segunda-feira, 8 de março de 2021

Como usar o RTX Voice com as placas GTX

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domingo, 7 de março de 2021

ASSOMBRO

Eu era um menino triste, um menino solitário, um menino irremediavelmente só. Eu tinha um buraco no peito, um oco na alma. Desde sempre eu era quase condenado a não existir, não ser. Berravam os meninos que brincavam de taco na rua, ignoravam meu chamado, davam as costas para mim. Ninguém me tocava no pega-pega. Nem bandido nem ladrão vinham me ferir; não me queimavam nas queimadas. Eu era triste. Eu era só um menino. Eu era só. Eu nem era, eu tinha sido.

Por isso, quando aquele menino novo, de olhos cinzentos e transparentes falou comigo, eu gaguejei. Não sabia mais falar. Mas ele riu, contou de uma cidade tal, de uma escola longe, da viagem de três dias, do pai militar sempre em mudança, da irmã caçula, a mãe que ordenava compras no mercado. O mais especial, o amigo para vida toda. 

Perguntou para mim onde brincava. E eu mostrei a casa. Aquela velha no fim da rua. Os meninos sempre iam lá, uns com os outros. Diziam, era assombrada, de dar medo. Iam aos bandos. Ir lá sozinho não tinha graça, mas eu vivia lá. Eu não sorria há muito tempo. Mas o menino. Eu nunca tinha visto o menino, e o menino, me visto. E eu pensava comigo, amigos para sempre!

“Vamos” – ele disse, corajoso.
O olho claro, as veias azuladas, transparentes. Se pegasse nele, por certo que seria frio. Fomos. 

O portão rangeu. Ele riu, riu nervoso, mas esperto, como se não fosse de verdade aquele medo de assombração. "Coragem!," eu disse. Eu que não tinha medo, que estava feliz de não estar sozinho, daquela aventura com o menino estranho. E para me gabar, falei: "eu não saio daqui." Mas não disse, que nunca subia nos quartos. Os quartos me sufocavam, eu nunca nunca entrava lá.

“Espere!”, ele disse. "Ouvi um barulho, bem lá em cima. Escutou?"

Eu gostava da camisa do menino, do brinco que ele usava, e de ouvir a respiração, da fumaça que saia de sua boca azulada de frio. 

“Tem alguém lá em cima. Vamos subir?”

Fiz que não, mas ele já se adiantara, rangendo escadas que podiam se partir, mesmo com a leveza de seu corpo. Já estávamos no corredor. 

“Está ouvindo esta canção de mãe?”

Então ele me disse que ouvia coisas, que tinha acontecido uma coisa com ele, a capotagem de um carro contra o muro de uma casa. Quase casa igual a esta. Se fechasse os olhos, podia andar pela casa inteira, como se vivesse ali. Eu acreditava? O nome dele era Maximiliano. 

Uma porta se abriu. Sem ver seu gesto, a janela estava aberta para luz entrar. Olhei seu rosto pálido num espelho empoeirado. Ele não me viu refletindo, mirando-o. E de repente, tive medo do menino. Aquela coragem má. A casa era meu esconderijo no mundo, não fosse ele querer roubá-la. E já não o queria para amigo. Quis puxá-lo pelo braço, fiz de estender a mão, mas ele se precipitou pelo corredor. 

“Não vá, eu disse. Ninguém nunca entra no quarto.”

“Você já brincou da brincadeira do copo?” Ele me perguntou e disse: “O copo disse que eu morria novo. O copo diz que eu morro sempre.” E riu. 

Estávamos no quarto. Ele fechou os olhos, os dentes alvíssimos, e foi falando: "Um menino morreu aqui. Foi o pai, pôs as mãos no pescoço do menino. Que o menino estava doente. Era doente. Tossia arranhado."

“Mentira!” - gritei, engasgado. Ninguém nunca tinha me contado isso. Ele me assombrava. “Acabou a brincadeira”, disse. Já não gostava dele. Que ele fosse embora! E ele riu, agora gargalhava, apontava o dedo para mim e ria. Chutou o cavalinho de pau. Arrancou furioso o dossel da cama, jogou as gavetas no chão. Queria bater nele. Vá embora! Eu gritei: "A casa é minha. Só minha. A casa é minha! Só minha!"

Foi quando me viu no retrato preto e branco, antes da tuberculose, da mão do pai apertando minha garganta. "Dorme, filhinho..." E eu dormi.

Ele gritou. Gritou até ficar vermelho. Gritou descendo as escadas. Tropeçou no degrau enquanto eu atravessava portas, tossindo essa tosse, anos e anos, sem pai nem mãe, sem esse amigo mau; mal, para toda vida. 

“Você vai morrer” – eu gritei. “Você vai morrer!”, repeti. “Você morre, agora!”, eu gritei, assombrando-o.  

Ele partiu correndo, o corte na perna já sangrando. Era minha aquela casa. Eu vivia ali. Era só um menino triste, um menino solitário, um menino irremediavelmente só.