segunda-feira, 19 de julho de 2021

HAMELIN

Havia uma mulher cujo apartamento foi invadido por um rato. Da cadeira de rodas, assistiu com horror à passagem veloz rumo à cozinha. A instalação recente de uma quadril de titânio impedia movimentos heróicos. De posse de uma vassoura tentou espantar a fera sem sorte. Era leitora de cartas. Nestes tempos de crise, o tarô garantia a dispensa abastecida. 

 O plano de saúde em débito automático,  da pensão de professora que restava? Antes da pandemia, havia clientes: era das que trazia o amor em trinta dias. Hermeticamente confinada no apê mirrado, não entrevia futuro. Lançava à sorte dos dias, faltava-lhe um gato para puxar o rabo. O seu tinha morrido no mês passado. Pensou em empalhá-lo. Entre tantas fotografias amarelas, placas de mérito, velhas bonecas de louça, espelhos venezianos, completaria a tumba que fizera para si. 

A desratização não estava inclusa no condomínio? Ela assumiria o risco por inevitável horror de roedores,  mas quem ousaria entrar naquelas trevas nesses tempos de contágio, quando a solidariedade era só da porta para fora? 

O moço do 171, a quem confiara o enterro de Cigano, sumira com o tapete persa destinado à venda. Devia ter visto antes nas cartas as intensões do larápio. Mas as mãos trêmulas, a vista baça de analgésicos, embaralhava os arcanos, corrompia o sentido, a interpretação: falhava a consulente, não a mensagem. O rato na cozinha emitia guinchos. O crash de um pote espatifando-se, atingiu-a como uma uma espada.

Empunhando a vassoura decida,  pedalou para lá na cadeira de rodas. Antes destravou a porta e a deixou entreaberta. Dali para fora, o problema era de outro. 

O cinza escuro do pelo, era quase preto. Errara na predição: o rato era uma rata e, pelo volume do corpo, prenha, faminta. Pensou em ligar para a afilhada que ajudara a criar. Ela viria acudi-la em condição de filha, à revelia do marido que se oporia com justiça. Onde já se via, atravessar a cidade aos 8 meses e tanto de gravidez!?

Arremessou o saleiro que quicou quase vazio na parede, depois o paliteiro, bem perto da rata que roía bolachas sortidas entre cacos no ladrilho. Sem se intimidarem, encararam-se. A rata intuiu a vantagem ao vê-la inerte sobre a almofada. Em vez de recuar, avançou. A velha tentou afastá-la com a vassoura, mas a rata marchou confiante escalando  o cabo, que soltou assustada, girando as rodas em marcha-ré de volta para sala. Na passagem, esbarrou na banqueta e o abajur de conchinhas veio ao chão. Confiante, a rata exibia dentes amarelos. O coração de porcelana fora presente do amor da sua vida. Não relutou em desferi-lo contra a inimiga. O porta-jóias se espatifou no taco vomitando brincos e pulserinhas oxidadas. A rata, furiosa, avançou cravando os dentes na chinelinha rosa que arrancou sem dó do pé da velha. Assustada, tentou apoiar-se na mesa redonda que bambeou. Perdeu o equilíbrio, a cadeira virou e ela bateu o quadril operado no chão.  

A rata, surpresa, recuou uns passos examinando-a se contorcendo de dor. Queria aquela ruína de casa para si? Onde os vizinhos que sempre reclamavam do barulho?


[Todas as manhãs retirava uma carta, para prever o curso do dia. Semana passada foi o enforcado. O rapaz do prédio em frente içara voo pela janela. Hoje esquecera. Como entrara nesse dia sem destino?]

A rata rosnou rouca rompendo o transe. Por que esses travas línguas infantis? Que  tinham os ratos a ver com criança? Impossivel perdoar a Disney. 

A rata suja erguida no largo ventre. Quase podia sentir na cara o bafo da besta, os dentes expostos, as garras duras, ameaçadoras. A cauda chicoteava uma ansiedade de gestante. O mundo temia a esquitossomose, a infestação de seus piolhos, a peste negra.

Com o quadril latejando, a velha via estrelas, constelações. O ar não fugia, antes, escapava das fossas do pulmão. A besta ganhara confiança para o bote. Sem muito atinar, estendeu o braço e apanhou a primeira coisa à mão e atirou. O bloco de cartas atingiu o focinho da fera e se espalhou. A rata espantada com aquela profusão de reis, valetes e espadas saiu como um torpedo pela porta entreaberta, as cartas esparramadas onde antes havia o persa. O interfone começou a tocar. Eis os vizinhos, ela pensou, e riu da ironia. 

