sábado, 25 de julho de 2020

LOOPING

Havia um homem que sofria de narcolepsia. Qualquer emoção mais intensa era nocauteado por um sono violento que podia durar minutos ou horas. 

Recluso, metódico e de hábitos arraigados, ocupava uma quitenete assimétrica de 60m2. Para viver, traduzia livros técnicos: purificadores de água,  aspiradores robôs, aquecedores elétricos. Os arquivos chegavam em pdf editável e eram despachados no mesmo email. Antes da covid-19, já exercia solitário isolamento social. A adoção do Estoicismo fizera sua existência suportável. Defendia-se do caos do mundo com a apatia: o nirvana alcançado por vias da indiferença ao próximo. Por se manter a distância, amava só a si mesmo; por isso há anos não tinha crises.

A pandemia não mudara em nada sua rotina. O prédio ruidoso o aborrecia sem arranhar sua existência invitro; até que houve a mudança do casal para o apartamento ao lado.

O sofá, as estranhas luminárias,  a mesinha de acrílico, o saco de boxear. Assistiu-os chegar pelo olho mágico. O vizinho era grande, todo braços e músculos. Ela, magra, de franhinha sexy: pareciam recém-saídos de um reality show. Giraram a chave. Bateram a porta, ele achou que voltaria ao silêncio, pré-reforma e marteladas, troca de fios e papéis de parede. Dali a dias: seu inferno pessoal.

A discussão começou às treze horas. O tom alto, não aos berros, para mais se fazerem ouvir. Ela tinha que se fazer respeitar, flertando com todos assim! Ele era trouxa? Ela retrucou que ele estava louco. Drogado, tinha ciúmes, inventava complôs. Não era boba, não aceitaria mais isso. Ligaria para o pai. 

As paredes originais alteradas na década de 80 para espessura de nove cm não davam conta de barrar o som. Subitamente, ele, desertor da humanidade, se via exposto. O homem ameaçou esganá-la, ouviu-a recuar, o homem correu e esmurrou forte a parede. O quadro da mãe tremeu no prego, e ele caiu no sono.

Acordou depois de horas no tapete. A sala, no escuro. Nenhum ruído que não o som abafado da novela nos vizinhos. Abriu a porta, o corredor vazio. Certamente a polícia partira há horas. Não queria pensar na briga, amanhã relato viria de burburinhos no andar. O trabalho atrasado sobre a mesa, tomou o café e o continuou.

No dia seguinte, nem um ruído indistinto no andar. Estranhou a calmaria. A monotonia da quarentena exigia que se vivesse a vida alheia. Era cedo. Almoçava religiosamente ao meio dia. Às treze, começou a discussão. 

Não era tolo. Ela flertando. Estava louco? Chamaria o pai. O horror daquilo, o atingiu em cheio: não era nova discussão, mas a mesma. Ele tivera uma premonição daquilo. Um déjà vu. O outro ameaçou esganá-la. Ela se recostou na parede. O soco dele estremeceu o quadro. Agora a pegara pelo pescoço, e ela implorava pela vida. Precisava ligar à portaria. Estendeu a mão para alcançar o interfone, mas lhe veio o sono, caiu.

Despertou na madrugada. O prédio em frente imóvel. A impressão de estar diante de uma fotografia traída pela intermitente luz de um abajur. Nenhum carro na madrugada. O vírus pora o mundo em suspensão. 

O andar calado. Se tivesse havido morte, ainda aquele silêncio? A louça já seca no escorredor, ele não a guardara. Apanhou um comprimido vencido, tomou um e se deitou.

No email, chegaram novos trabalhos. Em dez anos, jamais atrasara uma tradução. O armário repleto de latas. Fizera estoque para um mês. Preparou uma sopa. Metade foi para geladeira. Então ouviu um princípio de discussão. Eram treze, no relógio. A sobreveio a vertigem, era só questão de segundos: lançou-se no sofá e desmaiou.

Acordou e não era noite. Havia uma movimentação tranquila no andar. Com um copo recostado na parede, os vizinhos pareciam mortos. Apanhou o interfone. A campainha soou abafada e, de repente: alô. Era a vizinha. Ele pôs o fone no gancho. Estaria enlouquecendo?

A vida social desde cedo em escombros. Um rol de especialistas e o veredito unânime: o hipotálamo falhava no processar das emoções. A decisão acertada do litígio com a vida, do exílio, da segura solidão. Tudo que não servia para nada se o destino final era enlouquecer! Não, decidiu, mais nenhum exame. Mas e se não fosse isso? Se zombassem dele? Impossível: os anos renovaram a vizinhança, nenhuma intimidade com ninguém do andar. 

Todos os dias amanheciam iguais na quarentena. Dispôs a cadeira diante da parede e esperou. A discussão começou pontual às treze horas.

Apanhou o interfone e ligou para portaria. Alô, disse o homem. Estão se matando 706, sussurrou tenso. Não consigo escutá-lo, repetiu o porteiro Poderia falar mais alto?! O homem esmurrou a parede. A mulher não conseguia gritar. Quer que eu mande alguém ai? Disse o porteiro. Alguém em sua casa? Não, ia dizer, mas teve medo e desmaiou. 

Talvez fosse o vírus. Tinha sido infectado e não sabia. Talvez estivesse em coma, entubado em decúbito prono. Feito desfecho de filme ruim, nada mais que um sonho. Beliscou-se, ciente de que, sonhando, sentiria o beliscão. 

Faltando cinco minutos, colocou a cadeira e esperou. E se ligasse agora, alertando-a?

Alô. Ele disse. E antes que pudesse dizer: fuja daí! Ele vai te matar! Ela respondeu: Não posso falar agora. Desligou. Flertando no prédio? Acha que sou trouxa? Esbravejou o marido do outro lado, ainda mais violento. Levou as duas mãos, rápido, no ouvido e desabou.

Houve prenúncios da desordem. O salto mortal do rapaz do prédio em frente. A névoa para desratização que tomou o corredor penetrando reentrâncias, botando pó na superfície dos móveis. O sumiço do anão anunciado em cartazes de procura-se. Tais eventos precederam a entrada naquele looping temporal, como dissociá-los?

O instinto já gasto de autopreservação emitia inequívocos sinais de "fuja para a floresta." Uma parte aleijada dentro de si, sussurrava para que salvasse a moça. Como um centauro indeciso entre suas duas naturezas, não procurava mais explicações, mas um sentido para aquilo. Sabia, por exemplo, que a ação de ignorar não afastaria o problema, que o que sucedesse aos outros, também o atingiria. 


Sentado diante da parede esperou. A poltrona inclinada, ao menos se livraria dos hematomas, do mal jeito das quedas. Havia retirado os quadros, afastado móveis, a parede nua como uma tela de projeção, um teatro. Se empenhado, era possivel ver o desenrolar da cena, precisa, sem variações: "somos joguetes do destino lhe diria Shakespeare, Hamlet, ou ambos. 

O soco na parede, depois a enforcá-la. Este era o novo normal. A gente se adapta a tudo. Esperou que ela sufocasse, mas de repente o marido a largou. Dava-lhe tapinhas no rosto e implorava, acorde. Então num solavanco ela tinha um acesso de tosse. E vivia. Comovido, desmaiou. 

Às 15h20, de pé, era tempo de botar ordem na vida. Reduziu à metade do tempo habitual à tradução do manual de aquededor a gás e  à de um minifrigobar. Colocou roupas na máquina, recolheu o lixo da casa e aventurou-se, paramentado de escafandrista, até à lixeira do andar. De volta à cozinha, seguiu passo a passo às instruções que traduzira para elaboração do mais perfeito café feito numa máquina italiana, e sentado frente à parede cogitou ligar para o moça.

As três tentativas anteriores, era sempre o marido atendia. Fingiu duas vezes ser um entregador de pizza equivocado com o número. Desligar, como fizera a primeira vez, poderia desencadear uma tragédia. Ouvia-o socar com energia o saco de areia.

No espelho do banheiro, um homem magro, alto e pouco atlético. No confronto com o outro, a ameaça do soco já o poria para dormir. No tempo do dr. Freud, para o seu problema só cocaína. Por isso, apreciava tanto tomar café. Quem sabe um dia, ao acaso, não daria com o grão da cura.

As 13h06 ele socava a parede. Às 13h12 ela sobrevivia. Depois, ele engendrava um monólogo que evocava perdão, justificava-se com a pressão que sofre um delegado, a morte recente do pai. Beber era uma forma de sobreviver à pandemia. Não compreendia? Ele só batia por que amava. Ele pedia um abraço, ela cedia, ele forçava um beijo, depois sexo. Ele chegava até aqui e desmaiava. Cada não dela o mortificava. Depois do terceiro pare, reiniciavam os tapas. Ela evocava Deus. Era o seu limite.

Antes das treze, já estava furioso. Impossível que os apartamentos em volta ninguém reagisse. Sentia-se impotente, indignado, profundamente triste. E com medo: da dor, da morte, do desamparo da justiça. Temia tocar a campainha e desmaiar de espectativa. Não tinha amigos, provas, nada. Se enviasse à polícia a mensagem antes da agressão, que faria com ele essa polícia que protege os seus? Se contasse a alguém, o estranho, quem acreditaria nele? Os intensos sentimentos tomando-o. Cada dia suportava os mais intensos sem adormecer.

