OS VELHOS
Era um casal de velhos, e o destino deles era a morte, porque esse é o destino de todos os velhos.
Moravam do outro lado da rua, numa casa em frente a minha. Tudo ali era antigo: a frente de azulejos, a cozinha de ladrilhos, as torneiras de cobre gotejando metal. Mas, demoliram a casa e ficaram só os canos, igualzinho a um cemitério com ossadas ao sol, mas sem a brancura, sem o brilho que tem o metal novo.
Eram velhos de verdade aqueles velhos. Ofereciam água em copos de cristal, as bordas douradas e o fundo fosco. Deviam ter uns cem anos. Eu não aceitava.
“Muito satisfeito”, dizia, conforme tinha ensinado minha mãe.
E eles gostavam de mim, queriam me agradar. Diziam que eu era muito "educado", que meus pais deviam ter orgulho de terem um filho assim.
Sábios?! Não sabiam de nada aqueles velhos. Esqueciam as coisas, suspendiam minutos meu nome na voz.
Eu não gostava da velhice dos velhos, dos passos lentos, das dobras da pele, da espuma nos cantos da boca. Mas os velhos tinham tevê. E ninguém tinha tevê naquele tempo.
Então eu assistia com o velho ao Corinthians, enquanto a velha rezava, ou penteava os cabelos, ou pigarreava no quarto, no fim do corredor, e saía arrastando chinelas, fazendo ranger as dobradiças da porta, os tacos soltos do piso. Era uma velha impaciente aquela velha.
Eu olhava os retratos da parede da sala. A cortina estava sempre aberta. A torneira tingia de amarelo o fundo da pia. Mas o velho orgulhava-se da sua dentadura. Sorria muito com ela. Tinham tido filhos e netos que às vezes vinham visitá-los, para quem eles me apresentavam repetidas vezes, sempre do mesmo modo: “Este é o Bruno, filho da vizinha”.
E os filhos, netos, sobrinhos respondiam que era muito prazer, conforme tinham ensinado os velhos.
Rodando pião no fundo da casa, pensava que, idosos, não iria visitar também meus pais. Meu pai que não me via nunca. Minha mãe que teimava em não me esquecer. Ou os irmãos maiores que me odiavam.
Mais velho não, eu não iria pedir “a benção”; nem trazer chinelos, responder "senhor, senhora". Eu não iria me “comportar”. Todas essas coisas que eu fazia sem vontade, e que os velhos achavam bonito. Isso por que eu era “muito educado” só por fora, por dentro eu era um garoto mau. Eu era um garoto mau que fazia tudo que deve fazer um garoto bom. Na missa, eu bocejava escondido. Sempre mentia na confissão. E nunca faltava na escola, pois a escola era só o maior dever.
Os velhos não, eles achavam que a escola era o meu lugar mais legal, mas lá eu me sentia como que amolecido. As professoras gordas ensinavam com grandes cópias na lousa; e se irritavam com minha letra torta. A sopa era muito ruim e sempre havia alguém mais forte, mais rico, mais tonto, mais bacana ou babaca; mais bonito do que eu. Eu gostava apenas de apontar o lápis com estilete, como gosto ainda hoje.
Os velhos eram bons comigo e me deixavam apontar lápis. Com eles, o velho desenhava grandes peixes numa agenda de 67, e eles, de tão perfeitos, pareciam prateados, embora eu o visse desenhar com lápis 6B.
Eu recusava a água, e a velha fazia para mim limonada, que agora eu tomava e deixava sempre um pouco no fundo do copo. O velho ria de orgulho dos dentes, enquanto a velha arrastava seus chinelos corredor afora, levando na mão seus bonitos pentes de acrílico.
Um dia ela penteou meu cabelo. O velho disse que meus dentes eram tortos, mas bonitos (ou fortes) e que era para eu cuidar deles.
Então eu gostava de assistir ao Corinthians ainda quando perdia, pois o velho batia na mesa e o cão soltava um uivo alto. E a velha arrastando chinelas, saia do quarto: “O que é que está acontecendo, aí?
Em casa, eu escondia os lápis dos irmãos e os peixes ganhados debaixo do beliche, numa caixa de tênis Bamba.