Logo viriam socorrê-la. Sua história ganharia corredores, outros blocos, desceria e subiria os elevadores. O administrador trataria da desratização imediata e a isentaria do condomínio, temeroso de processos. Sem esforço premonitório uma cadeia de eventos desfilou diante de seus olhos, evidentes como o parto da rata, a continuidade de sua descendência que sobreviveria a ela, à postiça neta autista, aos Adoradores de Tant, a novas epidemias.

Antes que a viessem resgatar, ela estendeu a mão e apanhou uma das cartas. Não era a roda da fortuna, mas o hierofante.

Larapio sem futuro naipe coracao consulente quarentena hibernara peste/praga penetrar a cozinhs

171

Havia um homem que dava pequenos golpes. Tinha preferência por idosos. O fato de serem velhos não lhe imiscuia qualquer culpa. O minimo que esperava do tempo era o fim da inocência. Se se deixavam enganar, não o faziam por ingênuos, antes por se acharem imunes ao golpes, como se os anos lhe consagrassem imunidade, isenção, como se a eles algo se devesse. Essa arrogância o inquietava. Além do que, todos se compadeciam dos velhos. 

ABANDONO

Havia uma mulher que abandou os filhos. Moravam os três no apartamento. Desde a morte do marido não se reconhecia. Amava os filhos, so nao suportava mais aquela vida. Fez as malas, apanhou os documentos e partiu. A de dezesseis leu o bilhete para o menor. A mae deixara o cartão com a pensão do pai que deveriam sacar e quitar compromissos. Havia outras instruções, precisas para cada situação. Todas anotadas com objetividade como a última: não me preocurem. Viveram as 5 fases do luto. No terceiro, mês desistiram de achar que voltaria. O menino, que tinha medo de fantasmas, procurava refúgio  na cama da irmã, a quem se apegara ainda mais, temendo que partisse. A menina vestia a blusa esquecida pela mãe no cesto de roupas sujas, acendia um cigarro e soltava fumaça na janelinha da lavanderia. Chorava no chuveiro às vezes. As contas no débito automático, do aluguel. A escola pública não exigia mensalidades. O orçamento era apertado. Ela conciliava estudos com serviço não registrado numa lanchonete. Era assediada diariamente, mas seguia firme. Apesar disso, aceitava cartões de engravatados, vai saber do futuro.

Contrariando clichês, o menino ia bem na escola. A morte do pai alicercara o homem que seria. O abandono da mãe nada mais fizera que confirmar que ele e a irmã eram sobreviventes. À beira da morte, aos 37, se lembraria daquele dia e decidiria viver. O sentido-aranha dela, a faria ligar nas impensáveis três e trinta da manhã. Por hora, era um menino num prédio solitário. A amizade com o jornaleiros garantia acesso a tirinhas. U

FADA

Desde esse não suportava a cara do marido. Antes, a incompatibilidade de horários tornava tolerável o casamento que se arrastava há cinco anos. A quarentena impunha agora um convívio diário e esgarçada/evidenciara de vez o túmulo da relação. Desde que esbarrara no anão, tinha as noite inquietas. Se masturbava loucamente com a duchinha no banho. O filho adolescente batia na porta afundando/afogando desejos. Aquela idade toda confinado no quarto.

Ao se livrar do ex, viu renascê-lo no filho. A mesma inutilidade, o ar balofo, a preguiça. Amava o filho, mas não o suportava mais. Os gritos jogando Call dufy atrás da porta. Havia gente ganhando fortunas nas olimpíadas do Japão, não o garoto, que nenhuma vocação para prodígio. Parasitando os dias, consumindo ritalina para um intratável tda. O dinheiro apertado, faltasse tudo menos a internet. Já tentara se matar numa ocasião, feito o pai, inútil. Só ela sabia o que lge custava aquele destino de trevas. Desencantada com a vida sorvia mais copinhos de leite condensado e vomitava no banheiro. A bariátrica. O futuro distante, o rancor desse filho inútil dissolvido agora com doses de gim. Às vezes passava três dias sem tomar banho. A pilha de roupas acumuladas sem força para passar. A ilusão do peso mantido na balança quebrada embaixo da cama. O vestido 45 eternamente a espera no cabide rosa.

