segunda-feira, 19 de julho de 2021

Duplo

Havia um homem que despertou num quarto de hotel barato. A latejante dor na tempora, nenhuma marca visível de pancada, o estômago embrulhado. De como chegara ali, uma incógnita. As câmeras de vigilância nada flagraram, já que não passavam de mero aparato cênico para coibir danos ao patrimonio, artifício de enganar a fiscalização. No livro de entrada, uma assinatura indistinta da sua. Perdida ou furtada, nada da carteira ou do celular. Uma amiga, contudo, recebera uma mensagem enigmática em voz metalizada: universos paralelos, biparticoes celulares, revelações cósmicas. Na delegacia para o BO, não o levaram a sério. O policial mascava um palito que pendia irônico no canto da boca. No bloquinho de notas: burguês branco de balada, provavelmente viado, viciado ou ambos, típica princesa do boa noite Cinderela. Última memória: canhões de luz, deslocar entre o bar e a pista sob batidas lisérgicas e amigos que não o tinham visto partir. Sua ex emigrara com a nova namorada para Londres, andava só e aberto a aventuras. Não espantaria que tivesse tomado ou lhe dessem algo. Mas como explicar a ausência de 29 das 29 tatuagens?

O círculo de Órion, seu nascimento em romano, o olho de Hórus, a pena de kentzal. As formas piramidais e chave maçônica. Os pontos em cada chacra. Essas marcas de eleição que pontuavam o ser que era num instante x, já não existiam. Era de novo um homem em branco, sem a bússola na homoplata, sem a constelação na clavicula, sem as coordenadas numéricas do nascimento no tríceps. Ausente no espelho, a memória da serpente entrelaçada no braço, já não se reconhecia, como se tivera trocado de corpo, ou alma, e fosse outro, um duplo, um golen de si mesmo, ele que em pequeno, sonhara um irmão para compartilhar consigo o desamor do pai, as ausências da mãe.


Da noite para o dia perdera o corpo que além de evidenciar sua natureza servia-lhe de portifólio: ele era tatuador.

No estúdio, os amigos atônitos diante do surreal fenômeno. Contudo, para além do apagamento visível, outro mais profundo se fizera: reconhecia-os, era capaz de nomeá-los um a um, contudo, sentia-os inquietos, como se o desconhecessem, ou pior, temerosos que o mesmo mal sucedesse a eles.  distante, nada íntimo, e de algum modo, desconfiado. Reconhever aliem inadequacso distanciamento. 

Deixado na porta, 
Ligações na madrugada no telefone retrô. O pedido de socorro sussurrado do outro lado da linha: não era aquela a sua voz? Bateu o fone no gancho, incapaz de responder. Ressuscitou um caderninho de chamadas e pediu ajuda ao pai que não via há quatro anos, desde a morte da mãe. O irmão autista, um ano mais velho, não o reconheceu. Foi acomodado no quartinho de trastes do fundo, à revelia de uma madastra insone, pivô da separação dos pais, sua ex secretária nos Correios. Deitado naquele forno com o ventilador de teto levantando pó, sonhou que penetrava uma imensa caverna.

Estranho torpor no curso dos dias, era impressão sua ou o vigiavam da esquina? As maos de repente trêmulas, pequenas alucinações o perseguiam no curso do dia, um sabor gravo na boca, a boca ora seca ora uma saliva impossível de cuspir. , pesadelos simulados do Twilight Zone, o gosto e o cheiro abandonara-o e uma perturbação sensorial, elwtrificava-o, como em campo aberto, prenúncios de uma tempestade. Um gato negro, uma escada, dejavus e clichês misticos o acossavam. No cinema, um filme noir de Welles, uma mao no ombro. No banheiro fechado, vozes conspiratorias sobre os ombros. Sentia habitar um filme de Lynch. Recebia ligacoes, desligavam. 

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