Com os dias, venceu a longa sequência do estupro. Pelo celular ela tentava falar com uma amiga. Ele a flagrava e, ameçando-a, destruía o aparelho. Depois a algemava, no sofá,  apoiava o pé na sua cabeça se vangloriando em voz alta. Então ela encontrava a arma. E se ouviam três tiros. Neste instante ele desmaiava. Impossível saber o desfecho. Morria ele, ela, ambos? Me espere, dizia consigo. As traduções todas por fazer. Não tinha cabeça para aquilo. Como foi possível viver tanto tempo sem sentir?

De repente, quando tudo fazia sentido, o casal sumiu. Ligava o interfone para ninguém atender. Um dor insuportável se apossou dele. Dormia e despertava em ciclos de minutos. Sua mãe ligou de Londrina. Estava bem? Ele tentou simular a apatia, a frieza antiga, mas já não podia se conter: disse que a amava, e ao pai, queria conhecer os sobrinhos, sentia falta do irmão. Com alegria, viram-se na câmera, espantados todos de não o verem dormir. E prometeram se reencontrar em breve, o pai se recuperava agora em casa. Tudo daria certo. 


Estava no banho quando ouviu as vozes exaltadas. Então voltaram. Nao cabia em si de tão feliz. Aquela guerra conjugal o apaziguara. Terminava de calçar os sapatos quando ouviu o primeiro tiro,  já havia girado a chave quando soaram o segundo, o terceiro e fez silêncio. Então diante da porta, no corredor,  tocou freneticamente a campainha sem desmaiar. Quem abriu foi ele, ela estava logo atrás. Com toda a força que tinha desferiu-lhe um soco que o fez recuar. Ele estendeu a mão:  Vamos! E um tanto atônita, ela foi com ele. Entraram no elevador, ele premeu o térreo.  A luz fluorescente piscante tornava tudo menos real. 

Acho que quebrei minha mão ao bater no seu marido.

Ele não é o meu marido.  É um ator.


Quer dizer que vocês estavam encenando todo tempo?

Com transição ao vivo para cinco países. Você não sabia?

Não.

Ouviu os tiros? Ele podia ter te matado.

Eu sei, disse. E aquele engano era de repente, fascinante. E você sabe quem sobrevive no final?

Acho que nós dois, disse sorrindo. E apertou o botão de volta para o andar.



versão 1

LOOPING

Havia um homem que sofria de narcolepsia. Qualquer emoção mais intensa era nocauteado por um sono violento que podia durar minutos ou horas. 

Tornou-se recluso, metódico e de hábitos arraigados. Refugira-se numa quitenete assimétrica legada pelos pais, sua torre de marfim erguida nos anos 50,  de 60m2. Para viver, traduzia livros técnicos: purificadores de água,  aspiradores robôs, aquecedores elétricos. Os arquivos chegavam em pdf editável e eram despachados no mesmo email. Antes da covid-19, já exercia sem dor o isolamento social. A descoberta dos estóicos fizera sua existência suportável. Defendia-se da instabilidade constante do mundo com o escudo da apatia. Assim, teria alcançado o nirvana por vias da indiferença ao próximo. Por se manter a distância, amava só a si mesmo; por isso há anos não tinha crises.



A pandemia não mudara em nada sua rotina. O prédio ruidoso o aborrecia sem arranhar sua existência invitro; até a mudança de um casal para o apartamento ao lado estilhaça-la.


O sofá, as estranhas luminárias,  a mesinha de acrílico, o saco de boxear. Assistiu-os chegar pelo olho mágico. O vizinho era grande, todo braços e músculos. Ela, magra, de franhinha sexy: pareciam recém-saídos de um reality show. Giraram a chave. Bateram a porta, ele achou que voltaria ao silêncio, pré-reforma e marteladas, troca de fios e papéis de parede. Dali a dias: seu inferno pessoal.

A discussão começou às treze. O tom alto, não aos berros, para mais se fazerem ouvir. Ela tinha que se fazer respeitar, flertando com todos assim! Ele era trouxa? Ela retrucou que estava louco. Drogado, tinha ciúmes, inventava complôs. Não era boba, não aceitaria mais isso. Ligaria para o pai. 

As paredes originais substituídas na década de 80 por placas de dez cm não davam conta de barrar o som. Subitamente, ele, a quem não atingia a fúria do mundo, se via exposto. O homem ameaçou esganá-la, ouviu-a recuar, o homem correu e esmurrou forte a parede. O quadro da mãe tremeu no prego, e ele caiu no sono.

Acordou horas depois no tapete. A sala no escuro. Nenhum barulho que não fosse o som abafado da novela nos vizinhos. Abriu a porta, o corredor vazio. Certamente a polícia partira há muitas horas. Não queria pensar no crime, amanhã os burburinhos no corredor. O trabalho atrasado sobre a mesa, tomou o café e o continuou.

No dia seguinte, nem um ruído indistinto no andar. Estranhou a calmaria. A monotonia da quarentena exigia que se vivesse a vida alheia. Era cedo. Almoçava religiosamente as 12. Às 13h, reiniciou-se a discussão. 

Não era tolo. Ela flertando. Estava louco? Chamaria o pai. O horror daquilo, o atingiu em cheio. Não estava morta, nem ele preso. Ele tivera uma premonição daquilo. Um deja vu. O outro ameaçou esganá-la. Ela se recostou na parede. O soco dele estremeceu o quadro. Agora a pegara pelo pescoço, e ela implorava pela vida. Estendeu a mão para alcançar o interfone, mas lhe veio o sono, caiu.

Despertou na madrugada. O prédio em frente imóvel, a impressão de estar diante de uma fotografia só era traída pela intermitente luz de um abajur numa janela. Nenhum carro na madrugada. O vírus pora o mundo em suspensão. 

O andar calado, se tivesse havido morte, ainda aquele silêncio? A louça no escorredor, seca, ele não a guardara. Apanhou um comprimido vencido, tomou um e se deitou.

No email, chegaram novos trabalhos. Em dez anos nunca se atrasara com a tradução. O armário repleto de latas. Fizera estoque para um mês. Preparou uma sopa. Metade foi para geladeira. Então ouviu um princípio de discussão. Eram 13h no relógio. Foi tomado imediatamente por uma vertigem. Era questão de segundos. Lançou-se no sofá e desmaiou.

Acordou e não era noite. Havia uma movimentação tranquila nos corredores. Com um copo recostado na parede, os vizinhos pareciam mortos. Apanhou o interfone. A campainha soou abafada e, de repente: alô. Era a vizinha. Ele pôs o fone no gancho. Estaria enlouquecendo?

A vida social desde cedo em escombros. Um rol de especialistas e o veredito unânime: o hipotálamo falhava no processar das emoções. A decisão acertada do litígio com a vida, do exilio, da segura solidão. Tudo que não servia para nada se o final terminaria por enlouquecer! Não, decidiu, mais nenhum exame. Mas se não fosse isso? Se zombassem dele? Impossível: os anos renovaram a vizinhança, nenhuma intimidade com ninguém do andar. 

Todos os dias amanheciam iguais na quarentena. Dispôs a cadeira diante da parede e esperou. A discussão começou pontual às treze horas. 
Apanhou o interfone e ligou para portaria. Alô, disse o homem. Estão se matando 706, sussurrou tenso. Não consigo escutá-lo, repetiu o porteiro Poderia falar mais alto?! O homem esmurrou a parede. A mulher não conseguia gritar. Quer que eu mande alguém ai? Perguntou o porteiro. Alguém em sua casa? Não! Ia dizer, mas teve medo e desmaiou. 

Talvez fosse o vírus. Tinha sido infectado e não sabia. Talvez estivesse em coma, entubado e em decúbito dorsal. Feito esses filmes ruins que no final tudo, só um sonho, o cara estava morto e o público é traído. Beliscou-se, ciente de que, sonhando, sentiria o beliscão. 

Faltando 5 minutos, colocou a cadeira e esperou. E se ligasse agora, alertando-a?

Alô. Ele disse. E antes que pudesse dizer, fuja daí, ele vai te matar; ela respondeu: Não posso falar agora. Desligou. Flertando no prédio? Acha que sou trouxa? Esbravejou o marido do outro lado, agora, mais violento. Colocou as duas mãos, rápido, no ouvido e desabou.

O salto mortal do rapaz do prédio em frente. A desratização do andar levantou uma névoa que botou um pó fino na superfície dos móveis. O sumiço do anão anunciado em cartazes de procura-se. Tais eram os eventos que antecederam a entrada de sua existência naquele looping temporal. Vistos a distancia, eram inegáveis prenúncios de caos. 

O instinto já gasto de autopreservação emitia inequívocos sinais de "fuja para a floresta." Uma parte aleijada dentro de si, sussurrava para que salvasse a moça. Como um centauro indeciso entre suas duas naturezas, não procurava mais explicações, mas um sentido para aquilo. Sabia, por exemplo, que a ação de ignorar não afastaria o problema, que o que sucedesse aos outros, também o atingiria. 


