segunda-feira, 19 de julho de 2021

HAMELIN

Havia uma mulher cujo apartamento foi invadido por um rato. Da cadeira de rodas, assistiu com horror à passagem veloz rumo à cozinha. A instalação recente de uma quadril de titânio impedia movimentos heróicos. De posse de uma vassoura tentou espantar a fera sem sorte. Era leitora de cartas. Nestes tempos de crise, o tarô garantia a dispensa abastecida. 

 O plano de saúde em débito automático,  da pensão de professora que restava? Antes da pandemia, havia clientes: era das que trazia o amor em trinta dias. Hermeticamente confinada no apê mirrado, não entrevia futuro. Lançava à sorte dos dias, faltava-lhe um gato para puxar o rabo. O seu tinha morrido no mês passado. Pensou em empalhá-lo. Entre tantas fotografias amarelas, placas de mérito, velhas bonecas de louça, espelhos venezianos, completaria a tumba que fizera para si. 

A desratização não estava inclusa no condomínio? Ela assumiria o risco por inevitável horror de roedores,  mas quem ousaria entrar naquelas trevas nesses tempos de contágio, quando a solidariedade era só da porta para fora? 

O moço do 171, a quem confiara o enterro de Cigano, sumira com o tapete persa destinado à venda. Devia ter visto antes nas cartas as intensões do larápio. Mas as mãos trêmulas, a vista baça de analgésicos, embaralhava os arcanos, corrompia o sentido, a interpretação: falhava a consulente, não a mensagem. O rato na cozinha emitia guinchos. O crash de um pote espatifando-se, atingiu-a como uma uma espada.

Empunhando a vassoura decida,  pedalou para lá na cadeira de rodas. Antes destravou a porta e a deixou entreaberta. Dali para fora, o problema era de outro. 

O cinza escuro do pelo, era quase preto. Errara na predição: o rato era uma rata e, pelo volume do corpo, prenha, faminta. Pensou em ligar para a afilhada que ajudara a criar. Ela viria acudi-la em condição de filha, à revelia do marido que se oporia com justiça. Onde já se via, atravessar a cidade aos 8 meses e tanto de gravidez!?

Arremessou o saleiro que quicou quase vazio na parede, depois o paliteiro, bem perto da rata que roía bolachas sortidas entre cacos no ladrilho. Sem se intimidarem, encararam-se. A rata intuiu a vantagem ao vê-la inerte sobre a almofada. Em vez de recuar, avançou. A velha tentou afastá-la com a vassoura, mas a rata marchou confiante escalando  o cabo, que soltou assustada, girando as rodas em marcha-ré de volta para sala. Na passagem, esbarrou na banqueta e o abajur de conchinhas veio ao chão. Confiante, a rata exibia dentes amarelos. O coração de porcelana fora presente do amor da sua vida. Não relutou em desferi-lo contra a inimiga. O porta-jóias se espatifou no taco vomitando brincos e pulserinhas oxidadas. A rata, furiosa, avançou cravando os dentes na chinelinha rosa que arrancou sem dó do pé da velha. Assustada, tentou apoiar-se na mesa redonda que bambeou. Perdeu o equilíbrio, a cadeira virou e ela bateu o quadril operado no chão.  

A rata, surpresa, recuou uns passos examinando-a se contorcendo de dor. Queria aquela ruína de casa para si? Onde os vizinhos que sempre reclamavam do barulho?


[Todas as manhãs retirava uma carta, para prever o curso do dia. Semana passada foi o enforcado. O rapaz do prédio em frente içara voo pela janela. Hoje esquecera. Como entrara nesse dia sem destino?]

A rata rosnou rouca rompendo o transe. Por que esses travas línguas infantis? Que  tinham os ratos a ver com criança? Impossivel perdoar a Disney. 

A rata suja erguida no largo ventre. Quase podia sentir na cara o bafo da besta, os dentes expostos, as garras duras, ameaçadoras. A cauda chicoteava uma ansiedade de gestante. O mundo temia a esquitossomose, a infestação de seus piolhos, a peste negra.

Com o quadril latejando, a velha via estrelas, constelações. O ar não fugia, antes, escapava das fossas do pulmão. A besta ganhara confiança para o bote. Sem muito atinar, estendeu o braço e apanhou a primeira coisa à mão e atirou. O bloco de cartas atingiu o focinho da fera e se espalhou. A rata espantada com aquela profusão de reis, valetes e espadas saiu como um torpedo pela porta entreaberta, as cartas esparramadas onde antes havia o persa. O interfone começou a tocar. Eis os vizinhos, ela pensou, e riu da ironia. 

Logo viriam socorrê-la. Sua história ganharia corredores, outros blocos, desceria e subiria os elevadores. O administrador trataria da desratização imediata e a isentaria do condomínio, temeroso de processos. Sem esforço premonitório uma cadeia de eventos desfilou diante de seus olhos, evidentes como o parto da rata, a continuidade de sua descendência que sobreviveria a ela, à postiça neta autista, aos Adoradores de Tant, a novas epidemias.

