, mas devoto à Nossa Senhora das Candeias, abandonou a carreira de escritor e agora se arriscava no Corpo de Bombeiros, onde ingressara na esperança de que um incêndio fatal desse fim à sua vida.

Ela tinha uma alma a um só tempo trágica e fantasiosa. Tudo que ouvia lhe parecia tão real que chegava a antecipar as falas, reconhecer lugares, o desfecho de cenas. Ai podar suas comigo-ninguem-pode com uma tesoura enferrujada que despencara do andar de cima, as lágrimas corriam desidratando-a enquanto assobiava Pixinguinha. Solidários, Rose e Jack mais se agitavam na gaiola.

Se a cada dia mais romântica, o marido assumia uma frieza glacial. Como tinham se conhecido? Onde o primeiro beijo? A data do casamento? Tudo o irritava; e pior: era surdo para os sofrimentos de Carmen Laura. Calava a esposa com comprimidos, e desprezava Armaguras do coração. - Mas quem ainda escuta radionovelas?

Ela adormecia no sofá e não o via sair trancando a porta. Nem a comida deixava que fizesse. O cardápio, sempre o mesmo. As quentinhas lhe davam indigestão.

As viradas surpreendentes de Amarguras contrastavam com sua vida sem emoção. Um incêndio no 809, Dilhermando acionado. O destino aprontando das suas, o unia de novo à Carmen, para separá-los novamente quando ambos desmaiaram asfixiados entre chamas. Desperto, vagou à procura da amada em cada ala do hospital. Pressionando a mãe, esta por fim confessou que mantinha Carmen em cativeiro, mas, quando ia revelar o nome do cúmplice, sofreu uma síncope que lhe paralisou metade do corpo, impedindo-a de falar. O capítulo terminava com Dilhermando abandonando os bombeiros e voltando a escrever. Precisava não só localizar Carmen, que perdera a memória, mas alertá-la de que seu "esposo" era, na verdade, um assassino.

O comprimido dado pelo marido, agora ela cuspia na pia. Rose e Jack estavam presos, mas juntos na gaiola. Já tentara puxar assunto com os vizinhos, que a ignoravam. Não sentia conforto algum no coração, cada dia mais amargurado.

A voz de barítono de Dilhermando lhe atiçava desejos pouco cristãos. Agora que dona Fernanda não lhe pagava, o sujeito tentaria se livrar das provas de seus crimes. Por isso, usando de seu talento literário, o fiel Dilhermando se empregou numa rádio e passou a produzir Amarguras do coração. Tinha ele esperanças de que a pobre Carmen reconhecesse sua história, vencendo as mentiras e as drogas ministradas por seu algoz. Rogava que, por mais difícil que fosse, acreditasse no amor. "Resgatei nossa filhinha do orfanato das Carmelitas, estamos esperando por você. Não deixe que ele a mate."

As cenas dos próximos capítulos prometiam emoções avassaladoras. A mocinha se deixaria enganar mais uma vez? Ficaria à espera de seu eterno amor?

As lâmpadas quebradas emitiram faíscas quando ele tocou o interruptor. A mulher não atendeu ao seu chamado. Não era possível mais viver assim!  A rotina diária de recolher os fósforos, de trancar a porta, os vizinhos alertados de um possível surto. Não a amava, mas quem poderia condená-lo?

Rose e Jack, livres da gaiola, espreitavam congelados sobre o rádio pré-histórico: se girasse o botão, um samba-canção, de Dolores Duran, As rosas não falam, de Cartola? As plantas nos vasinhos tinham sido cortadas até a raiz. Meu Deus, ele pensou, antes da picada nas costas e do reclame das mulheres do sabonete Araxá: "onde ela achou uma tesoura de podar?" 

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