Sentado diante da parede esperou. A poltrona inclinada, ao menos se livraria dos hematomas, do mal jeito das quedas. Havia retirado os quadros, afastado móveis, a parede nua como uma tela de projeção, um teatro. Se empenhado, era possivel ver o desenrolar da cena, precisa, sem variações: "somos joguetes do destino lhe diria Shakespeare, Hamlet, ou ambos. 

O soco na parede, depois a enforcá-la. Este era o novo normal. A gente se adapta a tudo. Esperou que ela sufocasse, mas de repente o marido a largou. Dava-lhe tapinhas no rosto e implorava, acorde. Então num solavanco ela tinha um acesso de tosse. E vivia. Comovido, desmaiou. 

Às 15h20, de pé, era tempo de botar ordem na vida. Reduziu à metade do tempo habitual à tradução do manual de aquededor a gás e  à de um minifrigobar. Colocou roupas na máquina, recolheu o lixo da casa e aventurou-se, paramentado de escafandrista, até à lixeira do andar. De volta à cozinha, seguiu passo a passo às instruções que traduzira para elaboração do mais perfeito café feito numa máquina italiana, e sentado frente à parede cogitou ligar para o moça.

As três tentativas anteriores, era sempre o marido atendia. Fingiu duas vezes ser um entregador de pizza equivocado com o número. Desligar, como fizera a primeira vez, poderia desencadear uma tragédia. Ouvia-o socar com energia o saco de areia.

No espelho do banheiro, um homem magro, alto e pouco atlético. No confronto com o outro, a ameaça do soco já o poria para dormir. No tempo do dr. Freud, para o seu problema só cocaína. Por isso, apreciava tanto tomar café. Quem sabe um dia, ao acaso, não daria com o grão da cura.

As 13h06 ele socava a parede. Às 13h12 ela sobrevivia. Depois, ele engendrava um monólogo que evocava perdão, justificava-se com a pressão que sofre um delegado, a morte recente do pai. Beber era uma forma de sobreviver à pandemia. Não compreendia? Ele só batia por que amava. Ele pedia um abraço, ela cedia, ele forçava um beijo, depois sexo. Ele chegava até aqui e desmaiava. Cada não dela o mortificava. Depois do terceiro pare, reiniciavam os tapas. Ela evocava Deus. Era o seu limite.

Antes das treze, já estava furioso. Impossível que os apartamentos em volta ninguém reagisse. Sentia-se impotente, indignado, profundamente triste. E com medo: da dor, da morte, do desamparo da justiça. Temia tocar a campainha e desmaiar de espectativa. Não tinha amigos, provas, nada. Se enviasse à polícia a mensagem antes da agressão, que faria com ele essa polícia que protege os seus? Se contasse a alguém, o estranho, quem acreditaria nele? Os intensos sentimentos tomando-o. Cada dia suportava os mais intensos sem adormecer.

Com os dias, venceu a longa sequência do estupro. Pelo celular ela tentava falar com uma amiga. Ele a flagrava e, ameçando-a, destruía o aparelho. Depois a algemava, no sofá,  apoiava o pé na sua cabeça se vangloriando em voz alta. Então ela encontrava a arma. E se ouviam três tiros. Neste instante ele desmaiava. Impossível saber o desfecho. Morria ele, ela, ambos? Me espere, dizia consigo. As traduções todas por fazer. Não tinha cabeça para aquilo. Como foi possível viver tanto tempo sem sentir?

De repente, quando tudo fazia sentido, o casal sumiu. Ligava o interfone para ninguém atender. Um dor insuportável se apossou dele. Dormia e despertava em ciclos de minutos. Sua mãe ligou de Londrina. Estava bem? Ele tentou simular a apatia, a frieza antiga, mas já não podia se conter: disse que a amava, e ao pai, queria conhecer os sobrinhos, sentia falta do irmão. Com alegria, viram-se na câmera, espantados todos de não o verem dormir. E prometeram se reencontrar em breve, o pai se recuperava agora em casa. Tudo daria certo. 


Estava no banho quando ouviu as vozes exaltadas. Então voltaram. Nao cabia em si de tão feliz. Aquela guerra conjugal o apaziguara. Terminava de calçar os sapatos quando ouviu o primeiro tiro,  já havia girado a chave quando soaram o segundo, o terceiro e fez silêncio. Então diante da porta, no corredor,  tocou freneticamente a campainha sem desmaiar. Quem abriu foi ele, ela estava logo atrás. Com toda a força que tinha desferiu-lhe um soco que o fez recuar. Ele estendeu a mão:  Vamos! E um tanto atônita, ela foi com ele. Entraram no elevador, ele premeu o térreo.  A luz fluorescente piscante tornava tudo menos real. 

Acho que quebrei minha mão ao bater no seu marido.

Ele não é o meu marido.  É um ator.


Quer dizer que vocês estavam encenando todo tempo?

Com transição ao vivo para cinco países. Você não sabia?

Não.

Ouviu os tiros? Ele podia ter te matado.

Eu sei, disse. E aquele engano era de repente, fascinante. E você sabe quem sobrevive no final?

Acho que nós dois, disse sorrindo. E apertou o botão de volta para o andar.

domingo, 19 de julho de 2020

VERÃO

VERÃO


Havia um homem que ficou ilhado com a família nas Antilhas. As férias tinham sido planejadas com um ano de antecedência. O pacote contemplava hospedagem num resort magnífico. Sua esposa sonhara desde adolescente com o Caribe de O amor nos tempos do cólera, sem saber que a epidemia que viria seria outra.


A Covid-19 fechou fronteiras e impôs quarentena. Eles, que não eram dali, viram-se, subitamente, confinados no luxuoso hotel. Os aeroportos fechados, o possível colapso do sistema de saúde, da economia. As notícias vinham de longe: enfermos na Ásia, frigoríficos carregados de mortos na Itália. Incuráveis, os ricaços partiram em saveiros, jatinhos particulares. As passagens da família, parceladas em vinte vezes, o voo cancelado sem previsão. Acabaram os cinco ali.


Num deserto de almas, cadeiras de praias tostavam ao sol. Os sócios do hotel não queriam problemas com turistas. Dentro do prejuízo sem cálculo, eles representavam centavos. Liberaram-lhes o pacote mais caro. Passavam o dia mergulhados numa piscina de fundo infinito, já cansados da transparência surreal das águas onde peixinhos beliscavam pernas. Eram servidos com drinks coloridos por um exército.


O ex-proprietário holandês tivera problemas em abril com o sindicado local. Empresários pensam números, algarismos, cifras. Sabiam o valor de cada uma das seis estrelas. Se não podia dispensar a família, que os funcionários cumprissem as funções no lockdown: zero risco de contaminação, zero a possibilidade de processos. O circuito interno de câmeras garantiria que todas as funções fossem executadas. Não houve protesto entre os funcionários, cientes dos rumores das demissões em massa no litoral. Depois de anos de invasão corsárias, a ancestralidade guerreira degenerara para uma mortiça forma de resignação.


As crianças se entediaram na segunda semana umas com as outras. Metidas nos salões vazios, brincavam de pega-pega num labirinto de caça-níqueis. A esposa tostada de sol e das máquinas de raio U.V.A. engordava visivelmente. Dormiam na suíte presidencial, sem hora para despertar. Os funcionários que os receberam com entusiasmo, já não se esmeravam em simulações. Mês e meio passado, o serviço começou a decair. Os pratos chegavam mornos à mesa. A banda de reggae parecia entorpecida. Dos ares antes calorosos, incomodava-os a frieza dos gestos, o descompasso do mambo, as cordas frouxas nos boleros. Os coquetéis que sorviam aos litros, perderam um tanto da cor. Seguranças, camareiras e arrumadeiras vagavam sonâmbulas por corredores sem disfarçar o vetado uso dos celulares. Please don't serve us peanuts! Repetia em vão. As gêmeas eram muito alérgicas, não as fossem matar.


25 minutos de espera na sala de massagem ao som do merengue. Ele enviou um email indignado à gerência. Que culpa do caos global tinha sua família? Dispostos em forma de pelotão, os funcionários se desculparam humilhados no salão principal. Advertidos, fizeram-se profissionais e distantes, como autômatos. “Parecem civilizados, mas no fundo praguejam”, comentou com a esposa.


Para espanar o pó do tédio, multiplicaram-se nas redes sociais. A antena própria da ilha, com conexão por satélite, garantia a fluidez de lives diárias entre flamingos, palmeiras, cambacicas amarelo-gris. Eram invejados pelos amigos a um continente dali, deslumbrados pelo fundo azul, pela alegria simulada das selfies, a inverossímil sorte que tiveram no azar. Ele inventava expedições às ilhas, mergulhos em corais, fingidas festas regadas a piña colada, explosões de pinhatas e guerras de travesseiros com os filhos. Enfastiados e aflitos, os empregados praguejavam em papiamento, já na cozinha, as maldições eram na língua hixkaryana.


De medíocre, mas complacente subdiretor num banco nacional, o poder nunca experimentado açulou o espírito para o exercício da tirania. Novo email à gerência, fez com que abrissem o salão de beleza. A barba feita, o cabelo cortado, as unhas da esposa com francesinha, para o vídeo. Nem parecia a mesma que estivera aos prantos depois de se achar presa na sauna. O termostasto altíssimo, que ninguém sabia explicar.