Antes que a viessem resgatar, ela estendeu a mão e apanhou uma das cartas. Não era a roda da fortuna, mas o hierofante.

Larapio sem futuro naipe coracao consulente quarentena hibernara peste/praga penetrar a cozinhs

171

Havia um homem que dava pequenos golpes. Tinha preferência por idosos. O fato de serem velhos não lhe imiscuia qualquer culpa. O minimo que esperava do tempo era o fim da inocência. Se se deixavam enganar, não o faziam por ingênuos, antes por se acharem imunes ao golpes, como se os anos lhe consagrassem imunidade, isenção, como se a eles algo se devesse. Essa arrogância o inquietava. Além do que, todos se compadeciam dos velhos. 

ABANDONO

Havia uma mulher que abandou os filhos. Moravam os três no apartamento. Desde a morte do marido não se reconhecia. Amava os filhos, so nao suportava mais aquela vida. Fez as malas, apanhou os documentos e partiu. A de dezesseis leu o bilhete para o menor. A mae deixara o cartão com a pensão do pai que deveriam sacar e quitar compromissos. Havia outras instruções, precisas para cada situação. Todas anotadas com objetividade como a última: não me preocurem. Viveram as 5 fases do luto. No terceiro, mês desistiram de achar que voltaria. O menino, que tinha medo de fantasmas, procurava refúgio  na cama da irmã, a quem se apegara ainda mais, temendo que partisse. A menina vestia a blusa esquecida pela mãe no cesto de roupas sujas, acendia um cigarro e soltava fumaça na janelinha da lavanderia. Chorava no chuveiro às vezes. As contas no débito automático, do aluguel. A escola pública não exigia mensalidades. O orçamento era apertado. Ela conciliava estudos com serviço não registrado numa lanchonete. Era assediada diariamente, mas seguia firme. Apesar disso, aceitava cartões de engravatados, vai saber do futuro.

Contrariando clichês, o menino ia bem na escola. A morte do pai alicercara o homem que seria. O abandono da mãe nada mais fizera que confirmar que ele e a irmã eram sobreviventes. À beira da morte, aos 37, se lembraria daquele dia e decidiria viver. O sentido-aranha dela, a faria ligar nas impensáveis três e trinta da manhã. Por hora, era um menino num prédio solitário. A amizade com o jornaleiros garantia acesso a tirinhas. U

FADA

Desde esse não suportava a cara do marido. Antes, a incompatibilidade de horários tornava tolerável o casamento que se arrastava há cinco anos. A quarentena impunha agora um convívio diário e esgarçada/evidenciara de vez o túmulo da relação. Desde que esbarrara no anão, tinha as noite inquietas. Se masturbava loucamente com a duchinha no banho. O filho adolescente batia na porta afundando/afogando desejos. Aquela idade toda confinado no quarto.

Ao se livrar do ex, viu renascê-lo no filho. A mesma inutilidade, o ar balofo, a preguiça. Amava o filho, mas não o suportava mais. Os gritos jogando Call dufy atrás da porta. Havia gente ganhando fortunas nas olimpíadas do Japão, não o garoto, que nenhuma vocação para prodígio. Parasitando os dias, consumindo ritalina para um intratável tda. O dinheiro apertado, faltasse tudo menos a internet. Já tentara se matar numa ocasião, feito o pai, inútil. Só ela sabia o que lge custava aquele destino de trevas. Desencantada com a vida sorvia mais copinhos de leite condensado e vomitava no banheiro. A bariátrica. O futuro distante, o rancor desse filho inútil dissolvido agora com doses de gim. Às vezes passava três dias sem tomar banho. A pilha de roupas acumuladas sem força para passar. A ilusão do peso mantido na balança quebrada embaixo da cama. O vestido 45 eternamente a espera no cabide rosa.

Duplo

Havia um homem que despertou num quarto de hotel barato. A latejante dor na tempora, nenhuma marca visível de pancada, o estômago embrulhado. De como chegara ali, uma incógnita. As câmeras de vigilância nada flagraram, já que não passavam de mero aparato cênico para coibir danos ao patrimonio, artifício de enganar a fiscalização. No livro de entrada, uma assinatura indistinta da sua. Perdida ou furtada, nada da carteira ou do celular. Uma amiga, contudo, recebera uma mensagem enigmática em voz metalizada: universos paralelos, biparticoes celulares, revelações cósmicas. Na delegacia para o BO, não o levaram a sério. O policial mascava um palito que pendia irônico no canto da boca. No bloquinho de notas: burguês branco de balada, provavelmente viado, viciado ou ambos, típica princesa do boa noite Cinderela. Última memória: canhões de luz, deslocar entre o bar e a pista sob batidas lisérgicas e amigos que não o tinham visto partir. Sua ex emigrara com a nova namorada para Londres, andava só e aberto a aventuras. Não espantaria que tivesse tomado ou lhe dessem algo. Mas como explicar a ausência de 29 das 29 tatuagens?

