No labirinto da cidade, o mais comum era se perder: placas, semáforos, sinais luminosos, uniformes, fachadas de led e neon, Rosa, amarelo, lilás eram indistintos; invariáveis o vermelho, o azul, o verde e o marrom, se restritos a um só tom. Acreditava em formas, volumes, texturas. As frutas, se não provadas, indefinidas; por isso, para ela o sabor era um dos atributos da verdade. Um admirador lhe dera flores, ela mostrou-se imune ao presente, à sua pele bronzeada, aos olhos que não sabia azuis. Conceitos abstratos como bem e mal eram para ela inconcebíveis. Fúria e entusiasmo, similares no modo, de complexa apreensão.
Quando a professora estrábica a convocava para o quadro-negro, suas frases eram curtas, diretas sem adjetivos ou advérbios. Nas aulas de desenho, a zebra, um equino em retalhos. O arco-iris, um facho de luz entre terra e céu. Na prova de Biologia, definiu a camuflagem como o dom da invisibilidade animal. O camaleão: uma esfinge de impossível entendimento.
Imune a maniqueísmos, achou-se completa no Direito. Sua percepção desencantada, estoica da existência a levou à juíza. A certeza opaca no julgar, toda fundamentada na intencionalidade, nunca na intensidade dos atos. Suas sentenças eram precisas, apartadas do colorido das paixões.
Não que lhe faltasse sensibilidade. Amava Kafka. Sentia-se, de algum modo, aquele estrangeiro de Camus: o mar e o sol em altíssimo contraste como as letras na página. Lamentava que a vida fosse como um teatro de sombras feito de recortes superdimensionados: mãos simulando platônicas ilusões projetadas de feras. Preferiria um mundo de ideias claras, reais, objetivas.
Não era insensível ou indiferente a paixões. Aprendera tudo sobre poesia nas fotografias de Cartier-Bresson, de Vivian Maier, de Sebastião Salgado, A existência se fazia mais real nos filmes de Carl Dreyer e de Orson Welles. O teatro de sombras feito com as mãos a encantava, ali uma metáfora do poder da criação humana. O amor de sua vida era uma acrobática gata siamesa a quem batizou Minerva.