Ela, que arranhava o espanhol, pensou em diversificar seus stories com o exotismo local. A manicure, contudo, viera de Cuba. As filhas tinham ficado com a vó Guadalupe, em Guadalupe. O marido era o segurança antes bonachão, que adquirira um ar sisudo, desde que o marido quisera sair de lancha para o mergulho aquático entre tubarões indiferente aos alertas de precipitações. Sentia falta das crianças, da mãe cega, de Matanzas. Levou-a para ver seu altar com Nossa Senhora da Candelária, uma índia negra coberta de um manto azul que às vezes chamava Oyá, dessas que na Santeria se oferecem sacrifícios.


Os dias quentes deram lugar ao anúncio de um ciclone tropical. Os haitianos se puseram inquietos e os jamaicanos, temerosos da escassez, só lhe cederam uma boa quantidade de marijuana através de chantagem. O céu se escureceu, houve relâmpagos e trovões. As crianças se meteram sob os lençóis apavoradas. A luz se apagou, acendendo os leds de segurança.


Um curto circuito, comunicaram, deixou interditado o bar do hotel. A antena receptora foi arrancada com as telhas dos bangalôs. A pane na rede derrubou a internet sem previsão de retorno. O gerador de segurança não dava conta da energia. Tiveram, por fim, de desabilitar o circuito interno de câmeras, e o hotel ficou limitado às ações de um técnico que infelizmente estava isolado no 403, porque há dias ardia em febre.


Abstêmicas de tábletes e smartfones, as crianças tinham ataques de fúria e se recusavam a obedecer. As discussões com o marido submerso num contínuo torpor de canabis, tanto eram desgastantes quanto improdutivas. No final do terceiro mês, sentia-se num filme de Stanley Kubrick.


A pane que tinha detonado os frigoríficos, fez desembocar por todo o andar um cheiro podre de lulas, ostras, lagostas e lagostins que empestavam o ar. O enjoo das gêmeas era tal, que tiveram que voltar ao antigo quarto no nível inferior, fato que irritou profundamente o marido. Para compensar interfones e campainhas desativadas, ele passou a fazer uso de uma sineta que agitava com vigor para convocar os empregados para servi-lo. Contudo, esses eram cada vez mais escassos, devido ao crescente número de infectados que terminavam restritos a cabines. Ele questionava tal motivo e, na intimidade do quarto, acusava-os de indolentes e preguiçosos.


Foram aconselhados a permanecerem dentro do hotel, pois as feras exóticas, livres das celas eletrônicas, estraçalharam uma garçonete no jardim. Um rádio de pilha, furtado de uma dominicana, alternava calípsos e notícias de aeronaves desaparecidas nas Bermudas. Havia montes de mortos em Trinidad e Tobago. Algo se passara em Guantânamo. Seis ou sete porto-riquenhos, com o pretexto de racionar o diesel dos geradores, recolheram combustível e escaparam com outros funcionários nas vistosas embarcações turísticas. Tinham poucas horas diárias de energia, algumas velas para iluminar as noites.


Os ânimos exaltados e um vislumbre de desespero tomou recepcionistas, camareiras, guias e choferes restantes. Uma romaria se montou diante do quarto 302 para rogar à candelária de Guadalupe que cessasse a profusão de desgraças que punha a cada dia homens e mulheres prostrados pela febre. Só a família parecia imune. O que despertava não só desconfiança, mas rancor. Quando insensatamente a mulher os fotografou ajoelhados diante da imagem, a expulsaram de lá. O incêndio veio a confirmar que estava amaldiçoados.


O fogo começou, contraditoriamente, pelo altar da Candelária. Os detectores de fumaça desativados não acionaram os jatos de água. Breve as chamas se alastraram corredor afora, asfixiando os fiéis.


Só deu pelo sumiço da esposa na segunda feira, quando não conseguiu encontrar a droga do carregador do celular. Vagou pelos corredores banhados de sol e foi encontrar os funcionários reunidos no quarto da manicure, ajoelhados em volta não mais da santa, mas de um ídolo vermelho e branco empunhando uma lança. Embora uniformizados com o logo do hotel, haviam regredido à natureza tribal, e já não se comunicavam em língua civilizada. Buscou a esposa, o caçula, as gêmeas nos exóticos bangalôs saídos da imaginação de roteiristas ianques de filme B. O soar de tambores restituiu a esperanças de que a energia tivesse voltado ressuscitando os altofalantes. Mas eram os caribes que exaltavam com cânticos o deus que traziam para fora, para arder à luz do dia, espantar a doença com a morte. Não compreendia se em sua língua bárbara evocavam Obaluaiye, Babalú Aye, ou Oluayê. Foi quando encontrou as quatro covas na areia voltadas para Cuxco e uma quinta, justo para cabê-lo. Cinco e não seis, como as estrelas do hotel. Mas seriam suficientes para aplacar a fúria dos deuses, espantar a peste, e abrir novamente a comunicação para as ilhas.  

TRAMA


TRAMA

Havia uma mulher que perdera a memória. Confinada no pequeno apartamento, levava o dia a regar plantas, alimentar o casal de periquitos, acompanhar sua novela preferida. Seu marido chegava tarde, impacientava-se facilmente, reservando-se ao ato protocolar de medicá-la.

O passado em branco, ele dizia, era um mal menor diante das convulsões diárias que a cirurgia de epilepsia extirpara por completo. A saliente cicatriz recoberta pelos longos cabelos não a deixava duvidar. O bom é que não sentia saudades dos pais, da infância, dos anos de namoro ou da felicidade matrimonial. Ausentes todas as memórias, lamentava não ter escapado do incêndio um porta retrato que fosse, seu lindo vestido de noiva que tinha ardido em chamas. Então rezava, tinha um vasto repertório de orações.

Por que o presente não bastava, vivia com intensidade o lacrimoso drama de Amarguras do coração. Carmen Laura largara o convento para viver seu amor impossível com Dilhermando Montenegro. Mas sua terrível sogra caolha mandara sabotar o carro aos oito meses de gravidez. A criança nascera linda e saudável, contudo, devido a pancada, Carmen se esquecera do amado e da filha. A sogra a sequestrara, então, forjando-lhe uma nova existência com um outro que fingia ser seu marido. Sua filha crescia agora num orfanato dirigido por freiras carmelitas, replicando o destino da mãe. Dilhermando, inconsolável em sua viuvez, a tudo ignorava. Pensara em se matar, mas devoto à Nossa Senhora das Candeias, abandonou a carreira de escritor e agora se arriscava no Corpo de Bombeiros, onde ingressara na esperança de que um incêndio fatal desse fim à sua vida.

Ela tinha uma alma a um só tempo trágica e fantasiosa. Tudo que ouvia lhe parecia tão real que chegava a antecipar as falas, reconhecer lugares, o desfecho de cenas. Ai podar suas comigo-ninguem-pode com uma tesoura enferrujada que despencara do andar de cima, as lágrimas corriam desidratando-a enquanto assobiava Pixinguinha. Solidários, Rose e Jack mais se agitavam na gaiola.

Se a cada dia mais romântica, o marido assumia uma frieza glacial. Como tinham se conhecido? Onde o primeiro beijo? A data do casamento? Tudo o irritava; e pior: era surdo para os sofrimentos de Carmen Laura. Calava a esposa com comprimidos, e desprezava Armaguras do coração. - Mas quem ainda escuta radionovelas?

Ela adormecia no sofá e não o via sair trancando a porta. Nem a comida deixava que fizesse. O cardápio, sempre o mesmo. As quentinhas lhe davam indigestão.

As viradas surpreendentes de Amarguras contrastavam com sua vida sem emoção. Um incêndio no 809, Dilhermando acionado. O destino aprontando das suas, o unia de novo à Carmen, para separá-los novamente quando ambos desmaiaram asfixiados entre chamas. Desperto, vagou à procura da amada em cada ala do hospital. Pressionando a mãe, esta por fim confessou que mantinha Carmen em cativeiro, mas, quando ia revelar o nome do cúmplice, sofreu uma síncope que lhe paralisou metade do corpo, impedindo-a de falar. O capítulo terminava com Dilhermando abandonando os bombeiros e voltando a escrever. Precisava não só localizar Carmen, que perdera a memória, mas alertá-la de que seu "esposo" era, na verdade, um assassino.

O comprimido dado pelo marido, agora ela cuspia na pia. Rose e Jack estavam presos, mas juntos na gaiola. Já tentara puxar assunto com os vizinhos, que a ignoravam. Não sentia conforto algum no coração, cada dia mais amargurado.

A voz de barítono de Dilhermando lhe atiçava desejos pouco cristãos. Agora que dona Fernanda não lhe pagava, o sujeito tentaria se livrar das provas de seus crimes. Por isso, usando de seu talento literário, o fiel Dilhermando se empregou numa rádio e passou a produzir Amarguras do coração. Tinha ele esperanças de que a pobre Carmen reconhecesse sua história, vencendo as mentiras e as drogas ministradas por seu algoz. Rogava que, por mais difícil que fosse, acreditasse no amor. "Resgatei nossa filhinha do orfanato das Carmelitas, estamos esperando por você. Não deixe que ele a mate."