O círculo de Órion, seu nascimento em romano, o olho de Hórus, a pena de kentzal. As formas piramidais e chave maçônica. Os pontos em cada chacra. Essas marcas de eleição que pontuavam o ser que era num instante x, já não existiam. Era de novo um homem em branco, sem a bússola na homoplata, sem a constelação na clavicula, sem as coordenadas numéricas do nascimento no tríceps. Ausente no espelho, a memória da serpente entrelaçada no braço, já não se reconhecia, como se tivera trocado de corpo, ou alma, e fosse outro, um duplo, um golen de si mesmo, ele que em pequeno, sonhara um irmão para compartilhar consigo o desamor do pai, as ausências da mãe.


Da noite para o dia perdera o corpo que além de evidenciar sua natureza servia-lhe de portifólio: ele era tatuador.

No estúdio, os amigos atônitos diante do surreal fenômeno. Contudo, para além do apagamento visível, outro mais profundo se fizera: reconhecia-os, era capaz de nomeá-los um a um, contudo, sentia-os inquietos, como se o desconhecessem, ou pior, temerosos que o mesmo mal sucedesse a eles.  distante, nada íntimo, e de algum modo, desconfiado. Reconhever aliem inadequacso distanciamento. 

Deixado na porta, 
Ligações na madrugada no telefone retrô. O pedido de socorro sussurrado do outro lado da linha: não era aquela a sua voz? Bateu o fone no gancho, incapaz de responder. Ressuscitou um caderninho de chamadas e pediu ajuda ao pai que não via há quatro anos, desde a morte da mãe. O irmão autista, um ano mais velho, não o reconheceu. Foi acomodado no quartinho de trastes do fundo, à revelia de uma madastra insone, pivô da separação dos pais, sua ex secretária nos Correios. Deitado naquele forno com o ventilador de teto levantando pó, sonhou que penetrava uma imensa caverna.

Estranho torpor no curso dos dias, era impressão sua ou o vigiavam da esquina? As maos de repente trêmulas, pequenas alucinações o perseguiam no curso do dia, um sabor gravo na boca, a boca ora seca ora uma saliva impossível de cuspir. , pesadelos simulados do Twilight Zone, o gosto e o cheiro abandonara-o e uma perturbação sensorial, elwtrificava-o, como em campo aberto, prenúncios de uma tempestade. Um gato negro, uma escada, dejavus e clichês misticos o acossavam. No cinema, um filme noir de Welles, uma mao no ombro. No banheiro fechado, vozes conspiratorias sobre os ombros. Sentia habitar um filme de Lynch. Recebia ligacoes, desligavam. 

Dos sonhos

Havia uma mulher que acreditava que sua vida não era real. A verdadeira é a que vivia nos sonhos. No exíguo jardim da casa de muros baixos, ela cultivava rosas amarelas. No varal dos fundos, se enlaçavam ao som da rádio AM, seu taierzinho azul marinho, as saias rodadas de bailão. De segunda à sábado, as folgas eram quinzenadas, vendia perfume num shopping no centro. Estava sempre exausta. O namorado, entregador da rapi, a pegava de moto às dez. E dormiam enganchados numa cama de viúva, simbióticos, como um búfalo e um pássaro. 

Despertava no quarto ao lado do marido, célebre matemático, cuja apneia determinara a separação de corpos, não das almas, unanimemente discordantes. Chefiava um departamento no campus, era dos que traziam equações para casa.  Nessa outra vida, ela tinha dois filhos, altos, magros, lógicos, como o pai, para seu horror que só se encontrava agora sendo mãe. 

Não eram duas, mas uma: o nome igual, a idade, o olho estrábico, mãe e pai comuns, ambos amados e mortos.  Só as vidas bifurcadas não sabia a partir de quando nem por quê. Canhota, lá, destra, aqui: incompleta, por sua vez, em dupla existência.

O relógio biológico emitindo ondas de alta frequência: o namorado não captava. A casa cada dia mais vazia, a emitir ecos: o escritório ao fundo restrito aos homens. A vida almiscarada resumia-se a pagar boletos e esperar o baile nos finais de semana, se calhasse, o sol em Praia Grande. O jantar burocrático a dois num restaurante fino sem paixão. Os garotos programaram 232 canais na tv a cabo, e comunicaram o intercâmbio no Canadá para dali a uma semana. A memória de uma, na outra. Na dupla jornada da existência, qual a vida real? Qual o sonho?

Na casa impecável, toda ao gosto do marido, de repente se sentia fora de lugar. Muitas vezes o colorido do dia vinha de um pássaro que clicava no celular. O marido online na madrugada, paranóia  supor uma vida dupla? A moto apreendida de novo, o dinheiro que dera convertido em cerveja. De um sujeito preso cinco vezes em maracutaias, que esperar? De repente feliz entregando frango frito, não era de se desconufiar?