Duplo

Havia um homem que despertou num quarto de hotel barato. A latejante dor na tempora, nenhuma marca visível de pancada, o estômago embrulhado. De como chegara ali, uma incógnita. As câmeras de vigilância nada flagraram, já que não passavam de mero aparato cênico para coibir danos ao patrimonio, artifício de enganar a fiscalização. No livro de entrada, uma assinatura indistinta da sua. Perdida ou furtada, nada da carteira ou do celular. Uma amiga, contudo, recebera uma mensagem enigmática em voz metalizada: universos paralelos, biparticoes celulares, revelações cósmicas. Na delegacia para o BO, não o levaram a sério. O policial mascava um palito que pendia irônico no canto da boca. No bloquinho de notas: burguês branco de balada, provavelmente viado, viciado ou ambos, típica princesa do boa noite Cinderela. Última memória: canhões de luz, deslocar entre o bar e a pista sob batidas lisérgicas e amigos que não o tinham visto partir. Sua ex emigrara com a nova namorada para Londres, andava só e aberto a aventuras. Não espantaria que tivesse tomado ou lhe dessem algo. Mas como explicar a ausência de 29 das 29 tatuagens?

O círculo de Órion, seu nascimento em romano, o olho de Hórus, a pena de kentzal. As formas piramidais e chave maçônica. Os pontos em cada chacra. Essas marcas de eleição que pontuavam o ser que era num instante x, já não existiam. Era de novo um homem em branco, sem a bússola na homoplata, sem a constelação na clavicula, sem as coordenadas numéricas do nascimento no tríceps. Ausente no espelho, a memória da serpente entrelaçada no braço, já não se reconhecia, como se tivera trocado de corpo, ou alma, e fosse outro, um duplo, um golen de si mesmo, ele que em pequeno, sonhara um irmão para compartilhar consigo o desamor do pai, as ausências da mãe.


Da noite para o dia perdera o corpo que além de evidenciar sua natureza servia-lhe de portifólio: ele era tatuador.

No estúdio, os amigos atônitos diante do surreal fenômeno. Contudo, para além do apagamento visível, outro mais profundo se fizera: reconhecia-os, era capaz de nomeá-los um a um, contudo, sentia-os inquietos, como se o desconhecessem, ou pior, temerosos que o mesmo mal sucedesse a eles.  distante, nada íntimo, e de algum modo, desconfiado. Reconhever aliem inadequacso distanciamento. 

Deixado na porta, 
Ligações na madrugada no telefone retrô. O pedido de socorro sussurrado do outro lado da linha: não era aquela a sua voz? Bateu o fone no gancho, incapaz de responder. Ressuscitou um caderninho de chamadas e pediu ajuda ao pai que não via há quatro anos, desde a morte da mãe. O irmão autista, um ano mais velho, não o reconheceu. Foi acomodado no quartinho de trastes do fundo, à revelia de uma madastra insone, pivô da separação dos pais, sua ex secretária nos Correios. Deitado naquele forno com o ventilador de teto levantando pó, sonhou que penetrava uma imensa caverna.

Estranho torpor no curso dos dias, era impressão sua ou o vigiavam da esquina? As maos de repente trêmulas, pequenas alucinações o perseguiam no curso do dia, um sabor gravo na boca, a boca ora seca ora uma saliva impossível de cuspir. , pesadelos simulados do Twilight Zone, o gosto e o cheiro abandonara-o e uma perturbação sensorial, elwtrificava-o, como em campo aberto, prenúncios de uma tempestade. Um gato negro, uma escada, dejavus e clichês misticos o acossavam. No cinema, um filme noir de Welles, uma mao no ombro. No banheiro fechado, vozes conspiratorias sobre os ombros. Sentia habitar um filme de Lynch. Recebia ligacoes, desligavam. 

Dos sonhos

Havia uma mulher que acreditava que sua vida não era real. A verdadeira é a que vivia nos sonhos. No exíguo jardim da casa de muros baixos, ela cultivava rosas amarelas. No varal dos fundos, se enlaçavam ao som da rádio AM, seu taierzinho azul marinho, as saias rodadas de bailão. De segunda à sábado, as folgas eram quinzenadas, vendia perfume num shopping no centro. Estava sempre exausta. O namorado, entregador da rapi, a pegava de moto às dez. E dormiam enganchados numa cama de viúva, simbióticos, como um búfalo e um pássaro. 

Despertava no quarto ao lado do marido, célebre matemático, cuja apneia determinara a separação de corpos, não das almas, unanimemente discordantes. Chefiava um departamento no campus, era dos que traziam equações para casa.  Nessa outra vida, ela tinha dois filhos, altos, magros, lógicos, como o pai, para seu horror que só se encontrava agora sendo mãe. 

Não eram duas, mas uma: o nome igual, a idade, o olho estrábico, mãe e pai comuns, ambos amados e mortos.  Só as vidas bifurcadas não sabia a partir de quando nem por quê. Canhota, lá, destra, aqui: incompleta, por sua vez, em dupla existência.