As cenas dos próximos capítulos prometiam emoções avassaladoras. A mocinha se deixaria enganar mais uma vez? Ficaria à espera de seu eterno amor?

As lâmpadas quebradas emitiram faíscas quando ele tocou o interruptor. A mulher não atendeu ao seu chamado. Não era possível mais viver assim!  A rotina diária de recolher os fósforos, de trancar a porta, os vizinhos alertados de um possível surto. Não a amava, mas quem poderia condená-lo?

Rose e Jack, livres da gaiola, espreitavam congelados sobre o rádio pré-histórico: se girasse o botão, um samba-canção, de Dolores Duran, As rosas não falam, de Cartola? As plantas nos vasinhos tinham sido cortadas até a raiz. Meu Deus, ele pensou, antes da picada nas costas e do reclame das mulheres do sabonete Araxá: "onde ela achou uma tesoura de podar?" 

domingo, 12 de julho de 2020

CEGUEIRA

Havia uma mulher que compartilhava a vida com seus inquilinos. Do apartamento herdado pelos pais, restara-lhe 75m2, incluindo um banheiro suficientemente grande para conter barras de apoio nas paredes, a impedir que ela, como tantas velhas, tivesse o fêmur partido numa queda. Se antes ele ocupara todo o andar, sucessivas crises econômicas a obrigaram a ceder metro a metro até restar-lhe esse território de amplas janelas e nenhum horizonte. Ainda assim, tinha que estar agradecida, pois não terminara confinada ao quarto de empregada, resquício das senzalas que as sinhás conservaram até os anos 50 em seus "modernos" apartamentos. Agora, o exíguo espaço lhe servia de depósito de trastes legados pela família quatrocentona que, desde que a mãe se fora há 20 anos, se resumia a ela e nela se extinguiria. O arrendado na subdivisão de seu antigo reino lhe garantia uma sobrevivência modesta, mas confortável. A privacidade que tanto amara, porém, fora-se para sempre. Reduzida a meros quinze centímetros, as paredes remodeladas do antigo edifício não apenas impossibilitaram a privacidade que tanto apreciara, impunham existências opostas à sua.


Justificava a conduta por um trauma antigo, quando testemunhara o assassinato no apartamento ao lado. vigilância achava que seu vizinho tinha matado a esposa. Desde a década de 90 os engenheiros reduziram a espessura das paredes à milímetros. O impasse entre Cancun e Punta Cana nas férias, a troca do carro, a discussão sobre a posição do sofá, deram lugar, depois dos primeiros anos, a acusações mútuas. Foi testemunha involuntária, entre as 7 e 8 quando desligava o rádio do horário da Voz do Brasil, foi testemunha involuntária do apodrecimento marital. Ele gostava de Bossa Nova e ela Maria Bethânia, mas mudou para Ana Carolina enquanto ele permaceia fiel à João Gilberto. Da varanda a fumaça do cigarro fazia contorcionismos até penetrar sua sala, embora ele mentisse para ela que abandonara o vício. A decisão de ter um filho, perturbou-a um mes inteiro. Quando reformaram o quarto, achou que iria morrer com o barulho. A instalação de parede no quarto do bebê. Encontrou-a no corredor, já com a saliente barriga. Ele tinha dobrado de turno e ela se fez atenta para qualquer alerta. Mas a tragédia deu-se fora. Com o bebê, foi-se também o útero. Essas coisas aqui e ali ouve-se dizer. Eles não falara mais do casamento. Até a última semana quando ela acusou-o de jamais ter querido o filho. Toda vez que brigavam ele ligava o João Gilberto, talvez para relaxar.

Isso voltou com toda força quando ressuscitou o picador de gelo, os golpes violentos na pedra. extressado de xingamento, o bater da porta, o espatifar de objetoss na parede de papel. Ela ligou para portaria, ele arrancou o interfone furioso e ela o viu sair voando pela janela e espatifar-se doze andares abaixos, do lado da piscina. Depois desse interregno pediu que se afastasse. O tremor incomum da voz dele o prenuncio de um grito sufocado. o agitar de pernas e braços depois, silencio e uma respiração ofegante. como num dueto reduzido a uníssono. depois o som vazio de desafinado.


Se faziam amor, suas noites eram perpassadas de angústias infinitas de virginal sexagenária.  as paredes deixavam vazar o som vida adentro, uma caixa de ressonância perversa que a obrigava a compartilhar a rotina mais íntima dos vizinhos da esquerda. coabitar, sempre fora uma mulher reservada,  O direito de nascer, 1951, Radio Nacional de paredes mínimas de fina lajota.

Reduzidas a meros 15cm as paredes, o som vazava sala, quarto e cozinha adentro. 
, onde a vida se estendia para além das perspectivas.

relíquias


sábado, 4 de julho de 2020

171

Havia um homem que dava pequenos golpes. Tinha preferência por idosos. O fato de serem velhos nao lhe imiscuia qualquer culpa. O minimo que esperava do tempo era o fim da inocência. Se se deixavam enganar, nao o faziam por ingenuos, antes por acharem-se imunes a golpes, como se os anos lhe consagrassem imunidade, isencao, como se a eles algo se devesse. Essa arrogância o inquietava. Além do que, todos se compadeciam dos velhos.  

VÁRIOS INICIOS

Vários inicios

Havia um homem que era cobaia de testes para novos medicamentos. O dinheiro permitia lhe complementar a renda.

Havia uma mulher que praticava eutanásia. Trabalhava como enfermeira num hospital de elite, desses q exige dois ou três idiomas. Assim timha acesso a diversas alas.

Havia um homem que invadia computadores dos amigos.

Havia uma mulher que assaltava fazia uber.

Havia um homem que doava esperma para clinicas de fertilizacao

Havia um homem que parou de comer. O resultado, como nao podia deixar de ser foi uma gradual e drástica mudanca de peso

Havia uma mulher que decidiu certo dia abandonar a familia.


Havia um homem que guardava a mãe congelada num freezer.

Havia uma mulher que achava que seu vizinho matara a esposa

Havia um homem viciado em pornografia. O fato de ser um padre complicava as coisas. As tentacoes...

Havia uma mulher ouvia vozes que a mandavam fazer coisas.

Havia uma mulher que achava que o marido havia sido abduzido por alienigenas.

Havia uma mulher que acreditava que sua vida era falsa. A verdadeira é a que vivia nos sonhos.

Havia uma mulher que tinha tesao por anões.

Habia um homem que encontrou objetos pre historicos no quintal de casa.

Havia uma mulher que envenenava a filha.

Havia um homem que gostava de se cortar.

Havia um homem que decorou todos os nomes da lista telrfonica.

Havia um homem que estava perdendo a memoria.

Havia um homem que cultivava leveduras na geladeira.

Havia uma mulher que se apaiconou por seu pastor.

Havia a mulher que odiava os filhos.

Havia uma mulher que criava perfiz falsos.

Havia um homem que produzia fakenews

Havia uma mulher viciada em compras.

Havia um homem que se apaixonou pelo melhor amigo.

Havia uma mulher que recuperou a audicao.

Havia uma mulher que nao enxergava cores.

Havia uma mulher que colecionava bombas.

Havia uma mulher que matava animais de estimacao.

Havia uma mulher que fotografava homens nus.

Havia uma mulher que seguia desconhevidos.

Havia uma mulher que construu uma bomba.

Havia um homem qie odiava pessoas negras.

Havia uma mulher que lia o destino na borra de café

Havia uma mulher que praticava eutanásia.

Havia uma mulher que odiava sua vida. Mudava de vida a cada tres anos.

Havia uma mulher que comia terra.

Havia um homem que encontrou a mulher perfeita. Ela era casada com outro e nao sabia que o amava. Eram perfeitos um para o outro.

Havia um homem que tinha de javis diariamente.

Havia uma mulher obsecada por corridas.

Havia uma mulher que nao sabia como tinha engravidado.

Havia uma mulher que falsificava dinheiro.

Havia um homem que matava por dinheiro.

FOSSO

Havia uma mulher casada que se apaixonou por um anão. Ele morava no 27o andar. Sabia por que ele pedira que apertasse esse número não alcancado no painel do elevador. A voz grave e a ausencia de pudor no pedido a enrubecera. Desde então, se  sentia  inútil e excitada.  

FADA

Desde esse nao suportava a cara do marido. A incomparibilidade de horários tornava toleravel o casamento que se arrastava a cinco anos. A quarentena impunha agora um convívio diario e esgarçada/evidenciara de vez o tumulo da relação. Desde que esbarrara no anão, tinha as noite inquietas. Se masturbava loucamente com a duchinha no banho. O filho adolescente batia na porta afundando/afogando desejos. Aquela idade toda confinado no quarto. Ao se livrar do ex, viu renasce-lo no filho. A mesma inutilidade, o ar balofo, a preguiça. Amava o filho mas nao o suportava mais. Os gritos jogando Call dufy atraz da porta. Havia gente ganhando fortunas nas olimpiadas do japao. Parasitando os dias. O dinheiro apertado, faltasse tudo menos a internet. Ja tentara se matar numa ocasião, feito o pai, inutil. So ela sabia o que lge custava aquele destino de trevas. Desencantada com a vida sorvia mais copinhos de leite condensado e vomitava no banheiro. A bariatrica. O futuro distante, o rancor desse filho inutil dissolvido agora com doses de gim. As vezes passava tres dias sem tomar banho. A pilha de roupas acumuladas sem forca para passar. A ilusao do peso mantido na balanca quebrada emvaixo da cama. O vestido 45 eternamente a edpera no cabide rosa. 

