segunda-feira, 19 de julho de 2021

Silêncio

Havia uma mulher que começou a perder os sons da casa. Lavava louça quando o som da água parou, só ouvia o tilintar de pratos e talheres. Outro dia, o latido desesperado do chiuaua sumiu, terça, não despertou com o choro da bebê; até à troca do taco do andar de cima esteve indiferente. No otorrino para os exames: o tímpano, o martelo, a biforna. O labirinto em caracol dava voltas. Receitado um medicamento para cerume, teve a mesma eficiência de um colírio. Não há registro do fenômeno em literatura médica, disse o doutor afastando o otoscópio. Pegou a bolsa, estendeu a mão. Vida que segue. 

No iletrado ouvido, contudo, sons iam-se de repente, isolados de outros. O toque do interfone com as compras, o grave do marido pedindo a toalha. O choro de birra da filha no berço. Um dia, ao passar roupa, sumiu do rádio aquela canção do Roberto. 

Removidos os gritos e hipéboles da vizinha, que não só a apaziguavam, a integravam ao desespero feminino universal, sentiu-se um tanto mais solitária.

Havia, contudo, algo de positivo na seletividade de sons. O ronco do marido ao lado, os resmungos e rompantes da filha adolescente, as chamadas de telemarketing. Sons partiam, outros ficavam sem ter clareza de o porquê. O bom é que logo se adaptou àquilo, entendendo-o não como um fardo, mas um dom. Uma manhã achou que o aspirador de pó estava um pouco demais, e eliminou o ruído. Noutra, uma discussão entre vizinhos foi silenciada, bem como as queixas de saúde da sogra, da mãe, o ruídoso noticiário da tv. Descartou, enfim, as gotas inúteis no ouvido para se fazer guru de si mesma. Iniciada na prática do silêncio, fundou um novo método zen:  o mutismo.

No curso dos dias, desabilitava os ecos dos corredores, o zunzum das crianças, o bater de portas, louvores e melismas que, desafiando a audição divina,  escalam dez andares do prédio e penetravam sem dó seu sagrado lar. Na mesa, experimentou calar as bocas, o sorver das sopas. Ao amamentar, apenas o leve som da sucção de sua bebê, o leite fluindo até seu pequeno estômago.

Uma noite, o horror: o silêncio absoluto e apavorante no breu. Ouviu o correr do sangue, o bombear da aorta, o crescer ciciante dos cabelos. Sentiu-se tonta, solta, sem coordenadas. Se pisasse no chão escorregaria, cairia, nauseada. Estendeu a mão apoiando-se no peito do marido e escutou a arritmia. O cateterismo às pressas evitou o infarto fatal, o dobrar de sinos, as ladainhas, o choro, os pêsames sussurrados, as roldanas descendo, o flap das pás de terra sobre o caixão.

Anichada no sofá com as filhas, o marido e a chiuaua, assistia a um filme de super herói enquanto isolava os efeitos sonoros que sabia feitos artificialmente com chocalhos, lixas de madeira, mixers, máquinas de lavar. O avô do herói disse que grandes poderes trazem grande responsabilidade. Ela, que sentia ter abdicado um pouco de si ao se fazer mãe, pensou em quantos não salvaria com o dom que mantinha em segredo num misto de calado orgulho e exasperada inconsciência. 

Uma voz interna vinha às vezes recriminá-la, fazê-la sentir-se mal consigo mesma. Mas dentro de um número infinito de vozes, essa era apenas mais uma. Ela tinha escolhido a sua própria, e por que tinha poder, ela a silenciou 











Sua família por vezes se aborrecia com suas ausências. De fato mudara: fragmentadas lhe vinham as notícias do mundo, da mãe, da amigas, do zumzum dos dias. 

Se recriminava, achando-se relapsa também com eles, dona de um interior vasto, inacessível. O que estava fazendo consigo? Uma voz interna feminina, séculos de mulher, como se culpada de si. Quase se sentia mal consigo mesmo. Dentro de um numero infinito de vozes, essa era apenas mais uma. E ela tinha escolhido a sua própria. E porque tinha o poder, ela silenciou essa outra.

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