Resolveu buscar apoio profissional
O psiquiatra a peso de ouro e o recém formado que atendia no SUS unânimes na prescrição de sedativos. Entorpecida, vagava o dia entre dois mundos. O calculista motoboy, a senha de números primos a nostalgia dos univitelinos. 

Descrente de soluções plausíveis, o zodíaco descartado, consultou uma cartomante. O carro, a roda da fortuna, o valete, a estrela. Despachou os filhos para Montreal.  Pediu um sinal a Deus que lhe mandou um tucano. Entrou pela janela, com seu bico vibrante e plhar sonso. Rompeu a união com anúncio dume que tinha comprou uma Canon 60d e saiu fotografar pássaros no Jardim Botânico. Um ornitologo profissional curtiu seu Instagram e começaram a trocar mensagens. 



Na mostra dos classicos de DePalma de cinema reviu Vestida para matar. mante. Na Pinacoteca do Estado, nada que a atraísse. 
.



Deu um basta no eterno noivado, as contas na perfumaria, raspou poupança e embarcou 






à espera de condições ideais, as inúteis ovulações na hipótese sempre adiada de um bebê. Estava 









A memória de uma, na outra, embaralhavam-se, sem se concluir qual a existência real? A consulta no analista revirando ainda mais as cartas: que outra coisa fazer se não tornar ambas as vidas mais reais.

 sem sentido na casa s filhos que não careciam mais dela. A flagrante fragrânciasO almiscarado 


















Despertava nos longos braços de Paloma. Foram amigas, antes de se entenderem almas gêmeas. Os filhos frutos de uma dupla gravidez, nasceram com os olhos verdes do doador comum. Infernizavam a vida das mães





 almas bipartidas compactuado um mesmo ser

Atavicas

num amor disléxico que beirava à maternidade, 

Cinzas

Havia uma mulher que não enxergava cores.  Sua visão de mundo, entretanto, não se limitava a preto e branco, mas em complexas variações de gris. 

Rosa, amarelo, lilás eram indistintos, invariáveis o vermelho, o azul, o verde e o marrom, se restritos a um só tom. Acreditava em formas, volumes, texturas. As frutas, se não provadas, indefinidas, por isso, para ela o sabor era um dos atributos da verdade. Um admirador lhe dera flores, ela mostrou-se imune ao presente, à sua pele bronzeada, aos olhos que ela não sabia azuis. Certo e errado, bem e mal eram para ela conceitos inconcebíveis. Fúria e entusiasmo, similares no modo, por isso, de complexa apreensão. Placas, semáforos, sinais luminosos, uniformes, fachadas de led e neon, bancas de jornais e cinema 3d tudo lhe fundia horror, evidentemente inapta para o meio urbano. 

O arco-iris, um facho de luz entre terra e céu. A camuflagem, o dom da invisibilidade animal. O camaleão: um lagarto indecifrável. A zebra, um equino em retalhos.

Imune a maniqueísmos, achou-se completa no Direito. Sua percepção desencantada, estóica da existência a levou à juíza. A certeza opaca no julgar toda fundada na intencionalidade, nunca na intensidade dos atos. Suas sentenças eram precisas, apartadas do colorido das paixões. Não que fosse insensível ao amor e à arte. 

A poesia das fotografias de Cartier-Bresson, de Vivian Maier, de Sebastião Salgado,  dos filmes de Carl Dreyer e de Orson Welles. O teatro de sombras feito com as mãos. O amor de sua vida era uma acrobática gata siamesa a quem batizou Minerva.

Pandora

Havia uma mulher que enviava presentes a desconhecidos. Eles desembarcavam diante da porta dos apartamentos com postits escritos à mão. Ao desatarem o embrulho, os contemplados eram surpreendidos por algo banal, mas estranhamente necessário. O pequeno filhote de angorá de pelos cinzentos pôs vida nos olhos da criança triste; e a mãe, mais do que o pai (que tinha seus peixes num aquário), montou um instagram exclusivo para suas estripulias. O cupom intransferível de ilimitadas guloseimas, na Confeitaria Delícia, adoçou a vida anêmica de Isolda, para inveja da família. O delicado diário rosa com cadeado, confessor de sonhos, planos e segredos da filha adolescente, virou obsessão para mãe super-protetora. 

Sem data festiva e aparente intensão, cortava à tesoura o rubro papel, embalava a caixa branca, e arrematava o pacote com laço de seda esmeralda.  Os embrulhos distribuídos entre os habitantes do edifício, exilados neste período de parademia. O binóculo, a calça jeans dos sonhos, o portarretrato de coração, o wisky 50 anos, a lingerie provocante, o vibrador em forma de coelhinho. Os presentes mais singelos deflagravam catalismos inimagináveis. 