PRIMAVERA

Havia uma mulher que se alimentava de flores. Como morava em cidade, era complicado se alimentar. Tinha um paladar exigente, dificil de se satisfazer. Esgotado o menu urbano, tocava para o interior. Todo esse trânsito a infastiava. Recorreu a floricultura próxima de casa. Cada planta exigia uma composição distinta de solo, às vezes em etapas distintas da vida. Identificou se profundamente com as glicínias. As xxx lhe pareceram arrogantes. Bromelias soberbas em seus fazinhos. Tinha simpatia por rosas. Eram simples, belas, pouco exigente nas relacoes.  

O PEIXE

Havia um homem que se apaixonou pelo melhor amigo. Ele não sabia, mas o amava. Jogavam futebol no clube aos sábados de manhã. Se entusiasmados num lance, se abraçavam e se beijavam sem pudor. Antes a esposa de um vinha assisti-lo. A namorada do outro eram muitas. O suor no campo saia no chuveiro. A nudez de um era conhecida do outro. Invejavam o condicionamento fisico um do outro. E muitas vezes treinavam juntos na academia. Cerveja no bar do Manuel com os camaradas. Sentia-se precionado na firma. Quem nao tinha problemas com o supervisor? O carro enguiçado, quem ia socorrê-lo? Era sempre convidado para costela assada por 4 horas no fogo baixo, uma especialidade. O outro trazia a nova namorada, cujo nome a esposa nao fazia mais questão de memorizar. Divergiam bastante no futebol, as discussoes acaloradas, pareciam urros do truco, desapegados de argumentos, gostavam da voz grave um do outro. O outro quebrou o dente numa briga. A raiz quebrada de um canino. O dentista 

LABIA

Havia um homem que vendia esperma para clínicas de fertilização. Não fazia isso por altruismo, mas por necessidade. Preenchido o questionário, vinha a hora de engambelar a moça. Seguindo a lógica do perfume, caprichava na exibição do frasco. Concluindo Direto, na melhor universidade? O pai de origem alemã, a mãe, relações internacionais. Arranhava, oui, o francês. Natação desde criança. Turbinava a ficha para valorizar o produto. Se bem cotado pela técnica, recebia mais. Ser jovem, bonito, saudável, não mais o suficiente. Os dotes exigidos na triagem, cada vez maiores. A mulher, como somelier de sêmen, só faltava provar. O dinheiro era bom, valia a pena. Menos de dez minutos, recebia em euros. Visto vencendo no país, onde arranjar em espécie? Já tinha dado sangue naquele país, aliás vendido, e nada. Para porra do esperma, pagavam mais. Quanto custa um visto em ml? Me fale um pouco mais sobre você, perguntava a técnica, prechendo a ficha. O cartaz na parede: "Povoando o mundo, realizando sonhos." E em verdade, na mentia. Era um cara duro, cada qual oferece o que tem. Seu talento para farsa vinha da convicção. Se a mãe era cafetina, por que não um pai alemão? Suas relações, via de regra, não deixavam de ser internas e internacionais. Na pensão onde se hospedava, aprendera com os haitianos os termos mais chulos em francês. Expulso da faculdade falsificando TCCs. Nas enchentes da quebrada, ou se aprende a nadar desde cedo ou morre afogado. As costas largas, o sorriso sexy, quem podia duvidar? Ela ia checar as redes sociais, esmiuçar o seu histórico em tempos de perfis fakes,  pós-verdade, teoria da conspiração? Ele
Se tiver prazer no que faz, nunca terá que trabalhar na vida.

Morava numa pensão de moços, desde descobriram q vendia ttcs na faculdade. A grana curta q recebia com atendente numa academia nao dava conta do pf diario. Era jovem, alto, belo e saudável, mas não o suficiente para valorizar seu produto. Por isso, mais q mentir no questionário, reinventou se. Escondia a calvicie de geracoes, o câncer dos avós, a hemofilia. Se quisessem, eles que examinacem seu dna. sempre lera bastante, no buraco de onde saira, lhe dera um vocabulário q permitia flanar na sociedade. A imaginacao advinda desde o abandono do pai, fizera dele um bom farsante. Sabia assimilar com velocidade, era mestre na arte de simular. Turbinou o currículo acadêmico nas redes. Seu xxx era invejável, qae um CO de multinacional. Na coleta dispensava o porno usual. A geneticista desconfiada da lábia.  

ABANDONO

Havia uma mulher que abandou os filhos. Moravam os três no apartamento. Desde a morte do marido não se reconhecia. Amava os filhos, so nao suportava mais aquela vida. Fez as malas, apanhou os documentos e partiu. A filha mais velha de dezesseis leu o bilhete para o menor. A mae deixara o cartão com a pensão do pai que deveriam sacar e quitar compromissos. Havia outras instruções, precisas para cada situação. Todas anotadas com objetividade como a ultima: nao me preocurem. Viveram as 5 fases do luto. No terceiro mes desistiram de achar q voltaria. O menino que tinha medo de fantasmas, procurava refúgio  na cama da irmã, a quem se apegara ainda mais, temendo q partisse. A menina vestia a blusa esquecida pela mãe no cesto de roupas sujas, acendia um cigarro e soltava fumaça na janelinha da lavanderia. Chorava no chuveiro as vezes. As contas no débito automático, do aluguel. A escola publica nao exigia mensalidades. O orçamento era apertado. Ela conciliava estudos com servicos nao registrado numa lanchonete. Era acedianda diariamente, mas seguia firme. Apesar disso aceitava cartões de engravatados, vai saber do futuro. 

TIRÉSIAS

Havia uma mulher que afirmava ter nascido num corpo alienígena. O seu era um outro, invisível a olho nu. Soterrada numa forma masculina estava a mulher que fatalmente era. De alguma forma, contudo, antes de isso se revelar inequivocamente para si, evidenciava-se no condenável olhar dos outros.
Condenava-a o olhar dos outros, cujo crime

evidenciava-se aos outros, pelos inevitáveis 

denunciados nos trejeitos, no fino timbre da voz, no movimentos sinuosos das mãos. Sua delicadeza atiçava desejos aprisionados. Como um cisco, uma farpa, um corpo estranho e incômodo que está no outro e dói em nós,  atraia cáfilas de machucadores. Seu problema não era local, mas geográfico, deslocava consigo para onde fosse. A hostilidade do pai em casa, as surras aos urros no colégio, a saliência da cúria da igreja, a violação a caminho do rio, no campo de futebol. Sua vida pontuada por fugas:  do interior, dos vigilantes noturnos, dos fregueses violentos, do amante casado, do vício, do amor, daquele Deus que a negara três vezes. Agora retornava reconstituída: imagem e semelhança de si. Seu nome, ela quem lhe dera, cívil e não de batismo. Grace era sua graça. Vinha para enterrar a tia-avó que a criara antes que se recriasse a si mesma. Os hormônios que trazia na bolsa davam o arremate ao conjunto de intervenções a bisturi, botox, próteses de silicone,  e garantiam que o reflexo externo correspondesse ao interior. A cerimônia no cemitério pobre, os irmãos não ousavam se aproximar. O caixão branco, de virgem, a tia descia em glória com o lábio leporino que a impedira de casar. De olhos baixos, cravava as longas unhas no braço. Dissimulava reza, não daria o gosto de vê-la chorar. Cumpridos os ritos, pagou o pároco vesgo que zombava dela quando menina. Estranho isso, na sua memória, apenas vestidinhos imaginários de chita, como quem traveste-se de nova história.

A cidadezinha a quilometros do aeroporto, saindo agora, às 23, na capital. Dispensou o convite das primas envelhecidas, embarcou no ônibus e partiu, mas não foi muito longe. O rádio anunciava o breakdown, a ponte fechada pelo coronavírus. Desembarcou do ônibus sob o olhar de uns caraminguás, e veio arrastando à mala da rodovia à estradinha de barro sem vacilar nos saltos altos. Uns vendedores de milho, um cão estendido ao ocaso. Entrou num boteco e lhe serviram uma água da torneira. Informou se da direção e entrou na rua principal sob os olhares das casas, de uma vendinha, um salão de igreja caiada de verde, um posto de saúde aos pedaços, uma porta de garagem escrita correios, a pequena agência do Banco do Brasil.

Ilhada nesse extremo nada,  hospedara se numa pensão e o dinheiro minguava. Na sexta prometeram no telefone, abririam a agência para saques. A tevê restrita a um canal. Concurso as deusas da Beleza, cobras entrelaçadas em cópula no mundo animal feito bastão de Eustaquio. A farmácia sem seringas e agulha. nao podia repor seus hormonios trazidos na frasqueira. O posto fechado desde a expulsao do medico cubano. Os pelos retornando na cara. A voz recuperando o grave. Nessa manha, do café nem o cafe, gostava à cevada e cuspe. Os olhares inóspitos de faroeste. Os frangos se embriagam, atiçam uns aos outros, há sempre um armado de faca. Ela roubou a faca de pao e leva a consigo. Cobriu o azul da barba  com o xale, a espera da abertura da estrada, quitar a pensão e partir, antes da eclosão de Hyde, seu inimigo.










