Havia uma mulher que acreditava que sua vida não era real. A verdadeira é a que vivia nos sonhos. No exíguo jardim da casa de muros baixos, ela cultivava rosas amarelas. No varal dos fundos, se enlaçavam ao som da rádio AM, seu taierzinho azul marinho, as saias rodadas de bailão. De segunda à sábado, as folgas eram quinzenadas, vendia perfume num shopping no centro. Estava sempre exausta. O namorado, entregador da rapi, a pegava de moto às dez. E dormiam enganchados numa cama de viúva, simbióticos, como um búfalo e um pássaro.
Despertava no quarto ao lado do marido, célebre matemático, cuja apneia determinara a separação de corpos, não das almas, unanimemente discordantes. Chefiava um departamento no campus, era dos que traziam equações para casa. Nessa outra vida, ela tinha dois filhos, altos, magros, lógicos, como o pai, para seu horror que só se encontrava agora sendo mãe.
Não eram duas, mas uma: o nome igual, a idade, o olho estrábico, mãe e pai comuns, ambos amados e mortos. Só as vidas bifurcadas não sabia a partir de quando nem por quê. Canhota, lá, destra, aqui: incompleta, por sua vez, em dupla existência.
O relógio biológico emitindo ondas de alta frequência: o namorado não captava. A casa cada dia mais vazia, a emitir ecos: o escritório ao fundo restrito aos homens. A vida almiscarada resumia-se a pagar boletos e esperar o baile nos finais de semana, se calhasse, o sol em Praia Grande. O jantar burocrático a dois num restaurante fino sem paixão. Os garotos programaram 232 canais na tv a cabo, e comunicaram o intercâmbio no Canadá para dali a uma semana. A memória de uma, na outra. Na dupla jornada da existência, qual a vida real? Qual o sonho?
Na casa impecável, toda ao gosto do marido, de repente se sentia fora de lugar. Muitas vezes o colorido do dia vinha de um pássaro que clicava no celular. O marido online na madrugada, paranóia supor uma vida dupla? A moto apreendida de novo, o dinheiro que dera convertido em cerveja. De um sujeito preso cinco vezes em maracutaias, que esperar? De repente feliz entregando frango frito, não era de se desconufiar?
Resolveu buscar apoio profissional
O psiquiatra a peso de ouro e o recém formado que atendia no SUS unânimes na prescrição de sedativos. Entorpecida, vagava o dia entre dois mundos. O calculista motoboy, a senha de números primos a nostalgia dos univitelinos.
Descrente de soluções plausíveis, o zodíaco descartado, consultou uma cartomante. O carro, a roda da fortuna, o valete, a estrela. Despachou os filhos para Montreal. Pediu um sinal a Deus que lhe mandou um tucano. Entrou pela janela, com seu bico vibrante e plhar sonso. Rompeu a união com anúncio dume que tinha comprou uma Canon 60d e saiu fotografar pássaros no Jardim Botânico. Um ornitologo profissional curtiu seu Instagram e começaram a trocar mensagens.
Na mostra dos classicos de DePalma de cinema reviu Vestida para matar. mante. Na Pinacoteca do Estado, nada que a atraísse.
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Deu um basta no eterno noivado, as contas na perfumaria, raspou poupança e embarcou
à espera de condições ideais, as inúteis ovulações na hipótese sempre adiada de um bebê. Estava
A memória de uma, na outra, embaralhavam-se, sem se concluir qual a existência real? A consulta no analista revirando ainda mais as cartas: que outra coisa fazer se não tornar ambas as vidas mais reais.
sem sentido na casa s filhos que não careciam mais dela. A flagrante fragrânciasO almiscarado
Despertava nos longos braços de Paloma. Foram amigas, antes de se entenderem almas gêmeas. Os filhos frutos de uma dupla gravidez, nasceram com os olhos verdes do doador comum. Infernizavam a vida das mães
almas bipartidas compactuado um mesmo ser
Atavicas
num amor disléxico que beirava à maternidade,
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