Para alegria da mulher, o gato assassinou os peixes ensandecendo o pai que adiou o ódio: o filho doente de amor e asma pelo gato. A glicemia nas alturas, não resistia ao bolo de doce de leite, nozes, castanhas e chantilin. Arrebentado o cadeado, a revelação do abuso da caçula botou o pai na cadeia. Nenhuma foto feliz para o portarretratos do casal evidenciou o apodrecimento do amor. Os dez anos de sobriedade zerados no primeiro gole de whisky. A lingerie sexy, ele experimentou no grande espelho do banheiro, depois sob o palitó na festa de debutante da filha. Com o binóculo, esmiuçava a rotina da vizinha, seu closet atulhado, sua barriga negativa, seu marido tatuado. O jeans, uns números a mais, a motivou ao regime restrito à gordura e proteína animal. Menos doze quilos, a cintura não fechava, apelou ao jejum intermitente, a uma dieta à base de anfetaminas e diuréticos. A calça, como se encolhesse, insistia em não servir. Por fim, na deep web perdeu de vez o gosto pelo jeans, mesmerizada por Nóri, digital influencer com receitas práticas de bulimia. A senhora do 619 redescobriu um mundo de fantasias com habbit, ergométrico e em seis velocidades. O marido, pacato pintor de paredes, não sabia como arranca-la daquele aliciante mundo de espelhos, devolvê-la para insatisfatória rotina cotidiana. 

Afundada no sofá em frente da televisão de tubo, a mulher das caixas sonhava bonecas russas. A tarde correra exausta com o recortar, encapar, enlaçar outros regalos desconcertantes: um terço de prata, um quebra-cabeça branco de duas mil peças,  um exemplar em francês de Bartlebly, um narguilé importado, a pata de um macaco. 

O interfone tocou. Empilhou todas as caixas, para não perder a viagem e desceu esbaforida com todos os embrulhos na mão.

A espectativa diária de um mal maior tomara o edifício e 

Silêncio

Havia uma mulher que começou a perder os sons da casa. Lavava louça quando o som da água parou, só ouvia o tilintar de pratos e talheres. Outro dia, o latido desesperado do chiuaua sumiu, terça, não despertou com o choro da bebê; até à troca do taco do andar de cima esteve indiferente. No otorrino para os exames: o tímpano, o martelo, a biforna. O labirinto em caracol dava voltas. Receitado um medicamento para cerume, teve a mesma eficiência de um colírio. Não há registro do fenômeno em literatura médica, disse o doutor afastando o otoscópio. Pegou a bolsa, estendeu a mão. Vida que segue. 

No iletrado ouvido, contudo, sons iam-se de repente, isolados de outros. O toque do interfone com as compras, o grave do marido pedindo a toalha. O choro de birra da filha no berço. Um dia, ao passar roupa, sumiu do rádio aquela canção do Roberto. 

Removidos os gritos e hipéboles da vizinha, que não só a apaziguavam, a integravam ao desespero feminino universal, sentiu-se um tanto mais solitária.

Havia, contudo, algo de positivo na seletividade de sons. O ronco do marido ao lado, os resmungos e rompantes da filha adolescente, as chamadas de telemarketing. Sons partiam, outros ficavam sem ter clareza de o porquê. O bom é que logo se adaptou àquilo, entendendo-o não como um fardo, mas um dom. Uma manhã achou que o aspirador de pó estava um pouco demais, e eliminou o ruído. Noutra, uma discussão entre vizinhos foi silenciada, bem como as queixas de saúde da sogra, da mãe, o ruídoso noticiário da tv. Descartou, enfim, as gotas inúteis no ouvido para se fazer guru de si mesma. Iniciada na prática do silêncio, fundou um novo método zen:  o mutismo.

No curso dos dias, desabilitava os ecos dos corredores, o zunzum das crianças, o bater de portas, louvores e melismas que, desafiando a audição divina,  escalam dez andares do prédio e penetravam sem dó seu sagrado lar. Na mesa, experimentou calar as bocas, o sorver das sopas. Ao amamentar, apenas o leve som da sucção de sua bebê, o leite fluindo até seu pequeno estômago.

Uma noite, o horror: o silêncio absoluto e apavorante no breu. Ouviu o correr do sangue, o bombear da aorta, o crescer ciciante dos cabelos. Sentiu-se tonta, solta, sem coordenadas. Se pisasse no chão escorregaria, cairia, nauseada. Estendeu a mão apoiando-se no peito do marido e escutou a arritmia. O cateterismo às pressas evitou o infarto fatal, o dobrar de sinos, as ladainhas, o choro, os pêsames sussurrados, as roldanas descendo, o flap das pás de terra sobre o caixão.