Acordou parada no meio do nada.

gênero de pessoa que era. Era daquelas que transcendem, nao permanecem. Havia uma ponte, era daquelas que nao querem, necessitam atravessar. O que era estar presa no meio do nada, para alguém confinada num corpo estranho, inimigo. Presa numa estrada no meio do nada, a pensão caiada de azul. A fobia de voo, a longa jornada de volta. O enterro da tia avó que a criara. 30 horas Para-Sao Paulo. Era diretora numa escola. Nesse lugar matavam gente. A ponte interditada. Ela permanecia ilhada nesse extremo nada. Hospedara se numa pensão e o dinheiro minguava. Na sexta prometeram no telefone, abririam a agência para saques. A tevê restrita a um canal. Concurso as deusas da Beleza, cobras entrelaçadas em cópula no mundo animal feito bastão de Eustaquio. A farmácia sem seringas e agura. nao podia repor seus hormonios. O posto fechado desde a expulsao do medico cubanos. Os pelos retornando na cara. A voz recuperando o grave. Os olhares inóspitos de faroeste. Cobria o rosto com o xale, a espera da abertura da estrada, quitar a pensão e partir, antes da eclosão de Hyde, seu inimigo. 

CIRCE


Havia um homem que trabalhava como escafandrista. Na profundidade serena reparava dutos de petróleo entre sensíveis corais, anêmonas e arraias. Ao emergir depois de horas, viu-se sozinho num barco que não sabia pilotar. O rádio emitia estática. Cogitou piratas, simulação de pânico, abduções extraterrestres. Examinou os mapas. Nem um sinal do celular.

Sem GPS, o escafandrista era um peixe fora d'água. Achou um sinalizador. Presumiu latitude e longitude, acionou os motores e seguiu. As ondas intranquilas. O céu ameaçava dilúvios. A água escasseando. Sem combustível, dois dias à deriva, foi quando avistou pássaros. Teve que armar o bote, remar para a ilha orando para que não fosse desértica miragem. Foi lançado com força à praia. Estranhas espécies aquáticas de corpo roliço tostavam ao sol. A areia limpíssima provava a inexistência de humanos, ainda assim recorreu aos trastes do bote que se rompera. O sinalizador subiu pipocando faíscas juninas sem obter resposta. Sempre há coqueiros nas ilhas desertas, mas como abri-los? Uma imensa tartaruga lhe lembrou Galápagos. Ruídos noturnos de feras imaginárias ou reais competiam com pesadelos. Exaltava a chama do isqueiro, o canivete suíço, objetos que trouxera do barco: resquícios de alguma civilização. 

Os dias em ondas, como o mar. A fome, o medo e o cansaço, logo, fizeram dele um precário Robinson Crusoé, tais os rudimentos de seu abrigo, seus instrumentos de pesca, a fogueira mirrada que vigiava para não extinguir. No rosto despontava uma barba falha. O sol lhe suscitava desejos desesperados de carne e de amor. Era perturbado por memórias de mulheres, de homens. Ressentia-se de ter esquecido as orações marteladas pelo tio beato, embora tenha desenvolvido rituais que faziam a espera possível. Passadas semanas, começou a duvidar da existência de aviões.

Diferenciar um dia do outro era possível, e inútil. Improvisou uma lança com ponta talhada de pedra e resolveu atingir o coração da ilha, já que rochas colossais o impediam de contorná-la. Sentia-se um personagem de um romance inglês, de um filme vencedor do Oscar, de um confuso seriado norte-americano.

Andou dias orientado pelo sol. Os macacos o seguiam com manobras acrobáticas intrépidas. Pássaros de cores e chilreios vibrantes pareciam encantados. Tucanos aproximavam sem temê-lo. Uma mãe javali trouxe os filhotes acariciantes. Os bichos desconheciam a ferocidade de sua espécie. Levou semanas para atravessar a floresta. Uma onça vigiou, à sombra, seu sono junto a fogueira. Uma nuvem de vagalumes siderados simulou frente aos seus olhos fulgurantes constelações.  A mata, por fim, findou ante um imenso deserto escaldante. Como Colombo ele tinha descoberto um continente. Se lembrasse o homem que fora, ele o tomaria para si consagrando seu nome.

No ciclo de anos tentou diversas incursões, chegando cada vez mais distante no mar de areia. Desenterrou o que lhe pareceu ser um relógio de sol. Talhado em rocha, trazia números romanos, uma indecifrável inscrição que julgou ser latim. Mas de que servia marcar as horas na solidão inolvidável dos dias? Numa de suas expedições pensou ter avistado um farol, um camelo, um menino. Sentia uma falta absurda do soar da voz humana, de cigarros, de vodca, de coca-cola.

Na derradeira incursão - que encerraria seu ciclo lunar para uma existência nova, - encontrou uma forma triangular soterrada na areia. Quanto mais a escavava mais se ampliava em volume, extensão, até que desistiu ao reconhecer o topo de uma pirâmide. Peregrinando insano pelo deserto, a vista turva,  ele se erguia para se precipitar em nova queda. No meio do delírio: era aquela grande estátua de Buda, a face serena do Cristo Redentor? Despertou com uma pontada de dor abaixo da costela, não no abdómen. Agradeceu a Deus ter perdido o apêndice na adolescência, mas vagando em círculos daquele inferno escaldante repassou todo compêndio de xingamentos conhecidos e inaugurou novas formas de proferir obscenidades.

Corais, baleias, crustáceos, águas vivas eram ilusões de escafandrista. O sol intenso lhe queimava as retinas por detrás das pálpebras, nenhuma palmeira para gritar terra a vista. Sentiu que morria e se entregou aos céus. Despertou sendo puxado por cordas sobre uma espécie de liteira trançada à mão. Viu diante de si uma mulher que ora o arrastava, ora torcia um pano com água em sua boca. Sabia que não estava morto, porque o corpo ardia queimaduras de segundo grau. Se morto, não estava mais no inferno, que não são os outros, mas a solidão. Quando já podia concatenar o pensamento, perguntou a mulher quem era, de onde vinha, como o achara.

Ela não podia ou não sabia como lhe responder. Um tanto perplexa contemplava fascinada o movimento de seus lábios, a língua húmida, o fundo profundo de sua garganta, todo o conjunto articulado na emissão daqueles indizíveis sons. Contudo, respondia com gestos que, embora incompreensíveis, apontava um desejo de comunicação.

Ao longo da existência comum, ambos aprenderiam a decifrarem-se, porque no princípio era o mar; e o escafandrista repousava nas águas. Por hora eram ele e ela, sem nudez ou pecado.  E como ela não pudesse nomeá-lo ou a si mesma, ele a chamou de Eva.

JUÍZO

Havia uma enfermeira que praticava eutanásia. Trabalhava como técnica de laboratório, agora, num hospital de elite, desses que exigem dois ou três idiomas. Por isso tinha acesso a enfermarias, centros cirúrgicos, U.T.I's e a um cem número de alas. Abreviava existências inoculando bactérias resistentes coletadas em seringas de insulina. Tinha uma bela coleção de patógenos que cultivava numa frasqueira denominada Redenção. Escolhia com terna objetividade os pacientes que mereciam a paz. Suas investigações consistiam em minucioso exame das vidas exibidas nas redes sociais. Família, amizades e relações amorosas ou de trabalho: nada lhe escapava. Livre de preconceitos, não descriminava ninguém por crença, cor, idade. O olhar clínico para fotografias festas, viagens, passeios ao sol.

Dispensava selfies por imprecisas, Via nelas uma insidiosa retratação de si: ali, jamais como se é de fato, mas como o sujeito gostaria de ser, ou pior, como quer que os demais o vejam. Aborrecia-a, particularmente, a imprecisão verbal: de fato não "somos," "estamos." Assim, para ela, valia de fato o agora. Avaliava por isso o que aquela pessoa se tonara, medindo não suas escolhas, mas suas ações: o modo que agia no mundo. Por isso, não caía nos discursos falsos, na esparrela das frases feitas. Não se deixava enganar, por exemplo, pela simulação de felicidade. Simular era o não ser. Tinha também horror a utopias, hipóteses, abstrações. Seus eleitos (era o termo que usava) preenchiam determinados requisitos tabulados no Excel. Às vezes, inspirada, elaborava gráficos pizza.

A "passagem" se dava por meio de uma picadinha macia no pulso esquerdo. Houve casos que recorrera a gotinhas. Não deixava rastros para necrópsia. A causa mortis tinha que ser precisa, insuspeitada. Seu conhecimento da natureza mesquinha dos homens garantia desfilar por corredores com segura imunidade. Enfermidades são fontes perenes de lucro. A existência de bactérias resistentes depõe contra instituições de prestígio. Casos assim eram sempre abafados. Ela própria erguera as paredes de sua casinha na periferia à base de infartos, tumores, queimaduras, uma série de complicações.

