quinta-feira, 2 de julho de 2020

DANAE

Havia uma mulher que estava certa de que havia um intruso em seu apartamento. Nunca o vira, mas compartilhava com ele sua vida. Os vestigios eram sutis, mas inequívocos. Uma torneira pingando, cujo registro lembrara de fechar. O alvoroço de formigas sobre grãos de açúcar jamais derramados. Restos de comida no lixinho da pia. 

Às vezes se distraía: a porta da geladeira aberta, a janela da lavanderia destrancada, o botão da máquina no volume alto de água. Concluiu que o excitava esse jogo, que queria ser descoberto. Passou a elaborar estratégias para apanhá-lo. Sabia que se deixasse o leite fechado ele não o tocaria, então quebrava o lacre, media o volume.  Ele não caía, como ciente de que cascas de pão são armadilhas para passarinho. Ele era uma ave de rapina. 

Ele seguia entortando quadros na parede, derrubava ímãs da geladeira, mudava a posição de livros, bloqueava com múltiplas tentativas sua senha do celular.

Resolveu instalar detectores de movimento com alarme. A diarista que vinha às terças levava sustos brutais, mas ele passava incólume. Seu prazer era inquietá-la retirando objetos do lugar, vê-la correndo feito louca, devolvê-los horas depois e se deleitar com sua perplexidade. Aqueles ridículos três pulinhos de São Longuinho.

Ela era incapaz de crer na existência de poltergeist, essa coisa de signos, orixás. A série Atividade Paranormal a entediava. Na sua cabeça, o intruso era real, humano, dez centimetros mais alto que ela: calculava pela desarrumação dos lençóis da cama. Era certamente um homem, pela tampa da privada que nunca lembrava de baixar.

Em março, quando uma nova conta exigia quase o pernoite no escritório, mais se evidenciou sua insatisfação. Parecia se ressentir de que tivesse uma vida longe dele, carreira, amigos. Misturava roupas de cor diferente na máquina ou as deixava molhar no varal. Entupia de propósito a pia da cozinha. Um dia, obrigou-a a sair às pressas da agência. O síndico exasperado ao telefone pedindo autorização para entrar. Os detectores acionados, indicando incêndio. Tudo não passara de um alarme falso. O técnico bonitão não conseguia explicar a falha do sistema.

Isso de fato a aborreceu. Ele pareceu compreender que se excedera, dando-lhe uma trégua de três semanas, nas quais tudo permaneceu em seu lugar, sem sumiço de tapetes antiderrapantes, marcas de pizza no sofá, cheiro de fritura na cozinha. 

Ausente, ela pode deixar de estar sempre maquiada, trocar a camisa de botão e as calcinhas vermelhas por um moletom surrado, comer sorvete diretamente do bote sem medo de ser julgada, de ter que ter a depilação em dia ou obrigação de estar sempre sexy.


O sumiço do vibrador anunciou de modo ofensivo seu retorno. Ela ligou para o técnico que tinha achado gato para instalar câmeras.

Ele entendeu aquilo como uma declaração de guerra. Ela se pegava com o técnico másculo no sofá? Ele descia a temperatura do ar condicionado. Ela tratava livremente de intimidades com as amigas nas videochamadas? Ele sumiu com o aparelho obrigando-a a comprar um novo. Verificadas as câmeras, era sorrateiro, movia-se nos pontos cegos do sistema de vigilância. Não se deixava capturar. 

Ela se cansara daquilo. Doou os mantimentos que tinha, desligou os eletrônicos da casa, rascunhou um bilhete que pregou na geladeira com um ímã. Esvaziou, então, os armários de trajes de banho e foi viajar com os amigos e o namorado barbudo em merecidas férias.

Encontrou a casa deserta ao voltar. Ele não se preocupara em passar um pano nos móveis. No vão do sofá, ela encontrou o celular "perdido". No ladrilho rente à geladeira, que ele deixou desligada, um bilhete escrito: "Fui."


- As pequenas desordens que corrompem, que subvertem a mesmice dos dias, são também as que conferem mais concretude à existência. Faz com que, por mais incovenientes que pareçam, impulsonem mudanças, façam a vida de repente, mais real. Você entende? - Perguntou a terapeuta. Ela meneou a cabeça. 

- Agora me fale um pouco mais daquela fantasia que tinha aos sete anos. Esse amigo imaginário tinha nome?

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