O relógio biológico emitindo ondas de alta frequência: o namorado não captava. A casa cada dia mais vazia, a emitir ecos: o escritório ao fundo restrito aos homens. A vida almiscarada resumia-se a pagar boletos e esperar o baile nos finais de semana, se calhasse, o sol em Praia Grande. O jantar burocrático a dois num restaurante fino sem paixão. Os garotos programaram 232 canais na tv a cabo, e comunicaram o intercâmbio no Canadá para dali a uma semana. A memória de uma, na outra. Na dupla jornada da existência, qual a vida real? Qual o sonho?

Na casa impecável, toda ao gosto do marido, de repente se sentia fora de lugar. Muitas vezes o colorido do dia vinha de um pássaro que clicava no celular. O marido online na madrugada, paranóia  supor uma vida dupla? A moto apreendida de novo, o dinheiro que dera convertido em cerveja. De um sujeito preso cinco vezes em maracutaias, que esperar? De repente feliz entregando frango frito, não era de se desconufiar?

Resolveu buscar apoio profissional
O psiquiatra a peso de ouro e o recém formado que atendia no SUS unânimes na prescrição de sedativos. Entorpecida, vagava o dia entre dois mundos. O calculista motoboy, a senha de números primos a nostalgia dos univitelinos. 

Descrente de soluções plausíveis, o zodíaco descartado, consultou uma cartomante. O carro, a roda da fortuna, o valete, a estrela. Despachou os filhos para Montreal.  Pediu um sinal a Deus que lhe mandou um tucano. Entrou pela janela, com seu bico vibrante e plhar sonso. Rompeu a união com anúncio dume que tinha comprou uma Canon 60d e saiu fotografar pássaros no Jardim Botânico. Um ornitologo profissional curtiu seu Instagram e começaram a trocar mensagens. 



Na mostra dos classicos de DePalma de cinema reviu Vestida para matar. mante. Na Pinacoteca do Estado, nada que a atraísse. 
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Deu um basta no eterno noivado, as contas na perfumaria, raspou poupança e embarcou 






à espera de condições ideais, as inúteis ovulações na hipótese sempre adiada de um bebê. Estava 









A memória de uma, na outra, embaralhavam-se, sem se concluir qual a existência real? A consulta no analista revirando ainda mais as cartas: que outra coisa fazer se não tornar ambas as vidas mais reais.

 sem sentido na casa s filhos que não careciam mais dela. A flagrante fragrânciasO almiscarado 


















Despertava nos longos braços de Paloma. Foram amigas, antes de se entenderem almas gêmeas. Os filhos frutos de uma dupla gravidez, nasceram com os olhos verdes do doador comum. Infernizavam a vida das mães





 almas bipartidas compactuado um mesmo ser

Atavicas

num amor disléxico que beirava à maternidade, 

Cinzas

Havia uma mulher que não enxergava cores.  Sua visão de mundo, entretanto, não se limitava a preto e branco, mas em complexas variações de gris. 

Rosa, amarelo, lilás eram indistintos, invariáveis o vermelho, o azul, o verde e o marrom, se restritos a um só tom. Acreditava em formas, volumes, texturas. As frutas, se não provadas, indefinidas, por isso, para ela o sabor era um dos atributos da verdade. Um admirador lhe dera flores, ela mostrou-se imune ao presente, à sua pele bronzeada, aos olhos que ela não sabia azuis. Certo e errado, bem e mal eram para ela conceitos inconcebíveis. Fúria e entusiasmo, similares no modo, por isso, de complexa apreensão. Placas, semáforos, sinais luminosos, uniformes, fachadas de led e neon, bancas de jornais e cinema 3d tudo lhe fundia horror, evidentemente inapta para o meio urbano. 

O arco-iris, um facho de luz entre terra e céu. A camuflagem, o dom da invisibilidade animal. O camaleão: um lagarto indecifrável. A zebra, um equino em retalhos.

Imune a maniqueísmos, achou-se completa no Direito. Sua percepção desencantada, estóica da existência a levou à juíza. A certeza opaca no julgar toda fundada na intencionalidade, nunca na intensidade dos atos. Suas sentenças eram precisas, apartadas do colorido das paixões. Não que fosse insensível ao amor e à arte. 

A poesia das fotografias de Cartier-Bresson, de Vivian Maier, de Sebastião Salgado,  dos filmes de Carl Dreyer e de Orson Welles. O teatro de sombras feito com as mãos. O amor de sua vida era uma acrobática gata siamesa a quem batizou Minerva.