No rol de misérias humanas, a morte era o desfecho inevitável. Por que adiá-la em casos comprovados de Hipocrisia, esta patológica desconformidade do ser e seus atos? Liberava (outro termo seu) os portadores desta moléstia da nefasta encenação do que não eram, nem aspiravam a ser. Porque a hipocrisia se manifestava de várias formas: defensores da família adúlteros, patriotas entreguistas, mestiços racistas, moralistas devassos, representantes públicos defensores de interesses privados e pessoais, pastores destituídos de fé, professores descomprometidos e ineptos, intelectuais obtusos, caridosos oportunistas, mecenas mercenários, líderes populistas anti-povo, artistas subversivos domesticados, migrantes xenófobos, progressistas conservadores, liberais do bem alheio, banqueiros filantropos, delinquentes policiais, anarquistas sedentos de poder. 

Não se julgava uma assassina: não lhe pagavam para nada daquilo, não auferia lucro, tampouco nutria por aquelas pessoas qualquer sentimento de rancor ou afeto. Depois de examiná-los meticulosamente chegara ao diagnóstico de um mal não apenas incurável, mas infectocontagioso. Tal moléstia não se fazia visível, contudo, alojava-se no organismo feito um verme, dominando-o. Dali, alastrava-se sub-repticiamente secando-lhe a possibilidade de sentir empatia pelo próximo, pela natureza, animais, valores. Atribuía aos hipócritas a perda do Éden, os horrores de Pandora.  

Os complexos sintomas desta forma universal de moléstia não se podiam medir em exames, mesmo os de alta precisão. Ela, entretanto, aperfeiçoara o diagnóstico reconhecendo que a distorção ou corrupção da virtude era seu principal sintoma. Entenda que diferenciava "virtude" de "moral", esta segunda inconstante, sempre à mercê de tempo, lugar, crenças, ideologias. Comprometido com a verdade e a justiça, seu  rígido código de princípios não admitia qualquer vacilação. Jurara combater doenças, o nocivo, o danoso.

Desde o princípio da pandemia, contudo, não se sentia estranhamente aflitiva. Testou positivo para covid, porém não apresentava sintomas. Assim, foi mandada para casa. Mas todos programas televisivos recrudesciam o sentimento de impotência, pois como confirmara anteriormente, tal veículo era desde muito um destilar de hipocrisias, a começar pelo elogio aos profissionais da saúde, cujos salários - a exceção de médicos e administradores - beiravam à miserabilidade.

Passou a frequentar nesse período a grupos negacionistas de vacina, desfilava em carreatas onde militantes se resguardavam em seus carros, com máscaras, munidos de álcool gel.  Fazia coros no hino nacional expelindo perdigotos. Embora seguisse no corpo a corpo em luta contra a hipocrisia, sentia nesses dias que sua luta era inglória, como se de repente o país tivesse sido tomado por hipócrita e vivesse sem que soubesse seu apocalipse zumbi. 

quinta-feira, 2 de julho de 2020

DANAE

Havia uma mulher que estava certa de que havia um intruso em seu apartamento. Nunca o vira, mas compartilhava com ele sua vida. Os vestigios eram sutis, mas inequívocos. Uma torneira pingando, cujo registro lembrara de fechar. O alvoroço de formigas sobre grãos de açúcar jamais derramados. Restos de comida no lixinho da pia. 

Às vezes se distraía: a porta da geladeira aberta, a janela da lavanderia destrancada, o botão da máquina no volume alto de água. Concluiu que o excitava esse jogo, que queria ser descoberto. Passou a elaborar estratégias para apanhá-lo. Sabia que se deixasse o leite fechado ele não o tocaria, então quebrava o lacre, media o volume.  Ele não caía, como ciente de que cascas de pão são armadilhas para passarinho. Ele era uma ave de rapina. 

Ele seguia entortando quadros na parede, derrubava ímãs da geladeira, mudava a posição de livros, bloqueava com múltiplas tentativas sua senha do celular.

Resolveu instalar detectores de movimento com alarme. A diarista que vinha às terças levava sustos brutais, mas ele passava incólume. Seu prazer era inquietá-la retirando objetos do lugar, vê-la correndo feito louca, devolvê-los horas depois e se deleitar com sua perplexidade. Aqueles ridículos três pulinhos de São Longuinho.

Ela era incapaz de crer na existência de poltergeist, essa coisa de signos, orixás. A série Atividade Paranormal a entediava. Na sua cabeça, o intruso era real, humano, dez centimetros mais alto que ela: calculava pela desarrumação dos lençóis da cama. Era certamente um homem, pela tampa da privada que nunca lembrava de baixar.

Em março, quando uma nova conta exigia quase o pernoite no escritório, mais se evidenciou sua insatisfação. Parecia se ressentir de que tivesse uma vida longe dele, carreira, amigos. Misturava roupas de cor diferente na máquina ou as deixava molhar no varal. Entupia de propósito a pia da cozinha. Um dia, obrigou-a a sair às pressas da agência. O síndico exasperado ao telefone pedindo autorização para entrar. Os detectores acionados, indicando incêndio. Tudo não passara de um alarme falso. O técnico bonitão não conseguia explicar a falha do sistema.

Isso de fato a aborreceu. Ele pareceu compreender que se excedera, dando-lhe uma trégua de três semanas, nas quais tudo permaneceu em seu lugar, sem sumiço de tapetes antiderrapantes, marcas de pizza no sofá, cheiro de fritura na cozinha. 

Ausente, ela pode deixar de estar sempre maquiada, trocar a camisa de botão e as calcinhas vermelhas por um moletom surrado, comer sorvete diretamente do bote sem medo de ser julgada, de ter que ter a depilação em dia ou obrigação de estar sempre sexy.


O sumiço do vibrador anunciou de modo ofensivo seu retorno. Ela ligou para o técnico que tinha achado gato para instalar câmeras.

Ele entendeu aquilo como uma declaração de guerra. Ela se pegava com o técnico másculo no sofá? Ele descia a temperatura do ar condicionado. Ela tratava livremente de intimidades com as amigas nas videochamadas? Ele sumiu com o aparelho obrigando-a a comprar um novo. Verificadas as câmeras, era sorrateiro, movia-se nos pontos cegos do sistema de vigilância. Não se deixava capturar. 

Ela se cansara daquilo. Doou os mantimentos que tinha, desligou os eletrônicos da casa, rascunhou um bilhete que pregou na geladeira com um ímã. Esvaziou, então, os armários de trajes de banho e foi viajar com os amigos e o namorado barbudo em merecidas férias.

Encontrou a casa deserta ao voltar. Ele não se preocupara em passar um pano nos móveis. No vão do sofá, ela encontrou o celular "perdido". No ladrilho rente à geladeira, que ele deixou desligada, um bilhete escrito: "Fui."


- As pequenas desordens que corrompem, que subvertem a mesmice dos dias, são também as que conferem mais concretude à existência. Faz com que, por mais incovenientes que pareçam, impulsonem mudanças, façam a vida de repente, mais real. Você entende? - Perguntou a terapeuta. Ela meneou a cabeça. 

- Agora me fale um pouco mais daquela fantasia que tinha aos sete anos. Esse amigo imaginário tinha nome?

BENIGNO

Havia uma mulher que desenvolveu uma gravidez imaginária. Sentia o bebê se mover em seu ventre há quatro meses. No médico para o pré-natal: nada no ultrassom, nenhum batimento cardíaco. Encaminhada ao psiquiatra, descartou os tais remédios que, segundo o Google, prejudicariam o seu bebê. Num torpor onírico,  aguardava o parto sem ansiedade. Desentendera-se com o pai do rebento, que se negara à conclusão do quartinho. A criança chutava como um jogador de futebol: o enxoval todo em blue, segura de ser um menino. Isolada no 708, gerava a cria à revelia da ciência, de Deus, da covid 16. O chá de bebê a distância, realizado pelas poucas amigas. Presentes aportavam via correio. Um móbile de bichinhos desinfectado com álcool em gel  emitia luzes coloridas e sonidos de carrossel. A circunferência da barriga atrapalhava na hora de passar as fraldinhas que com ternura repousavam ao lado dos sapatinhos de tricô (tecidos e retecidos por ela), em três gavetas. A montagem do armário concluída sozinha, após arrebentar a mão do eterno noivo com um martelo. Fora difícil remover o sangue dos ursinhos de pelúcia. Engraçado é que nunca tinha sonhado em ser mãe. Mas desde a pandemia, a dispensa do emprego, o basta no noivado, os videos de autoajuda em looping, a maternidade a tomara inteira, preenchia desvãos. Sua vida, de fato, nunca fora tão significativa. Sentia-se cada dia mais forte e confiante. Estava certa de que seria uma mãe excepcional. Que filho não teria todo orgulho do mundo de ter ela como mãe? Os dezessete anos sobrevividos no abrigo. A espera frustrada, o sufocado rancor, a angustiada resignação. Às vezes, duvidava um tanto de si, mas acariciando o ventre, como descrer do filho que nascia em si? Sim, ele poderia contar incondicionalmente com ela. Ela nunca nunca nunca o abandonaria. Seria a mãe mais perfeita que podia conceber. A mãe sonhada, aquela que nunca tivera para amar ou que um dia a amara. 

Tricotando casaquinhos de lã, esperava a bolsa romper.