Anichada no sofá com as filhas, o marido e a chiuaua, assistia a um filme de super herói enquanto isolava os efeitos sonoros que sabia feitos artificialmente com chocalhos, lixas de madeira, mixers, máquinas de lavar. O avô do herói disse que grandes poderes trazem grande responsabilidade. Ela, que sentia ter abdicado um pouco de si ao se fazer mãe, pensou em quantos não salvaria com o dom que mantinha em segredo num misto de calado orgulho e exasperada inconsciência. 

Uma voz interna vinha às vezes recriminá-la, fazê-la sentir-se mal consigo mesma. Mas dentro de um número infinito de vozes, essa era apenas mais uma. Ela tinha escolhido a sua própria, e por que tinha poder, ela a silenciou 











Sua família por vezes se aborrecia com suas ausências. De fato mudara: fragmentadas lhe vinham as notícias do mundo, da mãe, da amigas, do zumzum dos dias. 

Se recriminava, achando-se relapsa também com eles, dona de um interior vasto, inacessível. O que estava fazendo consigo? Uma voz interna feminina, séculos de mulher, como se culpada de si. Quase se sentia mal consigo mesmo. Dentro de um numero infinito de vozes, essa era apenas mais uma. E ela tinha escolhido a sua própria. E porque tinha o poder, ela silenciou essa outra.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Como usar o RTX Voice com as placas GTX

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domingo, 7 de março de 2021

ASSOMBRO

Eu era um menino triste, um menino solitário, um menino irremediavelmente só. Eu tinha um buraco no peito, um oco na alma. Desde sempre eu era quase condenado a não existir, não ser. Berravam os meninos que brincavam de taco na rua, ignoravam meu chamado, davam as costas para mim. Ninguém me tocava no pega-pega. Nem bandido nem ladrão vinham me ferir; não me queimavam nas queimadas. Eu era triste. Eu era só um menino. Eu era só. Eu nem era, eu tinha sido.

Por isso, quando aquele menino novo, de olhos cinzentos e transparentes falou comigo, eu gaguejei. Não sabia mais falar. Mas ele riu, contou de uma cidade tal, de uma escola longe, da viagem de três dias, do pai militar sempre em mudança, da irmã caçula, a mãe que ordenava compras no mercado. O mais especial, o amigo para vida toda. 

Perguntou para mim onde brincava. E eu mostrei a casa. Aquela velha no fim da rua. Os meninos sempre iam lá, uns com os outros. Diziam, era assombrada, de dar medo. Iam aos bandos. Ir lá sozinho não tinha graça, mas eu vivia lá. Eu não sorria há muito tempo. Mas o menino. Eu nunca tinha visto o menino, e o menino, me visto. E eu pensava comigo, amigos para sempre!

“Vamos” – ele disse, corajoso.
O olho claro, as veias azuladas, transparentes. Se pegasse nele, por certo que seria frio. Fomos. 

O portão rangeu. Ele riu, riu nervoso, mas esperto, como se não fosse de verdade aquele medo de assombração. "Coragem!," eu disse. Eu que não tinha medo, que estava feliz de não estar sozinho, daquela aventura com o menino estranho. E para me gabar, falei: "eu não saio daqui." Mas não disse, que nunca subia nos quartos. Os quartos me sufocavam, eu nunca nunca entrava lá.

“Espere!”, ele disse. "Ouvi um barulho, bem lá em cima. Escutou?"

Eu gostava da camisa do menino, do brinco que ele usava, e de ouvir a respiração, da fumaça que saia de sua boca azulada de frio. 

“Tem alguém lá em cima. Vamos subir?”

Fiz que não, mas ele já se adiantara, rangendo escadas que podiam se partir, mesmo com a leveza de seu corpo. Já estávamos no corredor. 

“Está ouvindo esta canção de mãe?”

Então ele me disse que ouvia coisas, que tinha acontecido uma coisa com ele, a capotagem de um carro contra o muro de uma casa. Quase casa igual a esta. Se fechasse os olhos, podia andar pela casa inteira, como se vivesse ali. Eu acreditava? O nome dele era Maximiliano. 

Uma porta se abriu. Sem ver seu gesto, a janela estava aberta para luz entrar. Olhei seu rosto pálido num espelho empoeirado. Ele não me viu refletindo, mirando-o. E de repente, tive medo do menino. Aquela coragem má. A casa era meu esconderijo no mundo, não fosse ele querer roubá-la. E já não o queria para amigo. Quis puxá-lo pelo braço, fiz de estender a mão, mas ele se precipitou pelo corredor. 

“Não vá, eu disse. Ninguém nunca entra no quarto.”

“Você já brincou da brincadeira do copo?” Ele me perguntou e disse: “O copo disse que eu morria novo. O copo diz que eu morro sempre.” E riu. 

Estávamos no quarto. Ele fechou os olhos, os dentes alvíssimos, e foi falando: "Um menino morreu aqui. Foi o pai, pôs as mãos no pescoço do menino. Que o menino estava doente. Era doente. Tossia arranhado."