(Um dia, sem mais nem menos, o relógio da sala parou. O cuco parecia morto. Eu estava na calçada jogando as sete pedrinhas e ele me chamou. “Menino, vai buscar óleo de máquina no Seu Juca”. Foi como eu entrei na casa, conheci os velhos. Passava naquele instante o jogo do Corinthians.)
O cuco, eles chamava o Onofre. Eu gostava deste "o-Onofre". Eu gostava daquele relógio, daquele cuco. E agora eu gostava do velho e da velha e do Corinthians e da dentadura do velho e da limonada, apesar de deixar sempre um resto no fundo do copo. Gostava quando a velha me penteava, e até da desgraça dos azulejos floridos que davam cada susto na gente, quando despencavam da parede da cozinha.
“Um dia você vai ter uma casa como esta”, eles me disseram.
Mas eu não queria aquela casa, casa nenhuma. O que queria era viajar, conhecer outros lugares. Eu queria ir. Eu disse isso para os velhos.
“E a sua mãe? Como ia ficar sua mãe? Eu ia deixar mesmo a família?”
Eu ergui os ombros.
“E você vai levar o que nessa viagem?” Me perguntaram ainda.
A velha tossia mais alto, mais alto, mais alto, a cada dia. O velho bateu na mesa, se ergueu quando o Corinthians perdeu. Mas a velha não veio do quarto dizendo: “O que está acontecendo, aí?”
“O que está acontecendo?” se perguntou o velho.
Mas a velha tinha morrido. O pente na mão. Morreu de cabelo escovado. No caixão, prenderam num coque. A velha inundada de flores.
O velho nem chorava nem sorria. O velho usava marcapasso. Eu sei porque numa hora ele me apertou com força, o meu ouvido no peito dele dando tiques.
“Eu e o-Onofre temos uma coisa em comum”, ele disse.
Então eu olhei para o velho, os meus olhos assim inundando o mundo. “Velho, eu te amo.”, eu ia dizer. Mas ele apertou com tanta força a minha mão e suspirou: “Diabo de menino!”
Ah, o velho gostava de mim!
Ele não queria ver mais o Corinthians, não dava corda no relógio, nem a cortina, abria. Deixava os dentes no copo. Queria só saber de dormir.
“Entra e senta”, ele dizia.
“O menino tá perturbando?”, perguntava minha mãe.
O velho abria o portão ou eu saltava o muro. Ele me deixava só com o Corinthians para fazer o suco de limão que ele esquecia de adoçar. Eu tomava assim mesmo, e dava corda no o-Onofre. Se percebia, falava: “Você é muito educado”. E arrastava as sandálias da velha, rumo ao quarto.
“Quando você viaja?”
“Logo, velho, logo. “ - eu dizia.
E eu penteava o seu cabelo prateado.
Numa segunda, minha mãe me levou para pôr o aparelho no dentista. Olhava meus dentes de metal e dizia que eu não sabia como tinha sorte.
Então eu ganhei o lugar para excursão de tanta prenda que levei para escola. E eu fui. E o mar era verde, não era azul. E a areia da Praia Grande era uma continuação do asfalto.
Quando eu voltei, soube que o velho tinha morrido.
Pulei o muro da frente. Eu tinha que ver o vazio do velho com os próprios olhos. Arranquei três vezes a placa de vende-se posta no jardim. Apanhei três vezes do meu pai, que vivia sempre ausente. Mas antes eu já tinha tomado coragem e arrombado a porta do fundo. A família dele tinha levado tudo, tinha levado até o-Onofre. Pensei que vinha gente morar na casa um dia. Mas ela ficou assombrada, com azulejos que saltavam das paredes. Até que mandaram arrancar até os ladrilhos, derrubar as paredes. A ossadura dos canos sem brilho ao sol.
No fundo da casa, entre escombros, eu encontrei a dentadura do velho. Pensei no velho para sempre triste. E guardei a dentadura no beliche. Depois numa gaveta. Agora, no porta-luvas do carro. Está sempre lá quando viajo. Às vezes sorrio para ela. Às vezes aponto lápis com canivete e tento desenhar peixes prateados. E quando estou muito triste, eu penteio meus cabelos, enquanto olho no céu infinito essa profusão de tão velhas e perdidas estrelas.
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