“Mentira!” - gritei, engasgado. Ninguém nunca tinha me contado isso. Ele me assombrava. “Acabou a brincadeira”, disse. Já não gostava dele. Que ele fosse embora! E ele riu, agora gargalhava, apontava o dedo para mim e ria. Chutou o cavalinho de pau. Arrancou furioso o dossel da cama, jogou as gavetas no chão. Queria bater nele. Vá embora! Eu gritei: "A casa é minha. Só minha. A casa é minha! Só minha!"

Foi quando me viu no retrato preto e branco, antes da tuberculose, da mão do pai apertando minha garganta. "Dorme, filhinho..." E eu dormi.

Ele gritou. Gritou até ficar vermelho. Gritou descendo as escadas. Tropeçou no degrau enquanto eu atravessava portas, tossindo essa tosse, anos e anos, sem pai nem mãe, sem esse amigo mau; mal, para toda vida. 

“Você vai morrer” – eu gritei. “Você vai morrer!”, repeti. “Você morre, agora!”, eu gritei, assombrando-o.  

Ele partiu correndo, o corte na perna já sangrando. Era minha aquela casa. Eu vivia ali. Era só um menino triste, um menino solitário, um menino irremediavelmente só.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Os velhos

OS VELHOS

Era um casal de velhos, e o destino deles era a morte, porque esse é o destino de todos os velhos. 

Moravam do outro lado da rua, numa casa em frente a minha. Tudo ali era antigo: a frente de azulejos, a cozinha de ladrilhos, as torneiras de cobre gotejando metal. Mas, demoliram a casa e ficaram só os canos, igualzinho a um cemitério com ossadas ao sol, mas sem a brancura, sem o brilho que tem o metal novo. 

Eram velhos de verdade aqueles velhos. Ofereciam água em copos de cristal, as bordas douradas e o fundo fosco. Deviam ter uns cem anos. Eu não aceitava.

“Muito satisfeito”, dizia, conforme tinha ensinado minha mãe. 

E eles gostavam de mim, queriam me agradar. Diziam que eu era muito "educado", que meus pais deviam ter orgulho de terem um filho assim.

Sábios?! Não sabiam de nada aqueles velhos. Esqueciam as coisas, suspendiam minutos meu nome na voz.

Eu não gostava da velhice dos velhos, dos passos lentos, das dobras da pele, da espuma nos cantos da boca. Mas os velhos tinham tevê. E ninguém tinha tevê naquele tempo.

Então eu assistia com o velho ao Corinthians, enquanto a velha rezava, ou penteava os cabelos, ou pigarreava no quarto, no fim do corredor, e saía arrastando chinelas, fazendo ranger as dobradiças da porta, os tacos soltos do piso. Era uma velha impaciente aquela velha. 

Eu olhava os retratos da parede da sala. A cortina estava sempre aberta. A torneira tingia de amarelo o fundo da pia. Mas o velho orgulhava-se da sua dentadura. Sorria muito com ela. Tinham tido filhos e netos que às vezes vinham visitá-los, para quem eles me apresentavam repetidas vezes, sempre do mesmo modo: “Este é o Bruno, filho da vizinha”. 

E os filhos, netos, sobrinhos respondiam que era muito prazer, conforme tinham ensinado os velhos. 

Rodando pião no fundo da casa, pensava que, idosos, não iria visitar também meus pais. Meu pai que não me via nunca. Minha mãe que teimava em não me esquecer. Ou os irmãos maiores que me odiavam. 

Mais velho não, eu não iria pedir “a benção”; nem trazer chinelos, responder "senhor, senhora". Eu não iria me “comportar”. Todas essas coisas que eu fazia sem vontade, e que os velhos achavam bonito. Isso por que eu era “muito educado” só por fora, por dentro eu era um garoto mau. Eu era um garoto mau que fazia tudo que deve fazer um garoto bom. Na missa, eu bocejava escondido. Sempre mentia na confissão. E nunca faltava na escola, pois a escola era só o maior dever. 

Os velhos não, eles achavam que a escola era o meu lugar mais legal, mas lá eu me sentia como que amolecido. As professoras gordas ensinavam com grandes cópias na lousa; e se irritavam com minha letra torta. A sopa era muito ruim e sempre havia alguém mais forte, mais rico, mais tonto, mais bacana ou babaca; mais bonito do que eu. Eu gostava apenas de apontar o lápis com estilete, como gosto ainda hoje.

Os velhos eram bons comigo e me deixavam apontar lápis. Com eles, o velho desenhava grandes peixes numa agenda de 67, e eles, de tão perfeitos,  pareciam prateados, embora eu o visse desenhar com lápis 6B. 

Eu recusava a água, e a velha fazia para mim limonada, que agora eu tomava e deixava sempre um pouco no fundo do copo. O velho ria de orgulho dos dentes, enquanto a velha arrastava seus chinelos corredor afora, levando na mão seus bonitos pentes de acrílico.

Um dia ela penteou meu cabelo. O velho disse que meus dentes eram tortos, mas bonitos (ou fortes) e que era para eu cuidar deles. 

Então eu gostava de assistir ao Corinthians ainda quando perdia, pois o velho batia na mesa e o cão soltava um uivo alto. E a velha arrastando chinelas, saia do quarto: “O que é que está acontecendo, aí?

Em casa, eu escondia os lápis dos irmãos e os peixes ganhados debaixo do beliche, numa caixa de tênis Bamba. 

(Um dia, sem mais nem menos, o relógio da sala parou. O cuco parecia morto. Eu estava na calçada jogando as sete pedrinhas e ele me chamou. “Menino, vai buscar óleo de máquina no Seu Juca”. Foi como eu entrei na casa, conheci os velhos. Passava naquele instante o jogo do Corinthians.)

O cuco, eles chamava o Onofre. Eu gostava deste "o-Onofre". Eu gostava daquele relógio, daquele cuco. E agora eu gostava do velho e da velha e do Corinthians e da dentadura do velho e da limonada, apesar de deixar sempre um resto no fundo do copo. Gostava quando a velha me penteava, e até da desgraça dos azulejos floridos que davam cada susto na gente, quando despencavam da parede da cozinha. 

“Um dia você vai ter uma casa como esta”, eles me disseram. 

Mas eu não queria aquela casa, casa nenhuma. O que queria era viajar, conhecer outros lugares. Eu queria ir. Eu disse isso para os velhos. 

“E a sua mãe? Como ia ficar sua mãe? Eu ia deixar mesmo a família?” 

Eu ergui os ombros.

“E você vai levar o que nessa viagem?” Me perguntaram ainda. 

A velha tossia mais alto, mais alto, mais alto, a cada dia. O velho bateu na mesa, se ergueu quando o Corinthians perdeu. Mas a velha não veio do quarto dizendo: “O que está acontecendo, aí?”

“O que está acontecendo?” se perguntou o velho. 

Mas a velha tinha morrido. O pente na mão. Morreu de cabelo escovado. No caixão, prenderam num coque. A velha inundada de flores.

O velho nem chorava nem sorria. O velho usava marcapasso. Eu sei porque numa hora ele me apertou com força, o meu ouvido no peito dele dando tiques.
 
“Eu e o-Onofre temos uma coisa em comum”, ele disse.

Então eu olhei para o velho, os meus olhos assim inundando o mundo. “Velho, eu te amo.”, eu ia dizer.  Mas ele apertou com tanta força a minha mão e suspirou: “Diabo de menino!” 

Ah, o velho gostava de mim!

Ele não queria ver mais o Corinthians, não dava corda no relógio, nem a cortina, abria. Deixava os dentes no copo. Queria só saber de dormir. 

“Entra e senta”, ele dizia. 

“O menino tá perturbando?”, perguntava minha mãe.

O velho abria o portão ou eu saltava o muro. Ele me deixava só com o Corinthians para fazer o suco de limão que ele esquecia de adoçar. Eu tomava assim mesmo, e dava corda no o-Onofre. Se percebia, falava: “Você é muito educado”. E arrastava as sandálias da velha, rumo ao quarto. 

“Quando você viaja?” 
“Logo, velho, logo. “ - eu dizia.

E eu penteava o seu cabelo prateado. 

Numa segunda, minha mãe me levou para pôr o aparelho no dentista. Olhava meus dentes de metal e dizia que eu não sabia como tinha sorte. 

Então eu ganhei o lugar para excursão de tanta prenda que levei para escola. E eu fui. E o mar era verde, não era azul. E a areia da Praia Grande era uma continuação do asfalto. 

Quando eu voltei, soube que o velho tinha morrido. 

Pulei o muro da frente. Eu tinha que ver o vazio do velho com os próprios olhos. Arranquei três vezes a placa de vende-se posta no jardim. Apanhei três vezes do meu pai, que vivia sempre ausente. Mas antes eu já tinha tomado coragem e arrombado a porta do fundo. A família dele tinha levado tudo, tinha levado até o-Onofre. Pensei que vinha gente morar na casa um dia. Mas ela ficou assombrada, com azulejos que saltavam das paredes. Até que mandaram arrancar até os ladrilhos, derrubar as paredes. A ossadura dos canos sem brilho ao sol. 

No fundo da casa, entre escombros, eu encontrei a dentadura do velho. Pensei no velho para sempre triste. E guardei a dentadura no beliche. Depois numa gaveta. Agora, no porta-luvas do carro. Está sempre lá quando viajo. Às vezes sorrio para ela. Às vezes aponto lápis com canivete e tento desenhar peixes prateados. E quando estou muito triste, eu penteio meus cabelos, enquanto olho no céu infinito essa profusão de tão velhas e perdidas estrelas.

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